quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Quais as vantagens da racialização?

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, vol. 242, n. 255, dezembro de 2009)
Uma das questões mais importantes que, durante este ano, estiveram sob inspeção e deliberação no Congresso Nacional diz respeito ao lugar do tema ‘raça’ no ordenamento legal do país. De forma não surpreendente, diferentes visões ensarilharam seus argumentos, em um confronto no qual, para além de estatutos e diplomas legais, é a própria narrativa a respeito de que país somos, e do que o constitui, que está em jogo. Dada a natureza da questão, muitos ângulos podem ser adotados para o enquadramento do debate e para a tomada de posições.

Um ângulo extremamente útil pode ser encontrado em pequeno e engenhoso ensaio intitulado ‘Subsídios para discussão no Senado brasileiro sobre a adoção de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras’, elaborado por Celia Kertenetzky e Marina Aguas, pesquisadoras do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede), da Universidade Federal Fluminense(www.proac.uff.br). As autoras analisam os impactos possíveis da adoção da cota racial, somada à cota social, no acesso à universidade pública.

Graças à emenda feita pelo deputado Paulo Renato de Souza (PSDB/SP), o projeto de lei 73, de 1999 – que continua em tramitação no Congresso – estabelece que 50% das vagas das universidades públicas serão destinadas a estudantes egressos de escolas de ensino médio da rede pública. Essa parcela é dividida em duas subcotas: uma social (estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,55 salário mínimo por pessoa) e outra racial (que inclui pretos, pardos e indígenas, em suas proporções específicas em cada estado). Com base nesses percentuais e em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2007, Kertenetzky e Aguas fizeram um exercício sobre a aplicação desses critérios e produziram três conjuntos de evidências no mínimo interessantes.

1. Estudantes elegíveis às cotas sociais constituem nada menos que 75% do total de concluintes do ensino médio no país (público ou privado). Nas duas pontas, Piauí (92%) e Santa Catarina (58%). Se adotarmos aquele marcador salarial como linha de pobreza, é nítida a maioria esmagadora de pobres no contingente considerado. Como notam as autoras do estudo, dada a extensão da pobreza, seria alta a probabilidade de que um simples sorteio, seguido de ordenamento por nota, atingisse os estudantes mais pobres. Nos casos de Piauí e Alagoas, por exemplo, essa probabilidade seria mais do que alta.

2. A maioria do contingente acima indicado é composta por negros e pardos, que representam 56,1%, contra 43,2% de brancos. Isso implica que, se o foco for a renda e, portanto, os estudantes pobres, os negros serão os mais beneficiados.

3. A esmagadora maioria dos estudantes pobres estuda na rede pública de ensino (92%). Assim, se o foco for a rede pública, o maior benefício recairá sobre os estudantes pobres. De modo mais preciso, 95% dos estudantes pobres negros e respectivamente 94% e 86,6% de seus equivalentes pardos e brancos estão na rede pública. Dada a sobrerrepresentação dos negros e pardos na pobreza, a maior parte dos estudantes pobres da rede pública é negra e parda. Logo, se o foco for a rede pública, “os estudantes negros, que são a maior parte dos estudantes pobres, serão os principalmente atingidos”.

A conclusão principal do ensaio é clara: “Se o objetivo é atingir a população negra, a cota racial parece ociosa.” Ambos os focos, tanto o dirigido aos estudantes pobres quanto o que tem por base as escolas públicas, atingiriam preferencialmente estudantes negros. Com a vantagem de não introduzirem “iniquidades horizontais”, ou seja, a exclusão de não-negros pobres e/ou estudantes da rede pública.

É mesmo o caso de perguntar: quais as vantagens da racialização?

Do racismo ao racialismo

Renato Lessa
(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, vol. 52, n. 253, outubro de 2009)

