segunda-feira, 24 de agosto de 2009

50 anos do neoconcretismo

Renato Lessa

(Publiquei este pequeno artigo em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, de junho de 2009. Escrevi-o motivado pela visita à excelente exposição sobre o Neoconcretismo, no Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro. A curadoria da exposição coube a Reynaldo Röels, um dos mais finos e eruditos críticos de arte do país. Quando visitei a exposição e quando escrevi o artigo não poderia imaginar que Reynaldo viria a falecer, pouco mais de um mês depois. Que esta postagem seja uma homenagem a seu talento rigorosamente incomum)

Uma excelente mostra no Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, com curadoria de Reynaldo Roels, marcou os cinqüenta anos da 1a Exposição Neoconcreta, inaugurada naquele mesmo espaço, em março de 1959 (o ótimo texto elaborado pelo curador, de introdução à mostra, pode ser encontrado em http://www.mamrio.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=179&Itemid=36). Embora encerrada em 7/6/09, é importante marcar a importância do movimento neoconcreto no contexto da arte contemporânea brasileira. Mais do que parte do material apresentado em 1959, a exposição de 2009 considerou a trajetória do grupo de artistas neoconcretos do Rio de Janeiro até a sua dissolução em 1962. Foram apenas três anos, mas dos mais fecundos e inovadores na história da arte no Brasil.

Além de exibir o Manifesto Neoconcreto, publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil - então uma das principais referências culturais e de vanguarda no país -, a exposição de 2009 reuniu obras de alguns dos mais notáveis artistas plásticos brasileiros, ligados ao movimento: exemplares da série Bicho de Lygia Clark, alguns dos Metaesquemas de Hélio Oiticica, além de obras de Amilcar de Castro, Lygia Pape, Wyllis de Castro, Aluísio Carvão, Franz Weissmann, Hércules Barsotti e Décio Vieira e poemas de Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim e Roberto Pontual.

O Manifesto, um dos principais documentos programáticos da arte brasileira, foi escrito e publicado no início de 1959. Elaborado pelo poeta Ferreira Gullar, o texto contou com as assinaturas de Amílcar de Castro, Claudio Mello e Souza, Franz Weissmann, Lygia Clark, Lygia Pape, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis, artistas no núcleo inicial do movimento. Outros se juntaram ao grupo, com destaque para Helio Oiticica, Décio Vieira, Wyllis de Castro e Hércules Barsotti.

Ambos os movimentos – Concreto e Neoconcreto – foram fundamentais para a afirmação de uma arte abstrata no Brasil, que questionou os padrões acadêmicos e modernistas que dominantes no país até os anos 50. O ponto de partida para a abstração foi dado na 1a Bienal de São Paulo, cujo cartaz foi elaborado por um artista plástico concretista – Antonio Maluf (1926-2005) – e apresentava uma sucessão de retângulos – como uma série de molduras inscritas umas nas outras – a convergir para um centro vazio. Nada que sugerisse figuração. Antes o contrário, apenas a abstração de formas geométricas. A Bienal de 1951 premiou, ainda, o artista suíço Max Bill que defendia e praticava uma arte racionalista, vinculada à atmosfera de uma sociedade industrial e em reconstrução no segundo pós-guerra.

O componente racionalista pode ser detectado na defesa de uma arte que buscava comunicação imediata com o espectador, sem a mediação de conteúdos figurativos e literários. A atmosfera cartesiana se fazia evidente pela preferência por uma linguagem que exibia formas claras e distintas: figuras geométricas, isoladas ou em série. Uma arte que falava à razão e à percepção geométrica, deslocando o eixo da fruição estética dos campos da expressão e da interpretação para o do reconhecimento puramente formal.

A ruptura dos neo-concretos cariocas baseou-se em uma crítica no que definiam como o caráter dogmático e rígido da arte concreta. Nos termos precisos do texto de apresentação da exposição de 2009, de autoria do curador Reynaldo Roels: “No manifesto, são criticadas as teses mecanicistas e reducionistas do concretismo ortodoxo, e é defendida ali uma posição em tudo próxima ao humanismo tradicional: a irredutibilidade da experiência estética à mera fisiologia do olhar (psicologia da Gestalt), a atividade do artista como uma prática intuitiva, a rejeição de todo e qualquer receituário normativo para a criação da obra, e a inclusão do espectador como agente ativo na constituição da experiência artística”.

