sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Limpeza Literária

Renato Lessa
(Publicada em minha coluna Sobrehumanos, na revista Ciência Hoje, dezembro de 2010)

Houve um tempo no qual o escritor Monteiro Lobato (1882-1948) foi fundamental para a constituição de nossa sensibilidade para com o país e o mundo. Ninguém como ele, na literatura brasileira, foi capaz de mobilizar a imaginação infanto-juvenil, e mesmo dos quase adultos, para temas tão variados. Se abstrairmos a obra adulta, dotada de grande mérito, a dedicada à juventude teve valor inestimável, pela associação singular entre exercício da imaginação e ânimo enciclopédico.
A dimensão pedagógica do empreendimento de Monteiro Lobato teve a marca inequívoca da variedade disciplinar. Livros inteiros dedicados a diferentes disciplinas: geografia, física, aritmética, gramática, astronomia. Os livros Viagem ao céu, História do mundo para as crianças, Emília no país da gramática, Aritmética da Emília, Geografia de D. Benta, História das invenções e O poço do Visconde configuravam uma deliciosa Paidéia infanto-juvenil, a um só tempo humanística, moderna e multidisciplinar. Os temas da mitologia grega, assim como a escuta das narrativas populares – ver, por exemplo, Histórias de Tia Nastácia – somavam-se ao quadro. Não há, hoje, à disposição do público infanto-juvenil, obra semelhante e com tal capacidade de sedução literária.
Dois livros infanto-juvenis de Monteiro Lobato exerceram particular impacto na imaginação dos muitos que os devoraram. Em A reforma da natureza e A chave do tamanho, foi tratado de forma sublime o tema da intervenção dos humanos no curso da história e da natureza. Ainda que, ao fim e ao cabo, a natureza apresente as razões para ser como é, no que diz respeito à história o livro A chave do tamanho, publicado em 1942, tem início quando Emília e seus companheiros de estória resolvem acabar com a guerra. Para tal, dirigem-se a um lugar no qual várias chaves controlam as dinâmicas do mundo. Ao tentar modificar a posição da chave da guerra, Emília move a chave do tamanho, transformando os humanos em seres liliputianos. O enredo é delicioso e sugere o quanto a experiência da história e da vida dos humanos é assaltada por nossa capacidade de intervenção e de alteração de circunstâncias.
Seria impossível, hoje, escrever os livros infanto-juvenis de Monteiro Lobato com a mesma linguagem e com o mesmo quadro de valores nos quais foram concebidos. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e muda-se a linguagem, assim como os limites do que é adequado dizer. A literatura, no entanto, é um patrimônio. Como tal, não pode ser refeita e corrigida ao sabor das inovações conceituais que lhe sobrevêm. Melhor é cuidar do patrimônio e desenvolver inteligência crítica e analítica para lidar com ele, tal como ele é.
Parece não ter sido essa a orientação do Conselho Federal de Educação. Por unanimidade, os conselheiros ‘condenaram’ um dos livros de Monteiro Lobato – Caçadas de Pedrinho, por conter expressões racistas externadas pela boneca Emília – e propuseram sua exclusão da lista de livros adotados pelo Ministério da Educação. Em boa hora o ministro da Educação, Fernando Haddad, vetou a estultice. Não seria melhor desenvolver entre os professores uma capacidade de interpretação crítica de passagens daquela natureza? Não seria isso, inclusive, uma ótima oportunidade para tratar com os alunos do tema do racismo?
É de imaginar o cenário tétrico, de limpeza literária, marcado pela transformação do parecer do Conselho em política pública. Quantas vítimas literárias teríamos? O que dizer dos índios tratados nos romances de José de Alencar (1829-1877) e das mulheres ‘vitimadas’ nas peças de Nelson Rodrigues (1912-1980)? É de lembrar, ainda, o processo ao qual foi submetido o livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880), na França do século 19, brilhantemente analisado em livro do historiador norte-americano Dominick La Capra (Madame Bovary on Trial, de 1982). Acusado de obscenidade, o livro foi a julgamento em 1857. Ao fim e ao cabo, tudo acabou bem: o livro foi absolvido naquele mesmo ano e conta-se que o acusador-mor – Ernest Pinard (1822-1909) – terminou seus dias a escrever literatura obscena.

domingo, 5 de dezembro de 2010

O Paradigma Globocop

Renato Lessa
(Publicado no suplemento ALIÁS, do jornal Estado de São Paulo, em 5/12/2010)

Os nervosos acontecimentos ocorridos na última semana de novembro, no antigo estado da Guanabara, foram acompanhados de um conselho dado pelas autoridades aos cidadãos: fiquem em suas casas, evitem as ruas. No recesso de seus lares, os cariocas evadidos do espaço público confinaram-se à persona de telespectadores. Coube ao Globocop, e a uma trupe de repórteres de campo hiper excitados, devidamente inoculados por cargas generosas de adrenalina, a definição dos termos da realidade.

Se Euclides da Cunha pode dizer, em Os Sertões, que o sertanejo é antes de tudo um forte, é possível hoje retificar a proposição e afirmar que o brasileiro é antes de tudo um telespectador. Com efeito, a televisão é a única concessão pública no país com cobertura universal. Vai, com muita folga, adiante dos esgotos, dos hospitais e das escolas. Não é, nesse sentido, exatamente alentador reconhecer que um dos marcadores prediletos de inclusão social, adotados pelos áulicos correntes, diz respeito à facilidade de crédito para compra de hiper-aparelhos de televisão.
Trata-se, mais do que isso, da universalização do acesso a uma forma de realidade, na qual se estabelecem agendas que configuram parte da alma dos brasileiros. Sentimentos, atitudes políticas, decisões a respeito da vida, exemplos, enfim, um grande conjunto de referências para a manufatura das identidades pessoais e compartilhadas tem a sua base informacional e normativa fixada pela universalização à qual aludi.

Durante os dias de invasão das comunidades no complexo do Alemão, os cariocas desfrutaram de cobertura ininterrupta. A nada encantadora alma das ruas só encontrou alguma inteligibilidade quando mediada pela sua tradução televisiva. Os componentes básicos dessa forma de apresentação reúnem uma estética da informação e a delimitação de um regime preciso e confinado para o exercício do pensamento e da reflexão.

A informação é configurada por uma estética de rapidez e de movimento incessante. Parte-se do suposto de que o consumidor de imagens, o cidadão-telespectador, é cognitivamente mobilizado mais por circunstâncias de ação, do que por oportunidades de reflexão. O brasileiro, nessa chave, é antes de tudo, um sujeito entediável e irreflexivo. Tal como os futuristas italianos, é um adepto incondicional da velocidade como, experiência e como valor. Rasantes de helicópteros são, nesse sentido, fundamentais e adequados a tal antropologia, assim como a exibição de repórteres, no terreno, com esgares nervosos e coletes à prova de balas, com cores e logotipos especiais. A estética do combate é trazida para dentro dos estúdios. Foi notável, por exemplo, a indumentária escolhida pelo porta voz da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que compareceu a entrevistas em estúdio, com seu colete à prova de balas.

Repórteres e entrevistadores hiper excitados entrevistaram jovens ex-policiais-combatentes, igualmente hiper-excitados. A exibição de imagens de ação incessante operava como suplemento hiper-cinético ao nervosismo das entrevistas. Um valor maior, portanto, se apresenta: o da adrenalina como virtude cognitiva e como gramática para o tratamento dos dramas da cidade.

Nos marcos da estética da rapidez, o pensamento foi convocado para apresentar suas interpretações a respeito do conflito. Com poucas exceções, ao cidadão-telespectador foi apresentada uma sucessão de especialistas, a repetir os lugares comuns, emanados das versões oficiais e televisivas dos eventos. O “especialista”, dessa forma, reforça o que estabelece o narrador originário. Dois marcadores conceituais invariavelmente apareceram nessa prática de reforço de significados: o da “guerra” e o do “terrorismo”.