Países são mais do que agregados numéricos e demográficos. Se tomarmos todos os indicadores sociais, políticos e econômicos – e os demais existentes - de um determinado país e se os acoplarmos um tanto imaginariamente, não teríamos a fisionomia de uma sociedade real, mas tão somente uma barafunda de números. Faltariam as expectativas, as imagens, as crenças, os valores, para dizer o mínimo. Dimensões que não podem ser reveladas em indicadores precisos, mas que, talvez por isso mesmo, constituem o cerne da dinâmica social. Quer isto dizer que países são experimentos reflexivos, mais do que sedimentações materiais. E por assim o serem, parte da atividade reflexiva que encerram diz respeito à busca incessante de respostas a respeito de que identidade possuem e de que futuro devem ter.
O Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pela Câmara de Deputados, mais do que um diploma legal, contém uma interpretação do que é e deve ser o Brasil. Pelos seus termos, os brasileiros passam a, em termos legais, dividirem-se em grupos “raciais” distintos. A um conjunto de afro-descendentes corresponde outro de euro-descendentes, o que é curioso em um país no qual a quase totalidade dos pertencentes a um desses grupos pertence também ao outro.
O reconhecimento de legal de “raças” não é, contudo, privilégio brasileiro. Antes da Câmara ter aprovado o Estatuto – que deverá ainda ser apreciado pelo Senado -, a Alemanha dos anos trinta, sob o nazismo, fizera coisa parecida, por meio da distinção legal entre arianos e não-arianos. Os legados do apartheid sul-africano e o da exclusão eleitoral dos negros no sul dos Estados Unidos, até os anos sessenta, devem ser incluídos na série pouco edificante.
Pelo Estatuto passamos a ter uma história cujo ensino deve ser contado na perspectiva de uma luta de raças. Tratar-se-ia de uma história na qual “brancos” oprimem “negros”, por mais de 300 anos, a definir um quadro que exigiria reparação eterna. Com efeito, a reconstrução da história pretérita produz efeitos no presente e no futuro: o Estatuto estabelece uma série de vantagens fiscais para empresas que empreguem no mínimo 20% de trabalhadores de cor negra – ou não-branca. É de se imaginar os efeitos de tal medida, que acabará por instituir uma divisão racial entre os trabalhadores, quebrando formas tradicionais de solidariedade. No mínimo haverá que julgue um avanço podermos contar, no futuro, com sindicatos raciais.
Pesquisas de natureza sociológica – tais como as desenvolvidas por Nelson do Valle e Silva e Carlos Hasenbalg, a partir dos anos 1970 - indicam que a cor da pele – ou a “raça” – é um marcador social significativo. Os indicadores negativos de renda, e educação quando associados à cor da pele – “negros” ou “pardos” – configuram os estratos sociais mais vulneráveis no país. Por essa via, a sociologia empírica parece ter refutado a idéia de que temos no país um quadro de harmonia “racial”, tal como teria sido sugerido por Gilberto Freyre. Justiça seja feita a Gilberto Freyre. Sua obra não visava refutar a presença da discriminação racial no Brasil, mas simplesmente mostrar a estupidez básica de um racismo renitente diante de um experimento social e histórico fundado em uma combinação, um tanto sincrética, de populações de enorme diversidade e cores de pele distintas.
Há, por certo, um enorme passivo social no país, a submeter os cidadãos a condições injustificáveis. As cores, nesse conjunto, são variadas. Ainda que atitudes racistas sejam contumazes, cabe criminalizá-las e combatê-las no plano da educação e dos valores. O Estatuto da Igualdade, movido pelo impulso impecável de combater o racismo, poderá ter efeito contrário, qual seja, o de instituir, à moda americana, um padrão social baseado em “grupos raciais”, com direito a reconhecimento jurídico diferenciado. Se a coisa passar no Senado, talvez seja o caso de falar em des-Proclamação da República.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Do revisionismo negacionista