No contexto do Neoconcretismo foi notável a correspondência entre o que propunham seus textos programáticos e o que as obras efetivamente realizavam. Por certo, muitas delas anteciparam a formulação teórica, mas ainda assim é notável a consistência filosófica, estética e artística do experimento neoconcreto. A recusa da rigidez concretista não eliminou a geometrização, mas a pôs sob o domínio da expressão e da imaginação. Este é mesmo um bom termo, invenção: para uma arte emancipada do racionalismo e para um país que, na altura, procurava reinventar-se.

domingo, 23 de agosto de 2009

Testemunho da força de quem resiste

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, de agosto de 2009)
Uma parte importante da história do Rio de Janeiro - e, por extensão, do país – acaba de ser reunida e contada. Trata-se de um belo, triste e corajoso livro, há poucas semanas lançado, sob o título de Auto de Resistência: relatos de familiares de vítimas da violência armada (Editora Sete Letras), organizado com extremo cuidado e engenho por Barbara Musumeci Soares, Tatiana Moura e Carla Afonso. O livro resulta de trabalho singular e necessário, executado pelo Projeto de Apoio a Familiares de Vítimas de Chacinas, sediado no Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, em colaboração com o Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra.

O livro pretende registrar o testemunho da "força de quem resiste" e foi "feito a muitas mãos, por uma equipe mista de familiares e de profissionais da palavra e da imagem", segundo os termos usados em sua apresentação. Põe-se, ainda, "a serviço da preservação da memória de um doloroso aspecto da nossa vida social, como um retrato vivo de uma realidade que não pode mais cair no esquecimento".

E de que "aspecto doloroso" se está a falar? Trata-se da forte e indelével presença da violência armada na cidade do Rio de Janeiro e em suas periferias, que tem encontrado em jovens pobres do sexo masculino suas vítimas - e agressores - preferenciais. Os números do problema envolvem estatísticas dispostas em séries nas quais constam itens tais como " encontro de cadáver", "encontro de ossada", "morte suspeita", "pessoas desaparecidas e homicídios dolosos". Para consulta numerológica, sugiro o sítio do Instituto de Segurança Pública, do governo do Estado do Rio de Janeiro (www.isp.gov.rj). Para as razões, os significados e os efeitos da matança sugiro outros trajetos de investigação. Em particular, o da escuta dos que sobrevivem e não esquecem. E é justamente isto que pode ser encontrado no livro em questão.

Um dos aspectos mais letais e dramáticos do quadro doloroso é o das chacinas e execuções sumárias, quase sempre associadas a ações das polícias no Rio de Janeiro. São muitas as chacinas, assim como os seus vitimados. Para além do abismo e da impessoalidade das estatísticas, há as histórias de vida dos que são executados e a dor, o trauma e a permanência na vida dos que sobrevivem. O lado pungente do livro encontra-se precisamente nesta dobra. Ali temos relatos de quinze mães, duas esposas, uma sogra e uma irmã, que permaneceram com a morte em seus colos. Um contingente de mulheres mais do que corajosas, a militar pela preservação da memória dos que perderam e por sua inscrição ativa na vida, por meio da interpelação cívica e da demanda por justiça.

Cada uma dessas mulheres apresenta, na primeira parte do livro, seus relatos, nos quais, para além dos episódios que suprimiram do mundo seus filhos, maridos, irmãos e genros, fala-se das últimas lembranças dos mesmos ainda em vida, do último dia de convivência, do impacto da perda no cotidiano. Tudo isso com um cuidadoso suporte editorial pelo qual a situação judiciária de cada caso é apresentada.

Mas não falta o outro lado da dobra. A par disto tudo, as fotografias dos que se foram devolvem à vida e à memória os vitimados, para além da numerologia e da terminologia macabra dos cadáveres e ossadas. E o que denotam as fotografias é a presença de uma vitalidade em vias de ser suprimida. São fotografias vivas, totalmente afastadas de imagens frequentes das vítimas de morte violenta que nos exibem seus documentos de identificação.