O primeiro marcador – guerra - foi devidamente tratado por excelente e oportuno texto do jornalista João Paulo Charleaux, na edição do Estadão de 1º de dezembro: não há fundamento jurídico na utilização do conceito de guerra, sua carga simbólica, ademais, pode ser tomada como autorização para a matança. Com efeito, mais do que indicar a impropriedade jurídica da metáfora, importa dizer que ela define uma interação cujo objetivo é a eliminação dos inimigos. Ninguém vai á guerra para aprisionar o exército inimigo, mas para eliminá-lo. O inimigo preso é o inimigo que se rende e é protegido por convenções precisas. Trata-se, portanto, de um efeito colateral da guerra e não o seu evento central. O contrário se dá com a ação policial: visa prender e só mata em circunstâncias especiais.

O uso da imagem do terrorismo é igualmente problemática. No mínimo, é seletiva. Sob terror vivem extensas comunidades da Zona Oeste carioca, sob o domínio de milícias. A erradicação das mesmas é enormemente dificultada pela presença de policiais e de suas ramificações nos chamados “poderes constituídos”. Esse é, na verdade, o lado duro e podre de uma polícia que se apresentou de modo heróico e glamoroso na “guerra do Alemão”.

Mais do que metáforas, o que parece se fortalecer com o episódio é algo que poderia ser designado como um Paradigma Globocop. Um narrador onipotente, onisciente e onipresente, dotado da capacidade de tudo prescrutar e de uma rede de intérpretes fiéis e fidelizados. Seus efeitos, contudo, não cabem nos limites estreitos que uma crítica por vezes paranóica lhe impõe. O paradigma opera no vácuo e na ausência de instituições de controle social sobre os agentes do poder executivo, para não falar da rarefação do mundo da representação política. Sua onipresença abrange múltiplas funções, entre as quais a de um papel autoatribuído de ombudsman de fato dos cidadãos, movido sabe-se lá por que concepção de vida pública. Diante de sua ubiqüidade, os próprios gestores da segurança pública se vêem obrigados a se expressar e agir nos limites da lei. É evidente que isso é positivo, mas, não nos iludamos, a reforma da polícia é algo ainda muito remoto, a despeito da seriedade de alguns de seus operadores.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Ignóbil Porcaria

Renato Lessa
(Publicado no Caderno Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 21 de novembro de 2010)

Corria o ano de 1901. O chefe de governo português na altura, o ministro Hintze Ribeiro, resolveu promover uma reforma política. O núcleo da bruxaria institucional concentrou-se no decreto que redesenhou os círculos eleitorais, com vistas à obtenção de maiorias mais folgadas para as forças da ordem. Os círculos eleitorais urbanos, por natureza mais irredentos, foram alargados para neles ser incluídos áreas (“concelhos”) rurais, sob tradicional controle oligárquico. No criativo léxico dos democratas portugueses, a inovação acabou denominada como a “ignóbil porcaria”.

A expressão ignóbil porcaria é por demais inspirada para que a deixemos ao sabor da obsolescência do tempo e atada à circunstância histórica que lhe deu origem. Não só é inspirada, mas dotada de alto poder de pregnância e elucidação para com o que se passa em paragens distintas. O, por assim dizer, modelo original IP visava esmagar o radicalismo urbano, “sob o invencível peso do voto rural”, como bem pôs o historiador português Vasco Pulido Valente.

É possível, contudo, imaginarmos versões do paradigma IP caracterizadas não por restrições impostas à manifestação do voto, mas por sua redução a mero componente coadjuvante de cenários secretos e fora do alcance dos eleitores ordinários.

No Brasil, nas últimas eleições, cerca de 80 milhões de eleitores escolheram candidatos às eleições para a Câmara de Deputados. Se a eles somarmos os cerca de 10 milhões que optaram pelo voto de legenda, temos uma base eleitoral robusta, cujo resultado líquido, sob ótica estritamente institucionalista, foi a eleição de 513 deputados federais. A grandiosidade do processo é inegável e passo para manifestações de ufanismo institucional, sobretudo por parte dos que deveriam exercer sobre a política, por supostas implicações acadêmicas e profissionais, uma inspeção mais reflexiva e crítica.

Não obstante, porção considerável do “capital eleitoral“ aludido esteve em jogo durante a última semana, sem que os detentores originários dos votos tivessem a mais pálida idéia do que estava a se passar. As boas almas que julgaram ter participado, no início de outubro, de uma escolha eleitoral entre duas alternativas de governo para o país – uma à esquerda e outra à direita - devem estar confusas com a notícia de que o maior parceiro da vitória eleitoral da primeira – o PMBD – dispôs-se liderar um movimento de composição de um bloco suprapartidário de “centro-direita”. Tal bloco seria ainda composto pelos seguintes partidos: PP, PTB, PR e PSC. Com o partido-guia – o PMDB – o bloco contaria com 202 deputados, de longe a maior força parlamentar na chamada “câmara baixa”.

O líder do empreendimento, o deputado Henrique Alves, de modo comovente, declarou que se trata tão somente de “mostrar a Dilma o jogo arrumado”. Com “jogadores” da estirpe do deputado Eduardo Cunha e do ex-governador Moreira Franco, para ficarmos em cenário carioca, é de se imaginar de que jogo se está a falar. Em chave óbvia e trivial, busca-se consolidar poder no âmbito do Congresso e resguardar e, mesmo, ampliar os “nossos ministérios”. Temo haver, no entanto, aspectos ainda mais preocupantes.

Com o miserável estado da oposição no Brasil, tudo indica que será da presente versão da ignóbil porcaria que ocorrerá alguma. Na verdade, a pior de todas, pois não se tratará de apresentar versões alternativas para a condução do país, mas de pura chantagem. A desorientação do PSDB e a afirmação do ex-PFL como partido liderado por demofóbicos que vieram ao mundo a negócios tornam improvável a consolidação de uma agenda consistente de oposição ao futuro governo. Tudo indica que haverá uma oposição que fará parte do governo, a ele estando perversamente vinculada por sua capacidade de chantagem e sabotagem.

A ignóbil porcaria, no caso em questão, prescinde da presença de manipulações da lei eleitoral. Uma legislação eleitoral doutrinariamente aberta à livre expressão de correntes de opinião, associada à notável modernização dos procedimentos eleitorais, indica antes o contrário. A ignóbil porcaria, em versão brasílica, releva do ânimo oligárquico infrene, não inteiramente isento de fundamentos heterodoxos em matéria penal. Sua lógica é a da neutralização dos efeitos democratizantes que resultam da regularidade eleitoral.

Por conforto nominalista, designamos pelo termo “eleições” o que poderia ser mais bem descrito, sob ótica oligárquica, como temporadas de captura de sufrágio. Do ponto de vista das oligarquias partidárias, trata-se de retirar da massa geral dos eleitores – termo aparentado à “massa geral dos impostos” – recursos políticos para a obtenção de poderes parlamentares com vistas ao controle de instrumentos de governo. O ponto de vista dos democratas não pode ser de natureza idêntica. Deve evitar, sobretudo, a desorientação exercida pelos que sustentam que o jogo é esse mesmo, e que a democracia, por suas próprias características, não passa de um nome palatável para designar a ignóbil porcaria.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Cotas sociais na UFRJ

Renato Lessa
(Publicado em O Globo, no dia 6/9/2010)

O Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em decisão de há poucos dias, aprovou a adoção de cotas sociais para a definição de vagas para ingresso de novos estudantes. O critério social contempla estudantes matriculados na rede pública e provenientes de famílias de baixa renda. Trata-se de uma combinação entre experiência escolar e renda como critérios compensadores de desvantagens presentes na estrutura da sociedade. A decisão da UFRJ – defendida abertamente pelo reitor Aloísio Teixeira – impõe-se como alternativa à adoção de cotas raciais. Nessa orientação, a UFRJ soma-se à USP no que diz respeito à criação de sistemas alternativos de acesso à vida universitária, que não se rendem ao racialismo em curso no país.
Pelo desenho adotado pela UFRJ, parte das vagas para ingresso na universidade será atribuída a estudantes pobres e egressos do sistema de ensino secundário público. A política em vigor na USP tem características distintas, porém parte do mesmo fundamento, qual seja o de privilegiar dimensões sociais e não marcas “étnicas” ou “raciais”. O Inclusp – sigla adotada para designar o programa da USP – confere a alunos provenientes de escolas públicas um acréscimo de 3% na nota do exame de vestibular. O modelo uspiano não considera renda ou “raça”, pois parte da premissa de bom senso que há forte concentração de estudantes pobres e negros no ensino público secundário. Tanto que, as avaliações feitas a respeito do programa reconhecem o aumento no número de negros e índios entre os novos estudantes, a despeito da não consideração desses aspectos na definição da política de inclusão.
O critério adotado pela UFRJ combina de forma engenhosa dois marcadores importantes: origem da escolaridade e renda. Ambos terão como efeito uma vigorosa entrada de estudantes negros e pardos na vida universitária, a despeito da não consideração explícita desse critério. Vejamos: segundo os dados da PNAD de 2007, entre os estudantes pobres do ensino médio, com renda familiar abaixo de 1,5 salário mínimo, cerca de 56% são negros ou pardos e 44% brancos. Ignoro qual o corte de renda a ser adotado pela UFRJ, mas é de se imaginar que uma política de inclusão que se oriente por critério de renda terá como efeito a maior inclusão do segmento mais excluído. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à origem da escolaridade. Esmagadora maioria dos estudantes pobres está na rede pública de ensino (92%). Logo, o foco na rede pública beneficiará inequivocamente os estudantes pobres. Se considerarmos variáveis de “raça”, teremos que 95% dos estudantes pobres pretos e respectivamente 94% e 86,6% dos seus equivalentes pardos e brancos estão na rede pública. Dada maior presença dos negros e pardos no contingente da pobreza, é imperativo concluir que a maior parte dos estudantes pobres da rede pública é negra e parda. Se a origem escolar na rede pública for considerada, por simples ilação lógica, os estudantes negros, que são a maior parte dos estudantes pobres, serão o principal contingente incluído.
Duas questões mais gerais devem ser consideradas a partir do importante gesto de democratização de acesso produzido pela UFRJ.
Em primeiro lugar parece ser indisputado o fato de que uma política que inclua pobres – negros e brancos – é dotada de critério de justiça mais robusto e abrangente do que outra que inclua apenas negros – pobres e não pobres. O contingente prioritário pretendido pelo segundo recorte é coberto, com vantagens, pelo primeiro critério, que aos negros pobres acrescenta os brancos pobres. Em nome de que reduzir o alcance da inclusão a definições “raciais”? O vastíssimo contingente da destituição social de pele clara não merece reparações?
Em segundo lugar, e este é um ponto fundamental, critérios raciais e critérios sociais não são variantes de um mesmo vetor, voltado para generosa inclusão dos barrados estruturais da sociedade brasileira. Há uma distinção fundamental. O corte social associado à pobreza designa um contingente móvel: trata-se de aplicar critérios de justiça que impliquem a sua erradicação. Em outros termos, a idéia é a de incluir pobres para que eles deixem sua condição originária. O critério “raça”, ao contrário, é fixo. Trata-se aqui de incluir para reconhecer uma diferença permanente e, por essa via, de reinventar a história do país como constituída por inapelável “luta de raças”.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Como falam os inimigos: os Diários de Victor Klemperer e a língua do Terceiro Reich

Há pouco mais de dez anos, foi publicada, pela editora Companhia das Letras, uma versão abreviada - de cerca de 900 páginas - dos Diários de Victor Klemperer, obra inestimável para o entendimento - se é que isso é possível - da experiência nazista. A edição abreviada cobre exatamante o período compreendido entre os anos de 1933 e1945. O leitor encontrará nos Diários o registro fino da progressiva implantação do nazismo na vida diária e, do ponto de vista da biografia de Klemperer, o trajeto que o levará ao encontro de sua identidade judaica, o único resíduo existencial que lhe resta diante da supressão de partes constitutivas de sua identidade: alemão, professor de literatura germâmica, combatente da Grande Guerra, etc... Em 2000, a pedido de Sergio Miceli, escrevi o ensaio que ora reproduzo no blog, para publicação no Jornal de Resenhas, então encartado no jornal Folha de São Paulo. A perenidade do texto de Klemperer justifica, a meu juízo, plenamente a exumação do ensaio que sobre ele escrevi.