Renato Lessa
(Publicado originalmente em mina coluna Sobre Humanos, na Revista Ciência Hoje, vol 45, n. 265, novembro de 2009)
Ossos do ofício. O Brasil, por manter relações diplomáticas com a República Islâmica do Irã, receberá no final de novembro a visita do mandatário desse país, o presidente Mahmoud Ahmadinejad, célebre, entre outras façanhas, pela militante nega-ção da existência do Holocausto. A atitude do dignitário iraniano tem recebido condenação generaliza-da e explícita. A moderação das autoridades brasileiras na matéria não deixa de ser preocupante, para um país que pretende ocupar posição de protagonista no cenário político internacional.
As opiniões do presidente do Irã não configuram uma aberração. Elas estão associadas a uma corren-te autodenominada "revisionista", presente em círculos antissemitas europeus desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Tal corrente nega o episódio que vitimou cerca de 6 milhões de judeus, entre outros – como ciganos, homossexuais e dissidentes políticos – julgados indignos de viver pelos nazistas.
Não há nada de errado, em princípio, com a ideia de revisionismo. O termo surgiu no século 19 associado a causa mais do que defensável: a revisão da condenação de Alfred Dreyfuss (1859-1935), capitão francês vítima de acusações injustas e infamantes, eivadas de antissemitismo. O conteúdo da ideia de ‘revisão’, porém, dependerá daquilo que se pretende rever e do grau de refutação da existência de eventos históricos esmagadoramente evidentes.
Após a Segunda Guerra, emergiu de forma progressiva um ‘revisionismo negacionista’ dotado de claras tinturas antissemitas e, a partir de 1948, antissionistas. Em seu clássico livro Les assassins de la mémoire, o historiador francês Jean-Pierre Vernant (1914-2007) resumiu os ‘princípios’ centrais sustentados pelos revisionistas:
1. Não houve o genocídio praticado pelos nazistas, e a câmara de gás – seu principal símbolo – jamais teria existido.
2. A "solução final" – termo presente no vocabulário oficial do regime nazista – não teria significado senão a expulsão dos judeus para a Europa Oriental.
3. O número de judeus vitimados teria sido muito menor – 1 milhão e não 6 milhões – e resultaria de bombardeios dos aliados e de doenças.
4. A Alemanha hitlerista não seria responsável pela guerra: os revisionistas apresentam os judeus como corresponsáveis pela eclosão do conflito.
5. A principal ameaça à humanidade, na década de 1930, não era representada pela Alemanha, mas pela União Soviética. Por Stalin, não por Hitler.
6. O genocídio judaico teria sido uma invenção da propaganda aliada, fortemente influenciada pelos judeus que, "sob a influência do Talmud, têm propensão à imaginação estatística", segundo antissemitas militantes e revisionistas como o norte--americano Arthur Butz e o francês Robert Fauris-son, ambos ‘historiadores’ execrados por historiadores respeitáveis.
As ‘teses’ do revisionismo negacionista são indefensáveis. Em vários países são tratadas no campo do direito penal, como criminosas. A fracassada tentativa de processar a historiadora norte-america-na Deborah Lipstadt, feita pelo historiador revisionista inglês David Irving em um tribunal inglês, definiu de forma clara o lugar dos revisionistas negacionistas no cenário atual. Lipstadt demonstrou o caráter neonazista das teses de Irving e seu antissemitismo doentio. Nos termos do filósofo israelense Amós Finkelstein, os revisionistas praticam uma "contra-história", uma "narrativa inautêntica e uma ação perniciosa", voltadas para a "distorção da autoimagem do adversário, de sua identidade, por meio da desconstrução de sua memória".
Ahmadinejad é herdeiro dessa tradição revisionista. Sua pregação encontra abrigo em um antissemitismo difuso, assentado em abissal ignorância histórica. Mais do que um ódio a Israel e aos judeus, trata-se da sobrevivência, em pleno século 21, de algumas das mais fundamentais motivações do nazismo.
Ahmadinejad é célebre por negar o Holocausto. A moderação das autoridades brasileiras na matéria não deixa de ser preocupante