Mais do que os relatos da perda e das últimas memórias e das fotografias dos vitimados, há ainda, na segunda parte do livro, o registro do que pode ser designado como as dificuldades da escuta. Aqui reside uma dimensão dramática, há muito detectada por Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz, quando diante de seus relatos do que se passou nos campos de extermínio percebia reações de incredulidade e de inexpressão. Em um certo sentido, não estamos preparados para ouvir essas histórias, mas é imperativo que o façamos. Narrativas a respeito das dificuldades de escuta e da indiferença, por parte das autoridades, aparecem nesta segunda parte do livro associadas a relatos sobre a militância e sobre o convívio com quem também foi vitimado. Há um sujeito coletivo ali implicado, que não abole as particularidades de cada experiência, pois todas elas são, a um só tempo, compartilháveis e incomensuráveis.

Um livro, enfim, para ler, ver, chorar e pensar. E mais do que isso, para melhor qualificar a interpelação cívica: são democráticos uma sociedade e um regime político nos quais as forças da ordem impõem tamanho sofrimento e brutalização?

domingo, 9 de agosto de 2009

Dos erros veniais e dos nem tanto

Renato Lessa

(Publicado originalmente no Suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em 9/8/2009)

É mais do que razoável, ao examinarmos uma história de vida, proferir juízos do tipo: “naquele momento determinado, um erro foi cometido”. Profissionais devotados ao estudo do mistério da causalidade podem, por certo, sustentar que as escolhas humanas são passíveis de inscrição em longas séries de interações entre causas e efeitos, de modo que, ao fim e ao cabo, tudo, por mais absurdo que seja, acaba por fazer sentido. Mas, penso que aqui se impõe uma distinção.

Dizer de um evento ou ação humanos que eles possuem antecedentes que podem ser rastreados, é algo que resulta da operação de um raciocínio hipotético e a posteriori, estranho ao domínio da vida como ela é. Um raciocínio, não raro, vinculado a uma crença-mãe que sustenta que tudo faz sentido, que nada na ordem da história é absurdo ou gratuito. Uma espécie de razão suficiente nos imporia a aceitação de que tudo aquilo que aconteceu, aconteceu porque tinha que acontecer e da forma pela qual aconteceu.

Mas, do ponto de vista do sujeito que age e escolhe, em meio à pequena área da vida comum, não lhe é dado simular o que seria uma cadeia de causalidades que lhe imporia o que deve ser feito no momento preciso da ação. Na perspectiva da ação, a voz de Blaise Pascal é mais forte do que a René Descartes. É antes a (i)lógica da aposta do que a da geometria que se apresenta aos humanos. Não há ordem das razões que se imponha ao sujeito como garantia da correção de suas ações no mundo, mas sim os imperativos da crença, das paixões e do que, no momento mesmo da ação, lhe parece ser o mais adequado fazer. O corolário terrível dessa idéia de ação como salto no desconhecido é o fato de que ações podem ser interpeladas, não na perspectiva de um ordenamento histórico necessário, mas do ponto de vista da sua falibilidade e de sua capacidade de gerar conseqüências não-desejadas e, mesmo, desastrosas.

Começo por essa digressão, um tanto metafísica, para sustentar que é legítimo dizer que o “país” – se me for permitido a licença metonímica – cometeu um erro terrível em 1989. É certo que não há erro sem história, o que poderia nos levar a atenuar possíveis culpas, por meio da crença de que “fomos levados ao erro”. Que seja. Mas, de que erro se trata? Falo abertamente da escolha de Fernando Collor de Mello como Presidente da República. Às malvas o bacharelismo jurídico, que absolve o absurdo pela referência à legitimidade do ato, e a crença dos especialistas de que os eleitores sempre sabem o que fazem, em curiosa falácia de composição: seres humanos enquanto indivíduos cometem erros, mas quando se transformam em eleitorados são revestidos da misteriosa prerrogativa da lucidez e da expressão de verdades básicas.

É evidente que não há alternativa melhor do que a de conceder a maiorias eleitorais a prerrogativa de governar e constituir os corpos legislativos. Mas isso não as põe a salvo do absurdo, da frivolidade e da estupidez das escolhas. O eleitorado errou em 1989, tanto quanto acertou em 1994, 1998, 2002 e 2006. Nessas quatro oportunidades, os vitoriosos apresentaram razões razoáveis ao país, como fundamentos de suas pretensões à vitória política. O experimento de 1989 foi de outra ordem. Não é o caso de exumá-lo, mas apenas de lembrar o clima manicomial que assolou na altura a política brasileira, com intensa exibição de personagens deletérios, todos a gravitar em torno daquilo que Candido Mendes, em expressão inspirada, designou como “O Príncipe Negro”.