Renato Lessa

No inverno alemão de janeiro de 1933, a vida do Dr. Victor Klemperer sofre inapelável inflexão. Até então, esse pacato professor titular de literatura românica da Universidade Técnica de Dresden, desde 1920, vinha dedicando-se à leitura, ao ensino e à escritura a respeito de um universo composto por personagens tais como Corneille, Montesquieu – tema de sua tese de doutorado, em 1914 -, Voltaire, Diderot, Rousseau e a miríade de figuras do delicioso século XVII francês, lindamente estudado por Paul Bénichou, em Morales du Grand Siècle e abrigo de céticos, pessimistas, irônicos e libertinos. A exposição a esse universo fez de Klemperer um sujeito híbrido.
Por um lado, ele personaliza o intelectual humanista típico, a combinar erudição histórica e literária, desconfiança diante de pretensões de compreensão exaustiva do mundo e, a despeito disso, disposição incomum de absorver informações e idéias. Ainda nessa chave, Klemperer é o que poderíamos designar como um intelectual permanente: nos seu piores momentos de infortúnio, a partir do desastre de 1933, o temor pela própria vida será invariavelmente acompanhado pelo horror diante do espectro da impossibilidade do pensamento. Esse exercício obsessivo da observação e da leitura e essa insaciabilidade cognitiva estão presentes em Klemperer na persona de um cético prazeiroso, para usar a bela auto-definição que ele mesmo nos proporciona. Como veremos, essa marca tem conseqüências decisivas na escritura klemperiana.
Mais do que humanista com afinidades céticas e cidadão pleno da república das letras, Klemperer é um alemão. Esse é o outro lado da história: o contraponto local de uma identidade que se pretende também referida à uma dimensão não-paroquial. A inflexão de 1933 representa para Klemperer sobretudo a destruição de seu mito pessoal a respeito da circunstância humana mais elementar: a que pertenço, que atributo identitário básico dá sentido a minhas escolhas e ações?
Victor não tem dúvidas a respeito disso. Veterano da Grande Guerra – uma “guerra decente”, em contraste com a que ainda viria -, portador da Cruz de Combate, protestante convertido – embora filho de um rabino: trata-se, portanto, de um alemão. Mesmo supondo que a ênfase nesse atributo, em seu diário, possa ser explicada pela ameaça externa da sua supressão pelos nazistas, é impressionante como a “Alemanha”, na economia textual de Klemperer, é o lastro, a imensa dimensão tácita, de sua vida pessoal. A família, aqui, tem papel remoto. Os irmãos são distantes, mesmo antes da fragmentação imposta pela nova diáspora. O pai é figura mais do que bissexta. A mãe jamais aparece.
A possibilidade da perda do atributo é, portanto, a maior das privações. Em abril de 1934, Klemperer horroriza-se diante do comentário de Grete, sua irmã: “Você pode convencer-se a si mesmo que é alemão, eu não consigo mais”. Abandonada, à sua sorte, no meio de uma Berlim nazificada, Grete suscita em Victor o duro comentário: “Foi tão horrível quanto típico observar de que maneira toda a alemanidade desapareceu em Grete e como ela só consegue e quer observar toda essa situação sob o ponto de vista judaico”. Adotar “o ponto de vista judaico” como referência identitária aparece, portanto, como efeito da desgermanização imposta pelo regime. Grete só pode ser “judia” porque não mais alemã.
São os preconceitos de um “alemão ordinário” que falam através de Klemperer, em suas primeiras tentativas de interpretação da barbárie hitlerista. Diante da notícia de que o comissário de justiça da Saxônia, já em 1933, ordena a retirada das bibliotecas das prisões de textos marxistas e pacifistas, Klemperer comenta: “Sob a ocupação de negros franceses estaríamos vivendo mais num estado de direito do que sob este governo”. À violência de membos das SA, no mesmo ano, contra comunistas, por meio da linguagem mussoliniana do óleo de rícino e das surras, Klemperer exibe sua perplexidade: “Se italianos fazem isso – tudo bem, nativos do Sul, animais...Mas alemães?” Preconceito, perplexidade e desencanto:
“...não acredito que ela (a Alemanha) venha a ser resgatada das mãos desse novo governo. Por sinal, acredito que ela jamais perderá a ignomínia de ter sido tomada por ele. Quanto a mim, jamais voltarei a ter confiança na Alemanha (...)...sinto mais vergonha do que medo, vergonha pela Alemanha. Verdadeiramente, sempre me senti alemão. Sempre imaginei: século XX e Europa Central são coisas bem diferentes de século XIV e Romênia”.
O regime que começa a ser imposto aos alemães em 1933 viola, portanto, todas as cláusulas da germanidade (a essa altura, Thomas Mann já tinha dito que o regime contrariava as cláusulas da humanidade). No entanto, preconceito, perplexidade e desencanto começam a dar passagem, pouco a pouco, a hipóteses distintas, em chave mais fina, ainda que ambígua: “Na Alemanha (...), essa forma de governo não é encontrada em nenhuma parte, é absolutamente não-alemã e, por isso, sem uma duração, de alguma maneira, definível. Mas no momento, está organizada com a meticulosidade alemã e, por isso, não pode ser abolida num tempo previsível (ênfase minha)”
A essência do governo é “não-alemã”, mas a sua forma e a sua efetividade trariam a marca nacional. A contribuição alemã teria, portanto, um caráter meramente prático, a serviço de valores e objetivos de origem diversa. Os diários de Klemperer – de 1933 a 1945 - podem ser lidos como o testemunho da desconstrução dessa crença. Mais do que registro de uma experiência mundana, trata-se de um exercício de sobrevivência e de auto esclarecimento. O passo inicial desse exercício pode ser encontrado em uma passagem sombriamente antecipatória, registrada em março de 1933: “O destino do movimento hitlerista situa-se inquestionavelmente na questão judaica. Não entendo porque colocaram esse ponto no programa em posição tão central. Esse ponto os levará à ruína. Mas, provavelmente, nós iremos junto”. Além da indicação do conteúdo – o anti-semitismo – a ser maximizado pela forma alemã – a “meticulosidade” -, aparece esse novo sujeito: “nós”. A inflexão de 1933 significa a judaização de Victor Klemperer.
As condições de observação, o terror, a avareza de informações e o incessante cheiro de morte, contraditados pela disposição de viver e dar testemunho, presidem uma narrativa complexa, descontínua e com impressões díspares. A única certeza de Klemperer acaba por não materializar-se: a de sua morte sob o III Reich. Em outros termos, os Diários registram uma história contada por alguém que não poderia sobreviver para contá-la. Mas, como ler essa história?
Pragmáticos e ávidos por informações primárias têm nos Diários de Klemperer – mesmo com acesso limitado à edição abreviada, de cerca de 900 páginas, e não ao texto completo - informações, descrições e impressões preciosas a respeito do experimento do III Reich e do que significou viver como um judeu naquele contexto, ainda que protegido por um casamento misto. Os diários e sua obra prima – o inédito entre nós A Língua do Terceiro Reich, publicado na Alemanha em 1947 – constituem - talvez ao lado de outra peça notável e não disponível a leitores brasileiros, O Estado SS, de Eugene Kogon, de 1946 – o que há de melhor, de instantâneo e de mais compreensivo a respeito da experiência nazista. Ainda que, no que diz respeito a Klemperer, a impressão de Franz Neumann – registrada no magistral Behemoth, de 1942 – de que o regime nazista é avesso à explicação racional, pois tratar-se-ia de um “não-regime” e sim de pura desordem pelo alto, permaneça, seus testemunhos são incontornáveis. Da mesma forma que é impossível considerar a experiência do campo de concentração sem a orientação de Primo Levi, Klemperer é nosso guia compulsório para a noite e o inferno do III Reich.
Contudo, mais do que informação, há em Kemplerer uma forma de narrar os fenômenos. O que conduz a uma questão crucial: de que escritura se trata? A resposta a isso remete a muitos planos.
No primeiro deles, e no mais geral, trata-se de uma literatura praticada por escritores in extremis, segundo sábia notação sugerida por Guy Stern. A categoria cobre um conjunto de autores – sob severas e diversas condições de risco – para os quais escrever está associado à decisão de sobreviver pela palavra como seres humanos criativos. Em uma aproximação com a literatura sobre o Holocausto, Alvin Rosenfeld, em A Double Dying: Reflections on Holocaust Literature (Bloomingtom, 1980) sugere: “A literatura sobre o Holocausto nasce...como uma espécie de milagre, não apenas como resultado de um desespero mudo, mas como asserção e afirmação de fé. Em alguns casos, talvez [até] não se trate mais do que tenacidade humana (...) diante da morte brutal. Em outros, trata-se de fé na vontade de rejeitar a obliteração final e maligna. Ou ainda: fé na força persistente e nada estranha de um ânimo para buscar e encontrar novos começos”. A chave da recusa da obliteração nos devolve em cheio a Klemperer.
Esse ato de resistência é precedido de uma decisão ética: a de seguir escrevendo e a de dar testemunho: “Seguirei escrevendo. Esse é o meu heroísmo. Prestarei testemunho, testemunho preciso”. Nos doze anos de ordálio, Klemperer não para de registrar suas impressões. A cada interrupção mais longa – como a da prisão por ter deixado a janela aberta com a luz acesa durante o blackout – segue-se meticuloso esforço de reconstituição dos dias sem acesso ao diário. A inspiração desse cronista é claramente montaigneana. É Montaigne quem aparece como autor sugerido a seus estudantes, nos últimos momentos em que conserva sua cátedra, através de deliciosa passagens dos Essais: ils vont, ils viennent, ils trottent, ils dansent... Klemperer, como Montaigne, escreve os ensaios de sua vida. Não certamente em um castelo e contando com sua memória, mas igualmente ao sabor das impressões provocadas por um mundo que não controla e mantendo-se intelectualmente em movimento. Diante da letalidade do mundo, a escritura é como que uma redenção, um abrigo ou, simplesmente, um antídoto à loucura. A escritura é, portanto, visceralemente tensa: trata-se de exercitar o prazer e a sensação de recuperar a integridade proporcionada pelo pensamento e pela ação textual – ver, por exemplo e em especial, a narrativa a respeito de sua prisão – diante de um mundo letal, no qual os assuntos dispostos à observação são antes objetos de horror do que de conhecimento.
O caráter incognoscível dessa experiência não radica apenas no horror e em sua incompatibilidade com conhecimento sistemático. Além da incerteza abrigada pela certeza do terror, há a surpresa freqüente das situações de anticlímax: tratamento gentil e humano por parte de alemães ordinários, aparentemente desconhecidos de Daniel Goldhagen, e o acaso, o puro acaso, pai, suspeito eu, de considerável porção dos eventos humanos. Klemperer é salvo da morte por sua mulher Eva, “ariana” segundo a língua do III Reich. Protegido por um casamento misto, Victor – um dos 168 judeus sobreviventes de Dresden - escapa da morte certa, em fevereiro de 1945, com o bombardeio daquela cidade, executado pela RAF. Alguma utilidade, portanto, pode ser depreendida da estupidez do bombardeio de Dresden, dizimada quando a sorte da guerra já estava decidida. De qualquer maneira, as bombas inglesas trazem o caos e com ele vida para Victor, agora livre de sua estrela amarela, arrancada de seu paletó por Eva - sempre Eva - e do acréscimo de Israel em seu nome.
Essa é, portanto, uma história de acasos e de certezas, que transita entre a sensação instantânea de estar vivo e o reconhecimento incontornável de que tudo acabará em morte. Essa é uma história narrada à moda de Montaigne, mas também de Primo Levi. Se considerarmos a brilhante imagem de Primo Levi – a da complexidade do estado de desgraça -, exposta em sua narrativa da experiência de Auschwitz, veremos que essa é a coluna, digamos, metodológica da narrativa de Klemperer. Pela imagem, Levi denota um processo no qual cada infortúnio sofrido, mesmo que momentaneamente suprimido, dá lugar ao reconhecimento e ao domínio de outro infortúnio: à supressão do frio, com o fim do inverno, sobrevinha a ditadura da fome; essa, se por acaso saciada minimamente, permite que consideremos a doença, ou outra fonte de infortúnio qualquer. A dor, mais do que cubista, revela-se sob camadas de malignidade, em uma disposição arqueológica que evoca o inferno de Dante. A história de Victor e de Eva segue a lógica da complexidade do estado de desgraça: isso faz com que todas as avaliações registradas ao fim de cada ano – de 1933 a 1944 –, e sempre a indicar que as coisas nunca estiveram piores, embora retrospectivamente sujeitas a reparos, sejam verdadeiras.
O leitor dessa história sabe como as coisas terminam. Se medianamente culto, dispõe de excelentes histórias, algumas das quais tentam explicar o inexplicável. Mas, Victor não sabe do que se trata, ignora o alcance das coisas, ouve falar imprecisamente de Auschwitz apenas em 1942 e, sobretudo, não tem a visão do final, ainda que tenha a certeza da morte. Essa é a mais radical experiência da escritura in extremis: eis aqui os ensaios da minha vida, pelos caminhos que conduzem à minha morte certa.
A decisão de escrever é condição necessária da escritura. Essa proposição trivial adquire no caso de Klemperer uma aura dramática e remete a um enigma: Victor escreve porque fica na Alemanha. Sendo assim, como explicar essa decisão de ficar?
Havia na Alemanha, em 1933, cerca de 500.000 judeus. Através de sucessivas ondas de migração – que incluem irmãos e amigos de Klemperer – e até 1941, quando a saída do país ficou impossível, apenas 1/3 permaneceu. Na posição que ocupava, a fuga do nazismo, e do país, não era para Klemperer impossível. Ao longo do diário, várias razões são apresentadas: todas elas denotam inadaptação a qualquer coisa que não fosse alemã. Klemperer constrói uma casa nova, nas cercanias de Dresden, aprende a dirigir com quase 60 anos de idade e compra um automóvel, carinhosamente designado como “bode velho”. Seus movimentos indicam a direção de um enraizamento, em um mundo que a todo momento o define como “personalidade problemática”.
Como explicar, então, esse apego? Kurt Schwitters, artista plástico alemão e um dos criadores do dadaísmo, sai da Alemanha em 1933 e, mais do que isso, decide abandonar a língua. Em seu exílio inglês, Schwitters não mais utiliza a língua natal, pois a crê contaminada pelos símbolos da “nova ordem”. Klemperer representa o negativo da atitude de Schwitters. O III Reich é, antes de tudo, uma linguagem. Antes de Wittgenstein, Klemperer está a sugerir que sendo uma forma de vida, o III Reich é um contexto linguístico e semântico. Talvez seja exagero dizer que fica na Alemanha para estudar a linguagem do III Reich. Isso pode soar como falácia: post hoc, ergo propter hoc. No entanto, se esse não é o motivo, creio ser essa a razão. A chave dessa suposição encontra-se plenamente apresentada na obra-prima A Língua do Terceiro Reich, de 1947 .
O apego a essa manifestação do regime resulta, ironicamente, das proprias supressões que ele impõe. Privado do acesso a bibliotecas, expulso de sua casa e da possibilidade de exercer seu ofício em bases normais, a língua de seus inimigos adquire centralidade. Klemperer, assim, apega-se a algo que o regime não pode suprimir ou a ele negar: a sua linguagem. Tudo o mais pode ser retirado: vida, bens e dignidade. Mas, sob condição de oferecer a Klemperer uma coleção notável de fenômenos: as palavras, as locuções e, ao fim, os sons que estruturam a nova forma de vida. Victor sobrevive para observar como falam os inimigos, para revelar a intimidade e os efeitos de seus jogos de linguagem. Seus textos concedem ao leitor o privilégio inestimável de testemunhar nossa vitória final sobre o nazismo.