Da mediação não-imparcial

Renato Lessa
(Publicado no suplemento "Aliás", do Estado de São Paulo, em 30 de novembro de 2009 )
Dias após discreta e contida recepção oficial no Brasil oferecida ao Presidente de Israel, Shimon Peres, com pompa e certo espalhafato aportou entre nós o Presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad. Relações entre Estados por certo, contêm uma dimensão, digamos, extra cíclica, mais larga no tempo do que a duração dos espasmos políticos imediatos. Afinal, não são regimes que estão a interagir, ou, menos ainda, governos e personalidades, mas entidades dotadas de maior permanência e durabilidade. No entanto, Estados não são entes de razão. Materializam-se, de modo necessário, em regimes e governos, e esses se fazem presentes por seus supremos mandatários. Na impossibilidade da presença de Deus - em versão local - mandou-nos o Irã o Sr. Ahmadinejad. De nossa parte, quiseram inequivocamente os eleitores brasileiros, sem qualquer supervisão divina, que na ocasião daquela visita estivesse o Presidente Lula a representar-nos.
É exatamente nesse abismo entre a impessoalidade e abstração contidas na idéia de Estado e a concretude e personalização dos regimes, dos governos e da presença de seus mandatários que reside toda a questão. Não bastam cândidos formalistas a decretar que “por razões de Estado” devem mandatários de países com relações diplomáticas em curso encontrar-se e que tal justificativa, tal como fazia o saudoso Gustavo Kuerten, “mata o ponto”. Essa é na verdade uma forma curiosa de pensar. Tomam-se normas escritas e formais como explicação em última instância e justificativa para gestos de natureza política. O hábito argumentativo sabe bem a cinismo. Melhor fez Carlos Drummond de Andrade, para quem “os lírios não nascem da lei; meu nome é tumulto e se escreve na pedra”.
No caso em questão, não se trata tanto de tumulto, mas de abismo. Um abismo inscrito entre a formalidade e a operação política. Para além do imperativo dos bons modos, poder-se-ia acrescentar como razão para a visita de Ahmadinejad - antecipada não apenas pela de Shimon Peres, mas pela de Mahmud Abbas - o desejo do governo brasileiro em lançar o país como interlocutor ativo em um dos mais intratáveis conflitos internacionais contemporâneos. Com efeito, não é trivial a presença em curto espaço de tempo, em um mesmo país, dos três personagens indicados. A questão, no entanto, consiste em saber se a presença simultânea é indicador suficiente do preenchimento do papel pretendido. Tudo dependerá, entre outros fatores, do que foi dito aos dignitários que por cá passaram.
Recordemos do patético papel cumprido por José Manuel Durão Barroso, então primeiro ministro de Portugal, ao receber na base das Lajes, na Ilha Terceira (Açores), em 2003, Bush, Blair e Aznar, no que desaguou na intervenção “aliada“ no Iraque. Houve mesmo quem dissesse na altura que, pelas mãos de Durão Barroso, Portugal teria sido o primeiro país a entrar em uma guerra como anfitrião. Descontada a maldade da oposição de esquerda portuguesa, ninguém com juízo mental médio julgou que a cimeira dos Açores representou algo de significativo para a projeção internacional de Portugal. É certo que a quase simultaneidade das visitas ao Brasil, dos mandatários mencionados, tem sabor distinto. Não se trata de reuni-los para simbolicamente lançar um plano comum, mas de afirmar uma vontade de mediação.
Ressalvado o que pode ter sido dito em segredo, e para cada um deles em particular, o que veio a público não é auspicioso. Sem dúvida, o presidente Lula é insuperável na arte de dizer a desafetos - um de cada vez - de que todos possuem lugar em seu vasto coração. São os custos afetivos do presidencialismo de unanimidade. Cada um dos interlocutores do presidente deve ter a convicção de que critérios generosos de justiça fundiária imperam no coração do presidente. Serão tais artes suficientes para a projeção do país como mediador de crises internacionais graves e complexas? Tomara que sim. Não estou aqui a torcer contra, mas o velho hábito da dúvida e da reserva cética sempre faz da suas.
Os hábitos do interlocutor afetuoso não podem, em particular, evitar a sensação de que não somos exatamente eqüidistantes no conflito que pretendemos mediar. A Mahmoud Abbas, por exemplo, foi dito que o Brasil condena a expansão das colônias israelenses para além do território do Estado de Israel e em terras sob jurisdição ainda precária da Autoridade Palestina. Penso não existir, se calhar, causa mais decente e defensável do que essa. No entanto, seria música para os ouvidos de Abbas ter escutado algo a respeito do regime que o Hamas impôs na Faixa de Gaza, com a eliminação física de dezenas de milhares de militantes da Fatah. O deleite musical teria chegado ao máximo êxtase, se nosso mandatário tivesse condenado o apoio e o financiamento iranianos ao Hamas. Isso não foi feito. Será que estamos à espera dos mandatários da Faixa da Faixa de Gaza, para apurar nossa vocação pacificadora?
Do que foi dito, em público, a Mahmoud Ahmadinejad, é inevitável a sensação de falta. A tímida afirmação da vocação pacifista brasileira e a defesa do “direito legítimo” ao desenvolvimento de tecnologia nuclear com fins pacíficos fenecem diante da decisão da Agência Nuclear Internacional de considerar o programa iraniano como incompatível com o Direito Internacional. E como ficamos diante disso? Consideramos a Agência um braço do imperialismo e confiamos no semblante impassível de Ahmadinejad ao escutar as palavras do presidente Lula?E quanto à negação criminosa e obstinada da existência do Holocausto? Nada a respeito foi ouvido, da parte brasileira. É como se o tema não fizesse parte da agenda de cooperação entre os dois estados. O Brasil no momento mantém encarcerado um ex-militante político italiano, acusado em seu país de ter cometido delitos de sangue. Há imensas dúvidas quanto à seriedade do processo ao qual foi submetido naquele país. Ao mesmo tempo, recebemos um negacionista como Ahmadinejad, sem que suas patologias fétidas tivessem sequer um reparo, mesmo educado e gentil. Na verdade, quem falou do Holocausto durante a visita foi o próprio presidente iraniano. Em entrevista ao fim da visita fez a gracinha: disse ter ouvido falar que entre os 60 milhões de mortos da II Guerra, havia alguns judeus. O cinismo da afirmação está a revelar que o personagem não veio ao Brasil para fazer concessões.