Fernando Collor de Mello foi afastado da vida pública brasileira, por meio de processo piedoso que o livrou das conseqüências penais de seus atos, até que recentemente aproximou-se da porta dos fundos, ao ocupar uma vaga no Senado. Ocupava, desde então, lugar cativo na vasta galeria do baixo clero até que foi reconduzido ao cenário maior da vida pública brasileira por gesto do Presidente Lula, que valeu como uma anistia. Um gesto, de resto, típico de seu autor, um sujeito político que se representa como síntese do país e como praticante de uma arte política sincrética e espaçosa. Mas, por mais que tal gesto seja passível de análise por parte de uma psicologia política, temo que o tema do erro tenha se imiscuído mais uma vez na história recente. Não um erro com dimensões colossais como o de 1989, mas, ainda assim, um gesto capaz de reintroduzir na dinâmica política do país um profissional da inautenticidade e da intimidação.

As cenas que o personagem protagonizou com o senador Pedro Simon assustaram o país pelo destempero, pelo esgar alucinado e pela agressividade quase homicida. O mais grave terá sido a figura ter referido-se a si mesma como “ex-Presidente da República”, em uma forma de auto-nomeação que já exibe as marcas da readmissão à primeira divisão. O par que compôs, na altura, com Renan Calheiros e a escolta pessoal que ambos ofereceram ao presidente do Senado na saída do plenário, após o discurso que este proferiu em sua defesa, dão o que pensar. É mesmo necessário este padrão político que tem encontrado no Senado expressão tão eloqüente?

Há aqui, penso, uma ordem de razões a ser considerada. A primeira delas diz respeito ao descolamento entre as dinâmicas sociais básicas do país com relação ao que costumeiramente se designa como as instituições representativas. Não se trata apenas de uma disjunção entre o social e o político. Algumas das mais importantes dinâmicas governamentais, na esfera do Executivo, buscam blindagens com relação a formas políticas predatórias. Outra ordem tem a ver com o lamentável estado da base parlamentar do governo. Uma base na qual o PT, menos por seu tamanho e mais por sua heteronomia, ocupa lugar secundário, além de cada vez mais constituída por um mecanismo de “peemedebização” crescente: ocupação física e patrimonial de espaços em troca da não-criação de problemas. Uma democracia representativa sem partidos e sem representação, e com a valorização da chantagem como moeda política, perece estar no promissor horizonte da República.
Há algo de grave no campo da representação política que faz com que episódios dessa natureza tenham tal freqüência. Há sempre quem diga que a sensibilidade a esses fenômenos revela uma inclinação moralista e uma falta de capacidade de perceber o que realmente está em jogo. Talvez tal dificuldade resulte simplesmente do fato de que o tal jogo real talvez se passe, efetivamente, muito longe dos esgares alucinados e da chicana que tem ocupado o proscênio do parlamento.

sábado, 8 de agosto de 2009

A pedagogia republicana do PMBD

Renato Lessa
(Publicado originalmente no Suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em março de 2009)