domingo, 22 de agosto de 2010

A crítica da ficção racional

Renato Lessa

Se você sente algum incômodo com a imposição do vocabulário da "rational choice" como linguagem natural da política, sugiro como bálsamo a leitura de um livro, que combina coragem com acuidade, a respeito dos fundamentos daquela corrente ideológica, que pretende apresentar-se como paradigma científico. Trata-se do livro de Bruno Sciberras de Carvalho, jovem professor adjunto de Teoria Política do IFCS/UFRJ, intitulado "A Escolha Racional como Teoria Social e Política: uma interpretação crítica" (Rio de Janeiro: Topbooks, 2008). Tive a alegria de ser profesor de Bruno, no finado Iuperj, e de ter partipado de sua banca de doutorado, ocasião em que apresentou como tese o texto que deu origem ao livro mencionado. Honra extra sobreveio quando Bruno convidou-me a escrever a orelha de seu livro. Reproduzo-a aqui, como um convite á leitura do livro.


No conjunto das Ciências Sociais, a Ciência Política, hoje, candidata-se a ocupar o segmento mais conservador. Tal conquista não lhe parece ter sido atribuída por sociólogos ou antropólogos, os outros habitantes do conjunto mencionado. São movimentos no seu próprio interior que a têm transformado em um saber rendido à materialidade dos fatos brutos e cada vez mais distante da alucinação originária dos filósofos da política que, como diria James Joyce, cerravam os olhos para melhor ver as coisas.
Dois movimentos, ao longo da história recente da disciplina, indicaram os rumos dessa virada conservadora. Antes de tudo, em fins dos anos 50, com a auto intitulada revolução behaviorista, a Ciência Política estabeleceu sua ruptura com o campo das Humanidades. David Easton fez o elogio dessa recusa ao definir a nova forma de cientificidade: uma revolução na coleta de dados. Séculos de metafísica, especulação filosófica e de imagética variada sobre diversos mundos possíveis são suprimidos como modos de uma pré (ou anti) cientificidade. Os fatos governam o mundo e o que nos resta é recolhê-los diligentemente. Mais vale uma série estatística nas mãos do que dois filósofos políticos a voar.
A partir dos anos 80 e 90, outro passo decisivo marcou a Ciência Política contemporânea. Trata-se, agora, de uma ruptura com a própria tradição das Ciências Sociais, a partir da difusão da crença de que as instituições políticas podem ser mais bem compreendidas se tomadas como entes autárquicos, dotados de uma lógica irredutível a causalidades “exteriores”, sejam elas sociais, históricas ou, muito menos, culturais. O institucionalismo triunfante – presente nessa fixação das instituições como o objeto por excelência dessa nova ciência exata – fundiu-se, ainda, com um conjunto de suposições sobre a natureza humana que a descreve como uma máquina global de maximizações, tal como a definiu Jon Elster.
Pois bem, institucionalismo cum escolha racional configura um híbrido ideológico que replica os sinais civilizatórios do tempo presente: o homem maximizador – produto e premissa do fundamentalismo de mercado – é tomado como chave analítica para o seu próprio entendimento. Conhecer, portanto, é reiterar o que se vê.
O livro de Bruno Carvalho resulta de excelente e corajosa investigação a respeito dos pressupostos da teoria da escolha racional, fundados na postulação de um agente humano maximizador de utilidades, uma variante especial do homo sapiens que bem mereceria a designação de homo choicer. A proposta de Bruno é a de investigar os fundamentos dessa perspectiva de configuração do social. Ao fazê-lo revela que, mais do que (ou menos do que) estabelecer um conjunto de hipóteses analíticas, a escolha racional configura um desenho de mundo inóspito a qualquer perspectiva emancipatória, fundada em suposições mais complexas a respeito da condição humana.
O trabalho de Bruno mostra, ainda, que o predomínio conservador está longe de ser inelutável. É fundamental exercer a crítica da escolha racional como paradigma científico e, sobretudo, como forma de vida. Com o livro de Bruno, temos à nossa disposição um inestimável arsenal crítico. Depois de lê-lo somos restituídos à convicção de que é tão necessária quanto viável a construção de um saber da política, crítico e reconciliado com a tradição das Humanidades e das Ciências Sociais.

Elucidações Raquíticas

Renato Lessa

(Publicado no suplemento ALIAS, do jornal Estado de São Paulo, em 22/08/2010)

Não acompanho a sede por debates, quando se trata de campanhas eleitorais, presidenciais ou não. Salvo nem tão surpreendentes surpresas, representadas por personagens colaterais, que se permitem dizer o que não diriam se fossem efetivamente competitivos, a coisa, em geral, sabe a trucagem e a oportunidade para exercícios de dissimulação. A política exige representação, por certo. Em grande medida, ela é representação, pois a possibilidade de dizer algo que produza impacto na configuração pública da sociedade exige o pôr-se em um lugar artificialmente construído, para que isso seja possível. É simples a coisa: não há política natural e isso exige atos de representação.