À parte o término dos mandatos presidenciais do deputado Chinaglia e do senador Garibaldi, não há o que comemorar, do ponto de vista dos reais democratas - assim, com letra inicial minúscula, para não haver qualquer ambigüidade – com a troca de mandatários nas mesas da Câmara de Deputados e do Senado Federal. Com efeito, poucas vezes as duas casas legislativas da República contaram com direções tão anódinas, temperadas na câmara baixa por indisfarçável arrogância do mandatário em questão e pelo estudado regionalismo nas maneiras do personagem, na câmara alta. Não deixam saudades, pois, e nem sequer a doce memória purgativa da defenestração do deputado Severino. É sempre bom saber, contudo, que ocorrências de tal natureza, ainda que sazonais, ao fim e ao cabo encerram-se. É de se esperar, ainda, que o atual governo italiano, que tem demonstrado energias cognitivas incomuns nas últimas semanas, não interprete a desitalianização implícita no processo acima aludido como gravame do contencioso em curso com o governo brasileiro.
A reemergência do senador Sarney e do deputado Temer, na dupla direção do empreendimento legislativo, põe fim à anodinia anterior e reentroniza no proscênio da República os profissionais do métier. Desloca, na verdade, o eixo da aflição: é, afinal, gente do ramo que toma conta das rédeas, no lugar do experimento de alpinismo político, que por ora se encerra.
É de lamentar, de passagem, que ex-Presidentes da República não tenham assento vitalício no Senado. Se calhar, sem direito a voto; mas, ainda assim, ao alcance das homenagens e dos rituais de aconselhamento. Vaidades patológicas seriam aplacadas e muito ganharíamos, quem sabe, com isso. No caso de José Sarney, seríamos poupados da constrangedora Operação-Amapá e ficaríamos restritos ao habitual paradigma maranhense. De Itamar Franco, nada se pode dizer; de Fernando Henrique Cardoso, desfrutaríamos a militante e iluminada reedição de Martins de Almeida, em chave científica e demonstrativa, da apresentação dos erros do Brasil enquanto país. Trata-se apenas de uma impressão, pois não estaria mesmo disposto a alargar meu círculo de desafetos por esta causa. Ainda assim, penso que faz sentido. É de amargar, ainda, que não se tenha tido idéia melhor do que a da recondução do deputado Temer à presidência da Casa que representa aquilo que Darcy Ribeiro - e os de sua grei - designava como “o povo brasileiro”. Salvo falhanço de memória, não encontro registro do contributo institucional do referido deputado, proveniente de sua passagem anterior pelo cargo. A alternativa proporcionada pelo jovem representante do baixo clero parlamentar poderia, ao menos, reduzir as margens de opacidade vigentes no mundo institucional.
Mas, não é disso que se trata. O principal a considerar é a seguinte questão: qual é o estado de uma república na qual o PMDB, além de ser o maior partido eleitoral, controla a direção das duas casas que compõem o Legislativo?
O PMBD evoca o estado bruto e natural da política brasileira. Representa o fundo duro e material que todos os partidos possuem ou gostariam de possuir. Equivale, ainda, a algo que poderia ser percebido como objeto de uma história natural da política. Aludo, aqui, à inspirada imagem, introduzida pelo genial – e já falecido - escritor alemão Wilfred Sebald, quando falou de uma história natural da destruição, a respeito dos efeitos da guerra aérea, durante a 2a Guerra, sobre as cidades alemães. Sebald, em livro memorável (História Natural da Destruição), evoca a chamada literatura das ruínas – pace Max Nossack, Heinrich Böll e Victor Gollancz -, que descrevia os efeitos da reconfiguração ruinosa do mundo promovida pelas bombas aéreas – independentemente de sua origem -, a partir da gordura dos ratos, do ganho de peso das moscas, da botânica dos escombros e dos sapatos dos sobreviventes.
Uma história natural da política pode ter marcadores equivalentes. Independentemente das crenças e das ideologias dos “atores”, há aqui uma dimensão material que se impõe à consideração. Para ir ao ponto: o PMDB é um partido natural, sem superestrutura simbólica e identitária. Sua força decorre de sua força (assim mesmo, com forma redundante); de sua capacidade de, pelo inespecífico de sua substância programática, estar em toda a parte, a dar abrigo a qualquer particularidade, desde o pentecostalismo fake da família Matheus (de dois dos piores ex-governadores e flagelos do Rio de Janeiro, que assolaram o estado de 1998 a 2006) à erudição jurídica, tribunícia e grave do ministro Jobim; sem excluir a fúria do governador Requião e a pregnância sociológica dos hábitos do deputado Jader Barbalho. Em notação politológica, trata-se de um partido catch all. Um captador total; uma espécie de guarda-chuva generoso que abriga um amplo consórcio de famílias políticas locais e estaduais, em todos os espaços geográficos e institucionais da federação.
Não há, ao que parece, nada de ruim que não se possa se dizer a respeito do PMBD, a não ser afirmar que seja algo singular e específico. Ao contrário, o partido simboliza, em forma extremada, o experimento limite da cartelização da política. Houve um tempo em que se acreditava que partidos operavam como organizadores de identidades sociais, culturais e ideológicas do eleitorado. Para utilizar a linguagem dos contabilistas, naquela altura supunha-se que os partidos reduziam os “custos de informação” dos eleitores a respeito do que se passava na vida pública, na medida em que forneciam direções e versões sobre o que corria pelo mundo. Quer isto dizer que, a um só tempo, os partidos educavam e representavam os eleitores; eram, mesmo, condição de passagem para a vida pública, das aflições, percepções, expectativas e interesses dos assim chamados cidadãos.
Diante dessa imagem, a experiência do PMBD proporciona um efeito de esclarecimento. Sem qualquer subterfúgio, ou pudor doutrinário, o que exibe é um cenário no qual famílias e clãs políticos sob seu abrigo disputam os despojos do voto. Do outro lado do espelho, esse mesmo voto pode ser apresentado como conquista, em cuja história se inscreve uma martirologia e uma acumulação imemorial de expectativas. Mas, o cinismo institucionalista nos induz a supor que o voto se faz inteligível do ponto de vista dos que o capturam. A bela história da conquista de sua universalização colapsa na rotina imposta por aqueles que o capturam. Nada na experiência brasileira representa tal patologia republicana como o PMBD.
Na micropolítica, a hegemonia do partido nas duas casas fixa no processo da sucessão de 2010 o lugar por ele a ser ocupado. O antigo jogador João Pinto, do glorioso Futebol Clube do Porto, dizia que “prognósticos só podem ser feitos ao fim da partida”. Adepto daquela “equipa” e saudoso do personagem em questão, julgo que, a despeito de nada sabermos sobre quem governará o país a partir de 2011, temos a certeza de que o PMBD lá estará.

A honra do PMDB

Renato Lessa
(Publicado originalmente no Suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em março de 2009)

Corria o verão português de 2004, o verão no qual morreu o genial Carlos Paredes, e o então Ministro da Educação da República Federativa do Brasil, Tarso Genro, fez uma visita à Lisboa. Sua agenda incluiu um encontro, organizado pela embaixada brasileira, com gente de relevo da esquerda e da vida intelectual portuguesas, para explicar o que se passava no Brasil, sob o governo Lula, ainda em fase larvar e pré-mensalão. Sob a hospitalidade do então embaixador brasileiro, o ex-deputado e ex-Presidente da República Paes de Andrade, lá estavam representantes do Bloco de Esquerda (Ana Drago), do Partido Comunista Português (António Felipe), do Partido Socialista (Mário Soares) e da Confederação Geral dos Trabalhadores de Portugal/CGTP (Carvalho da Silva). A representação dos intelectuais primou mais pela qualidade do que pela quantidade. Limitou-se ao cientista social Manuel Villaverde Cabral, um dos principais intelectuais portugueses e grande conhecedor do Brasil, que, como dizem seus compatriotas, “de borla”, levou um seu amigo que, testemunha do fato, agora o rememora neste artigo.
O Ministro brasileiro, na confortável residência diplomática do Restelo, em certo ponto de sua explanação definiu o que para si resumia o caráter do governo brasileiro: um governo que, embora dirigido por um partido de esquerda e um presidente idem, não poderia ser tomado como um “governo de esquerda”, dada a ampla coalizão que o sustentava, a incluir agremiações de centro, de direita e de lugar algum, pensei eu. Para tornar mais clara sua avaliação do paradoxo existencial, Tarso Genro mencionou o caso do PMBD, segundo ele um partido não de esquerda, mas dirigido por um presidente de honra – o próprio embaixador presente à tertúlia -, ele sim, “um homem de esquerda”. O embaixador, até então silente durante a explanação e como que tomado por um desejo forte de esclarecimento, interrompeu e acrescentou: “sou o presidente de honra de um partido que perdeu toda a honra”.
O efeito sobre os interlocutores portugueses – e, devo dizer, sobre mim mesmo – foi devastador. Até então, a conversa já possuía dose considerável de complexidade. Afinal, explicar a dialética que configura um governo que não é de esquerda, mas possui um presidente de esquerda e é identificado a um partido de idêntica extração não é tarefa simples. Pior ainda foi transmitir a mensagem de que estava em curso um processo de transformação social, de corte progressista e democrático, sob a égide da ortodoxia palocciana. Mas, a compexidade envolvida até o momento esfumou-se diante da declaração do embaixador. Para os interlocutores portugueses, além de desprovida de sentido intrínseco, a proposição afetou de modo fatal a suposição de que estavam sob a hospitalidade de gente séria.
(É curioso e lamentável o destino dado à embaixada brasileira em Lisboa. Para ali tem sido enviada uma legião de hemiglotas e amigos dos governos da ocasião, sem qualquer traquejo diplomático, todos agraciados com o posto por razões de natureza partidária. A recíproca, por sinal, não é verdadeira. Para a diplomacia portuguesa, o posto em Brasília é de relevância comparável a postos como Londres, Paris, Madrid ou Washington. A qualidade intelectual e profissional dos representantes enviados ao Brasil por Portugal atesta tal centralidade).
Mas, o que importa é que o deputado Paes de Andrade produziu, em 2004, um desabafo cujo sentido preciso volta a emergir nas explosivas declarações do Senador Jarbas Vasconcelos, como ele um dos fundadores do partido e integrante de seu grupo “autêntico”. É importante reter o conjunto de teses posto pelo Senador. Sua premissa maior é da mediocrização generalizada do quadro político brasileiro: “a classe política hoje é totalmente medíocre”. No que diz respeito ao partido, seguem juízos mais específicos. O partido reduz-se a uma “confederação de líderes regionais” e seu componente coronelístico está presente em “90%” de sua estrutura e abrangência. Trata-se, ainda, de um partido voltado para os negócios, pragmaticamente conduzido por uma estratégia precisa: “usufruir do governo (federal) sem ganhar eleições”.