Não vai, portanto, nenhuma postulação por uma autenticidade perdida, do tipo da que exigimos quando lidamos com, digamos, pessoas naturais ou com seres que habitam nossos círculos de intimidade. Dilma, Marina, Plínio, Serra e os demais não nos interessam – ou não nos deviam interessar – por atributos que seriam mais bem apresentados em revistas de celebridades. São por definição, e como nos ensinou o Dr. Hobbes, pessoas artificiais. Quando destilam autenticidade e espontaneidade, estão a representar. Melhor faríamos se nos perguntássemos: o que estão a representar quando pretendem não representar?
Tal postura de, digamos, ceticismo eleitoral parece-me recomendável, sobretudo se considerarmos que o que se diz em campanhas não prefigura necessariamente o que se fará no governo. Por falha mnemônica ou traição, por certo, mas, sobretudo, pela implacável presença do acaso, do imponderável e da ação de dinâmicas sociais e mundiais sobre as quais não se tem honestamente controle algum. Por certo, faz parte do exercício de representar uma persona pública minimizar a presença da ignorância como componente inerradicável dos humanos. Há um que de delírio obsessivo e de onipotência do pensamento na coisa.
Mas, vá lá, até que debates servem para algo. Diante da eliminação da discussão política como prática corriqueira, debates, por mais laqueados que sejam, e horários dito gratuitos acabam por ser o que se tem. Vale dizer, de passsagem que o estado da comunicação política no país, como diria o saudoso Zé Trindade – um autêntico exemplar da vasta série brasileira dos Zés -, é de amargar. Frases curtas, idéias simples, plasticidade, emoção, tudo isso assentado na suposição de uma cláusula pétrea: a menoridade cognitiva dos cidadãos, que devem ser tratados como sujeitos dotados de baixa reflexividade. Os realistas, rendidos aos fatos e à inevitabilidade das coisas, podem acrescentar: isso ocorre aqui e alhures. A conclusão analítica é notável: a infantilização do vocabulário das campanhas é um marcador de maturidade e aperfeiçoamento democrático.
A utilidade à qual aludi pode dizer respeito, por exemplo, a eventuais atos falhos, durante debates e que podem ser elucidativos. Não nos é dado mentir a respeito de atos falhos ou lapsos momentâneos de falta de memória e sinceridade, embora possa haver, por certo, trucagem na matéria. O debate promovido pelo jornal Estado de São Paulo, entre os candidatos a vice-presidente possui, entretanto, utilidade extra. Menos pelo que dizem que pensam – ou pensam que dizem - os participantes, mas pela sinalização que emitem pelo fato de terem sido escolhidos para o papel.
Em tal aspecto, as marcas são claras: o vice de Serra, a indicar a maior inflexão à direita já feita na história do PSDB – maior mesmo do que a transformação de Alckmin no grão-chefe tucano e, a paulista -; o vice de Dilma, a exibir a solidez do apoio da grande máquina que dirige e a sugerir que possui densidade e, sobretudo recursos políticos para ultrapassar mera coadjuvância; por fim, o vice de Marina, a exalar a cultura da pureza das ações sociais não estatais e do sucesso pessoal e empresarial altruístico.
Mas o que dizem de relevante os postulantes à vice-presidência? Em meio ao debate superficial e fragmentado, chama a atenção o recurso ao plebiscito e ao referendo como forma de lidar com questões ditas espinhosas, tais como o aborto. Dois dos postulantes – Temer e Leal - defendem tais recursos como forma de praticar a “democracia direta” ou “participativa”. O vice de Serra preferiu considerar o tema do aborto a partir da idéia de que se deve evitar o sexo entre adolescentes. Causa ingrata, então não? Lembra mesmo Juarez Távora, na década de 1950, a solicitar que os operários apertassem os cintos.
O recurso retórico a “formas de democracia direta” converteu-se em mantra nos últimos anos. Conferem-se atestados democráticos a qualquer ação coletiva que seja capaz de dirigir aos poderes constituídos demandas por políticas públicas preferenciais que possam ser chamadas de suas. Demandas com freqüência formuladas em cenários corporativos e segundo critérios majoritários. Para os vice-candidatos em questão, mais – o menos – do que doutrina democrática, trata-se de passar a bola. As correntes organizadoras da opinião política – supostamente partidos políticos – já não contam. É a pureza e a espontaneidade do “eleitor” que devem decidir sobre temas candentes. Que o diga o tema do desarmamento. A menção ao instituto supostamente participativo, mais do que índice de compromisso democrático, pode estar a sugerir raquitismo político. Os vices parecem espelhar-se em seus chefes. Não surpreende o fato de que tenham nos proporcionado vice-elucidações.

domingo, 15 de agosto de 2010

Estado Providência

Renato Lessa

Há dois anos, em agosto de 2008, publiquei este artigo no suplemento Aliás, no jornal Estado de São Paulo. O caso foi vergonhosamente esquecido e os culpados virtualmente anistiados. Para marcar os dois anos do trucidamento dos jovens do Morro da Providência, republico no blog o artigo.


O filósofo francês François Lyotard disse, em uma certa altura, que o Holocausto assemelhou-se a um terremoto que acabou por destruir os instrumentos de mensuração e detecção de terremotos. Ainda que nosso horizonte imediato de malignidade não se compare ao do extermínio brutal e cuidadosamente perpetrado pelos nazistas, há algo a reter na idéia de um desastre que corrói a própria possibilidade de compreendê-lo.

No calor dos acontecimentos iniciados pela ação do Exército no morro carioca da Providência e que culminaram com o trucidamento de três jovens, a opinião circunstanciada dos especialistas foi solicitada, como recurso de elucidação daquilo que a olhos, vá lá, normais aparecia como inexplicável. Entre as tentativas de elucidação, uma em particular chamou-me a atenção, pois viria a ser repetida por outros especialistas e por colunistas de notória expressão conservadora. Na noite do dia do enterro dos três jovens, um veterano especialista no tema da violência atribuiu – em entrevista televisiva – o evento a uma questão de treinamento (sic). Em termos diretos: o Exército não foi treinado para lidar com a segurança pública, logo, por mais lamentável que seja, o episódio inscreve-se na ordem das possibilidades.

Não desejo prosseguir com essa referência em chave assim tão pessoal, mas a reação de meu filho de 18 anos, a meu lado, abriu-me uma janela de reflexão. Ao ouvir a sábia explicação, disse meu filho em sua linguagem especial de rubro-negro carioca, a qual aqui penso traduzir: “eu não fui treinado para lidar com segurança pública, mas não entregaria três seres humanos para a morte certa, nas mãos de assassinos notórios”. Com efeito, a observação possibilitou o desfrute da elevação existencial que sobrevém com a indignação: acabam de trucidar três jovens inocentes e o sujeito põe-se a falar de “treinamento”.

Os instrumentos de mensuração de desastres sociais – e seus operadores -parecem ter sucumbido aos desastres. Há um evidente hiato entre possíveis despreparos operacionais, ou lapsos de treinamento, por parte dos chamados “agentes da lei” e aquilo que seres humanos se permitem fazer com outros seres humanos. E é disso, primariamente, que se trata. Uma ciência social sem espírito está, às cegas, a procura de regras e instituições para retificar a vida social. A boa regulação e o bom desenho institucional acabarão por nos redimir, dizem-nos. Claro está que uma nova escuta do social se impõe, que seja capaz de reorientar nossas observações e fazer do tema e do lugar do sofrimento humano o núcleo sobre o qual toda a atenção deve incidir. Há muitas camadas no evento em questão a considerar, antes que nos preocupemos com problemas de “treinamento”.