Difícil – aliás, muito difícil – discordar da avaliação do Senador Jarbas Vasconcelos a respeito de seu partido. Afinal, que sentido maior pode ser retirado da observação do que fazem, e vem fazendo há muito, personagens como Renan Calheiros, Romero Jucá, Eduardo Cunha, a não ser o fato de que exercem uma política de ocupação física e material de postos estratégicos no gigantesco mundo dos negócios da política? Alguém conhece alguma causa ou princípio imaterial que possam estar associados às suas trajetórias? (Sei que são coisas que não devem ser ditas por politólogos, mas ao ver gente desse cariz a ocupar posições de poder, como não perguntar: é para isso que votamos?)
Embora dura e pertinente, a análise do Senador deve ser ampliada. O PMDB, movido pela lógica exposta por um de seus próceres – ainda que dissidente – exerce um efeito de grave contaminação sobre a política brasileira. O fato de ocupar um lugar tão central e estratégico na política brasileira não torna visíveis apenas as suas patologias internas enquanto partido. É a própria qualidade da vida pública que é afetada, quando o partido impõe-se como esteio de “governabilidade” e como garantidor de aquiescência legislativa. O PMDB impõe uma lógica política de contaminação a seus parceiros que, no processo de interação, tornam-se cada vez mais parecidos.
Em termos diretos, a presença do PMDB como base da “governabilidade” no país – não importa quem esteja a governar - é um dos aspectos mais nefastos da vida pública brasileira. Não deve tranqüilizar a ninguém, medianamente preocupado com a qualidade da democracia brasileira, saber que o governo do dia é estável, por possuir apoio parlamentar do PMDB. O partido é a negação do princípio da representação. Exige, como condição de existência, a vigência de uma cultura política autárquica, na qual o parlamento é um espaço inviolável de negociações com o Executivo. Nessa rede de barganhas, o voto conta apenas como dimensão material e numérica. As temporadas de captura de sufrágio que se abatem sobre o país a cada dois anos não parecem estar a serviço do fortalecimento dos mecanismos de representação política. Em grande medida, reduzem-se a um método eficaz de seleção de operadores políticos – parlamentares - cujo comportamento é ininteligível do ponto de vista dos princípios da representação. Como explicar, por exemplo, que um obscuro deputado carioca, do PMBD, tenha sido considerado pelo governo federal como “dono de Furnas” e encarregado da prerrogativa de indicar seu presidente? O deputado em questão, por decisão de seu partido, controlava importante comissão na Câmara de Deputados, com considerável poder de chantagem sobre o Executivo.
Os politólogos dirão que isso é da vida e que se os homens fossem anjos, o governo não seria necessário. Tudo bem, que seja. Mas, honestamente, cabe ainda falar em “representação política” quando a vida pública do país é regida pela rafaméia nomeada pelo Senador Jarbas Vasconcelos? É difícil imaginar uma alternativa curativa ao “mal do PMDB”. O próprio Senador em sua crítica não pode ser tomado como politicamente inocente. A despeito da pertinência do que diz, seu movimento tem a clara finalidade de, como diz, “dar um Norte” à dissidência que em 2010 marchará com José Serra. Há uma estranha dialética no ar: o Senador e seus adversários dão, afinal, passos necessários para que o PMBD esteja no governo da República, a partir de 2011, sem ganhar as eleições.
(Publicado no suplemento Aliás, do Estado de São Paulo, em março de 2009)

Linchamentos

Renato Lessa
(Publicado orginalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, em abril de 2009)