Antes de tudo, a primeira camada do evento, a do registro do nome de cada uma das vítimas, antes que caiam no abismo infinitesimal da numeração estatística: Wellington Gonzaga Costa, 19 anos; Marcos Paulo da Silva, 17 e David Wilson Florêncio da Silva, 24. Os três foram detidos no Morro da Providência por onze militares do Exército brasileiro, chefiados por um tenente e, depois de um périplo que incluiu maus tratos imediatos e uma ida ilegal ao quartel, foram entregues a traficantes de uma área “inimiga”, que procederam ao esperado. Um dos primeiros impulsos da cobertura jornalística consistiu em informar-nos a respeito da folha penal de cada um dos vitimados, como que a sinalizar os limites adequados de nossas reações. Omito, aqui, tais dados, por absolutamente irrelevantes. O que importa registrar é que, em um intervalo de poucas horas – da detenção à morte, os jovens só poderão ser descritos por aquilo que os laudos da autópsia revelariam do que foi imposto a seus corpos. São seus laudos cadavéricos que hoje servem de suporte para a notoriedade que acabaram por obter, do único modo que lhes foi facultado.

Wellington foi severamente torturado, com golpes de madeira e barras de ferro; levou 26 tiros por todo o corpo – tiros nas mãos, pés e joelhos e em um olho -; teve ainda, durante o suplício, os braços amarrados e as coxas perfuradas por um vergalhão de ferro. David foi igualmente torturado e baleado com 26 tiros por todo o corpo; suas pernas foram quebradas e seu tormento arrastou-se por uma hora. Marcos levou apenas um tiro, que lhe perfurou o pulmão e a aorta, mas foi arrastado pelos cabelos, pelas vielas do Morro da Mineira. Um experimentado legista – testemunha do que há de mais radical na dor humana – comentou: os três jovens sofreram barbaramente antes de morrer. É esse o ponto nuclear do evento: as marcas finais fixadas nos corpos dos três supliciados.

A câmara de gás de Auschwitz ainda hoje conserva em suas paredes as marcas das unhas dos que ali foram eliminados do mundo. Hoje se apresentam como pormenores e fragmentos que interpelam e obrigam a imaginar o complexo e imenso horror do campo de extermínio. Pequenos arranhões sobre as paredes são suficientes para que toda a experiência do horror seja evocada. Sabemos bem ler aquela partitura. O que se nos impõe, agora, é aprender a ler os laudos de autópsia e de corpo de delito de jovens idênticos aos vitimados do Morro da Providência. Na impossibilidade de escutar seus gritos e pedidos de ajuda, o que dizem seus parentes, amigos e vizinhos deve ser tomado como uma arma de elucidação do que se passa nos meandros mais sombrios e letais da vida social.

Os relatos falam-nos de uma ocupação militar, suscitada por uma fétida aliança política, entre o Presidente da República e seu candidato a prefeito do Rio de Janeiro. O rebatimento da aliança sobre a área do Morro da Providência deu-se sob a forma da participação do Exército em obras de recuperação de fachadas e telhados. Com a graciosa oferta de mão de obra, sobreveio a ocupação militar, sob pretexto de dar segurança aos operários. No enterro dos rapazes, a comoção generalizada não inibiu a percepção adequada da rede de causalidades que tornou possível o evento em questão: Lula, o Exército e o senador Crivella foram citados de modo pouco carinhoso, para dizer o mínimo. O que esperar de uma aliança desse tipo? Querem o que? (Crivella, aliás, não fosse tudo isso, mereceria ainda assim severo castigo eleitoral pelo nome magnífico de seu programa, designado como “cimento social”).

Dos vizinhos, ouvimos o testemunho do toque de recolher, das repetidas revistas ilegais, das ameaças com armas e da menção a casos precedentes de entrega de “elementos” suspeitos a milícias e a traficantes. Melhor do que parafrasear, é ouvir o que diz uma mulher de 55 anos: “Eles (o Exército) fazem igual à polícia. Revistam nossas bolsas, colocam os moradores na parede, olham a mochila de crianças, jogam spray de pimenta”. No caminho para o enterro dos jovens, a bandeira brasileira que havia sido fincada pelos ocupantes foi arrancada pelos moradores que ali pretendiam por um pavilhão de cor mais adequada. Negra, por certo. O pavilhão foi reposto pelos soldados e hoje, acrescenta à sua simbologia histórica o fato de indicar quem manda no pedaço.

Duvido que um dos moradores ouvidos tenha lido o filósofo italiano Giorgio Agamben, famoso, entre outras coisas, por declarar que vivemos todos – e em toda parte - em um “estado de exceção permanente”. Mais contido, o morador sem metafísica afirmou: “quarenta anos depois, voltamos à ditadura”. Por experiência pessoal, e não por pirotecnia intelectual, o morador introduz um aspecto central do drama: depois da evidência incontornável das marcas impostas aos corpos dos vitimados, segue-se o relato da experiência de viver sob estado de exceção, de suspensão de regras de previsibilidade e de proteção coletiva e individual.

Depois de vinte anos de vida democrática, o sistema de segurança e controle da ordem social parece ser irreformável. Os piores desenhos de política parecem encontrar abrigo perfeito na mão de psicopatas, tal como o infeliz que pretendia dar um “corretivo” e “apenas uma surra” nos “elementos”. Parece não haver alternativa imediata a não ser a resistência popular aos espasmos despóticos. As mães dos jovens do Morro da Providência parecem ter entendido isso, da maneira mais dolorosa possível. O martírio de seus filhos valeu como um terrível ato de elucidação. Stabat mater dolorosa...lacrimosa...

terça-feira, 6 de julho de 2010

A Primeira esquerda brasileira

O texto que aqui publico, devidamente exumado, foi elaborado há alguns anos e publicado no saudoso site concebido e dirigido pelo jornalista Flavio Pinheiro, o www.nominimo.com. Havia ali espaço para muitas coisas, o que incluia minhas eventuais colaborações, frequentemente feitas sob a forma de comentários a respeito de livros que eu julgava interessantes. É o caso de um livro, que pouco impacto teve (“Republicanos e Libertários: Pensadores Radicais no Rio de Janeiro, 1822”), mas que, de uma forma por vezes confusa - talvez pelo fato do país, naquela altura, já ser ele mesmo confuso - procurou iluminar um momento crucial na configuração do país, nos anos vinte do século XIX. Denominei o pequeno texto que escrevi a respeito como "A primeira esquerda brasileira". Ainda hoje sigo a pensar que era exatamente disto que se tratava. Vale a pena, ainda, o livro e, se calhar, a reflexão que fiz a respeito dele. A ver vamos.