Há cerca de cinco anos, em um subúrbio carioca, dois rapazes, acusados da prática de assalto à mão armada, foram linchados por uma multidão. A polícia encontrou o fato já consumado e fez apenas uma prisão em flagrante: uma idosa sobre um dos cadáveres, com uma colher de sobremesa, a arrancar os olhos do que restou de um dos supostos meliantes. Levada para a delegacia, nada mais lembrava do transe que a fez participar do ritual de justiçamento
José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, há quarenta anos dedica-se à recolha de informações a respeito dos linchamentos no Brasil, práticas coletivas que vitimam prioritariamente homens pobres e são praticadas por grupos vicinais urbanos, que incluem homens, mulheres e até mesmo crianças. Martins possui um arquivo no qual, desde 1940, estão registrados cerca de 2000 casos. Segundo ele, “o Brasil lincha desde o século XVI” e é o país no qual ocorre o maior número de linchamentos”.
Ainda assim, quase nada sabemos a respeito de porque linchamentos ocorrem. A respeito dos olhos arrancados, Martins dá-nos explicação sugestiva: mais do que destruir o corpo dos vitimados, a multidão que lincha visa apagar todos os sinais de humanidade, o que inclui o propósito de eliminação de suas “almas”. Sem os olhos, condenam-se a uma desorientação eterna, sem qualquer possibilidade de remissão.
Há, por certo, marcadores mais objetivos. Os lincháveis são, em geral, indivíduos acusados de roubos – associados a atos violentos – e, sobretudo, de estupros e crimes sexuais. As multidões de linchadores localizam-se, em sua maioria, nas periferias pobres, com baixa presença dos poderes públicos. Demonstram, ainda, descrença na capacidade punitiva e reparadora da justiça e desconfiam (muito) da polícia. Mas, dizer isto é muito pouco. Quantos brasileiros, afinal, identificam-se com o prontuário social acima delineado, sem que jamais lhes tenha ocorrido participar de um linchamento?
O antropólogo moçambicano Carlos Serra, da Universidade Eduardo Mondlane, tem analisado as “infra-estruturas sociais, na retaguarda dos linchamentos” em seu país - um dos campeões mundiais -, praticados em três modalidades, de acordo com suas vítimas: (i) acusados de roubo e estupro”(homens de 18 a 29 anos); (ii) acusados de feitiçaria (mulheres) e (iii) submetidos à morte social (por mutilação e imposição de sinais físicos, em geral a “feiticeiros”)[1]. Os sinais infra-estruturais estão aqui presentes: criminalidade descontrolada, desemprego, concentração demográfica, etc... Mas, ainda assim, nem todos os submetidos a tais condições passam ao ato, como diriam os psicanalistas.
Carlos Serra analisou redações de crianças do ensino primário, de 11 a 13 anos, desenvolvidas a partir das seguintes perguntas: “o que se deve fazer a um ladrão?” e “o que se deve fazer a um feiticeiro?”. No caso dos ladrões a resposta padrão foi “infringir-lhes castigo prévio e depois entregá-los à polícia”. Para as feiticeiras, a morte pelo fogo. As redações revelam ainda o peso de uma cultura de justiça punitiva e da familiaridade com o castigo físico como forma de correção. A impressionante análise de Carlos Serra inclui, ainda, o relato da explosão de alegria, presente no ritual do linchamento, percebido e vivido como experimento de purificação.
As razões dos linchamentos parecem esfumar-se na própria crueldade humana, tema milenar e sempre inacabado. Afinal, o que conduz membros da espécie a algo como o linchamento? Ainda que as origens sejam obscuras, parece haver método na coisa e um saber acumulado pela experiência. Os linchamentos brasileiros são sempre precedidos de atos de aproximação, nos quais a vítima é atingida por pedras e pauladas. O passo seguinte é o da queda, que permite o máximo de aproximação pessoal e física com o agredido, através de golpes diretos com pés e mãos e uso de facas e instrumentos de perfuração. Mutilações nessa fase não são incomuns, desde que não matem. A fase final, desse ritual que dura cerca de 45 minutos, é representada pelo fogo, imposto com a vítima ainda viva e como garantia de que no resultado final a forma humana não mais será reconhecida. A retirada dos olhos demonstra o cuidadoso zelo de uma multidão capaz tanto de atos de extrema crueldade, como grande de familiaridade com as mais comezinhas práticas inofensivas da vida quotidiana.

[1]. Ver http://www.oficinadesociologia.blogspot.com/.