Sergio Buarque de Holanda, em iluminada avaliação do legado colonial brasileiro diante das novidades das duas primeiras décadas do século XIX, sugere uma engenhosa hipótese de periodização. No lugar dos marcos canônicos – 1808, 1815, 1820, 1822, por exemplo –, nosso principal historiador propõe uma forma de datação na qual o período compreendido entre 1808 e 1836 ganha particular relevância. Menos por conter datas e acontecimentos que mais tarde viriam a somar-se à crônica da história da Independência – ou à sua “lenda histórica”, como disse Emilia Viotti da Costa – e mais pelo fato de que nesses vinte e oito anos o país abrigou um verdadeiro laboratório de experimentos políticos e institucionais. Segundo Sergio Buarque, “só depois, e mesmo durante o gabinete conciliador de Paraná, é que teremos a verdadeira reação monárquica”.
Localizar a “reação monárquica” nos idos da década de 1840, fazendo-a recuar, mesmo, à década anterior, na regência de Pedro Araújo Lima – sucessor de Feijó –, não é, com certeza, original. A marca é tradicional, consagrada e presente em muitos historiadores do 2o Reinado. Euclides da Cunha – em “Da Independência à República” – e Oliveira Vianna – em “O Ocaso do Império-” –, para evocar dois gênios, sustentam a datação referida.
A fertilidade da periodização sugerida por Sergio Buarque de Holanda reside em um aspecto que muitos poderiam tomar como negativo: entre 1808 e 1836 era virtualmente impossível estabelecer qualquer previsão a respeito do futuro político e institucional brasileiro. A “lenda histórica” da Independência nos induz a organizar fatos julgados “relevantes” no processo de separação de Portugal. A chegada da Corte portuguesa e a abertura dos portos, em 1808, a elevação a Reino Unido, em 1815, o Fico e a declaração final de Independência, em 1822, parecem perfilados no tempo, a indicar um processo cumulativo e condenado a desaguar na criação do Império do Brasil. O resultado final teria sido produto da moderação e do engenho de estadistas, eqüidistantes de posições extremadas.
O livro de Renato Lopes Leite – “Republicanos e Libertários: Pensadores Radicais no Rio de Janeiro, 1822” (Civilização Brasileira, 2000) –, discretamente lançado em meio ao boom editoral a respeito da história brasileira do século XIX, fornece excelente oportunidade para retomarmos as impressões de Sergio Buarque. O livro, que resulta de uma tese de doutoramento, pretende reconstituir o confuso e errático debate político dos anos 1821 e 1822, destacando o papel nele cumprido de um “imaginário republicano”, emoldurado pelos agitados meses que antecederam a Independência, na cidade do Rio de Janeiro. O principal mérito do texto é o de destacar a presença do que poderíamos designar como a primeira esquerda brasileira, materializada em um conjunto de ativistas – jornalistas, padres, políticos, juristas – associados a uma forma de propaganda republicana de corte bastante radical.
O principal foco do livro é a atividade jornalística e política – digna dos melhores especialistas em agitprop – exercida por João Soares Lisboa. Criador e redator do primeiro diário publicado no Rio de Janeiro – o “Correio do Rio de Janeiro” –, Lisboa pertencia a um grupo que a pena do conservador Visconde de Cairú não exitou em designar como de “perturbadores públicos” (entre eles tive a alegria de encontrar um Lessa: o padre Antônio João de Lessa, português, maçom e conhecido na altura como o “Catão Lessa”). A principal façanha desses “perturbadores” foi a conhecida “Representação do Povo do Rio de Janeiro”, dirigida ao príncipe D. Pedro em maio de 1822, que reuniu mais de 6000 assinaturas e que exigia a convocação de uma “Assembléia Geral Representativa”, ou “Cortes Brasileiras”.
É importante considerar que na altura, se estava claro que os tradicionais laços coloniais entre Brasil e Portugal eram insustentáveis, de modo algum o futuro imediato possuía qualquer visibilidade. O que a “Representação” sustentava era a necessidade de uma Assembléia Representativa, que funcionaria como sede da “soberania brasílica”. Reagindo à imposição das Cortes portuguesas, instaladas após a Revolução do Porto (1820), que haviam suprimido o papel do Rio de Janeiro como núcleo político, ao resubmeterem as províncias brasileiras ao controle direto e exclusivo de Lisboa, a “Representação” pode ser percebida como postulação de um caminho nítido em direção à independência. Uma independência que acabou não sendo, mas que se tivesse sido teria inaugurado um país sobre bases políticas e institucionais distintas. Hoje, se tudo corresse bem, estaríamos evocando outros founding fathers.
Ao evocar o episódio da “Representação”, o importante livro de Renato Lopes Leite, põe em relevo o lado urbano, radical e democrático da política brasileira na altura, como um dos componentes do processo de independência. A independência que foi, e que pode ser reconstituída nas idéias e nas ações de homens como Cairú e José Bonifácio, foi feita em grande medida contra a alternativa apresentada pelos radicais do Rio de Janeiro. Derrotados em 1822, eles apresentar-se-ão em outras ocasiões. João Soares Lisboa, por exemplo, morre em combate, em 1824, na Confederação do Equador, defendendo a sua idéia de república.
A “Representação do Povo do Rio de Janeiro”, além de indicar a sede da “soberania brasílica”, exibia, ainda, uma clara opção federalista (uma “união frouxa” entre as províncias) e uma clara defesa do voto direto. Um dos membros do grupo odiado pelo Visconde de Cairú, o jornalista Gonçalves Ledo assim sustentava a opção pelas diretas-já: “Que razão podemos dar, que direito apresentar para roubar aos indivíduos o juz de nomear aqueles que os hão de representar na fundação daquilo que eles têm de mais caro, direitos naturais e imprescindíveis anteriores a toda lei?”
A marca de seis mil signatários, em uma cidade cuja população branca a adulta, nos idos de 1822, talvez não tenha excedido trinta mil almas, é notável e indica dose considerável de envolvimento cívico. A manifestação tinha, contudo, precedentes. Cerca de um ano antes da “Representação”, em abril de 1821, uma reunião de eleitores do Rio de Janeiro, na então Praça do Comércio – em frente ao belo prédio de Granjean de Montigny (hoje Casa França-Brasil) – foi interrompida com gritos de “aqui governa o povo” e “haja revolução”. A malta exigiu do rei D. João VI, que ainda aqui se encontrava, o juramento da então liberalérrima Constituição de Cadiz, de 1812, e sua permanência no país, em aberto desafio às Cortes portuguesas. Enquanto o rei acedia à multidão, seu filho – D. Pedro – comandou sangrenta repressão. Segundo a viajante inglesa Maria Graham, em seu “Diário de uma Viagem ao Brasil”, “cerca de trinta pessoas foram mortas, muitas ficaram feridas e toda a cidade encheu-se de consternação indescritível”. O próprio Varnhagen, que não foi exatamente um republicano, lamentou o “modo bárbaro” com o qual os cidadãos cariocas foram tratados. Independentemente dos registros, o prédio de Montigny amanheceu no dia seguinte ao massacre com uma placa com os seguintes dizeres: “Açougue dos Braganças”.
Em “Republicanos e Libertários”, além da ênfase ao aspecto urbano e radical da conjuntura pré-Independência, abre-se a oportunidade de analisar as propostas de republicanos e democratas brasileiros – ou melhor, “brasílicos” – nos quadros da tradição mais ampla e longeva do republicanismo. O ponto central dessa tradição, presente em seus adeptos brasileiros, é a defesa do envolvimento dos cidadãos no trato da coisa pública e a democratização do poder político. Ao reencontrarmos esses republicanos no momento mesmo de constituição do país, é inevitável a pergunta a respeito de seu legado. O saber tradicional sobre a história política da Regência e do 2o Reinado indica sua supressão nos idos das décadas de 30 e 40. Da mesma forma, sabemos que o que virá a ser chamado de republicanismo ao final da Monarquia não guarda qualquer semelhança com a radicalidade de João Soares Lisboa, Frei Caneca ou Cipriano Barata de Almeida, exemplares da primeira esquerda brasileira. Ao contrário, ao observarmos os republicanos vencedores no 15/11/1889, temos a impressão de que clones do Visconde de Cairú – que orgulhosamente dizia que “Rousseau, e Condorcet, Mirabeau e Mably não são os meus homens” – dominavam, ressurretos, a cena política do país.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Por que ler Carlos Heitor Cony, ou "Um novo guia para os perplexos"

O texto, a seguir, resulta de entrevista que concedi a Flavio Pinheiro, há alguns anos. Flavio, na altura, editava um ótimo site - nominimo.com.br - e, a propósito de uma longa conversa que tivemos sobre o escritor Carlos Heitor Cony, imaginou um roteiro de perguntas, que acabou por resultar na entrevista que ora transcrevo. Passados cerca de 7 anos da conversa com Flavio, ainda mantenho minhas opiniões e sensação diante dos textos de Cony. Por isso, creio, vale a exumação do texto, que nunca cheguei a publicar. O próprio site dirigido pelo Flavio Pinheiro há muito saiu do ar.

"Renato Lessa é cientista político e leitor voraz de boa literatura. Admite que suas preferências literárias são ‘legionárias e promíscuas’. Mistura Virgílio, Dante, Shakespeare, Molière, Celine, Kafka, Joyce, Thomas Mann, Eça de Queirós, Jorge de Senna, Bioy Casares, Jorge Luis Borges, Primo Levi e Elias Caneti. Entre os brasileiros os obrigatórios Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, mas também Cornélio Pena, Marques Rabelo, Mario Filho e, é claro, Carlos Heitor Cony.
Leitor atento de tudo que Cony escreveu, nesta entrevista Lessa monta um guia do que ler, por onde começar e o que é absolutamente indispensável na vasta obra do escritor. Informação ao Crucificado é, para ele, o melhor livro de Cony, embora considere Tijolo de Segurança uma ‘obra-prima’. Muita gente não entendeu porque em seu último livro, A Tarde da sua Ausência Cony repete no fim um capítulo que estava no início. ‘Entendo o efeito literário, mas saí do livro com a sensação de Ter sido vencido por uma escolha formal’, diz

Se um dia fosse condenado a ser um livro, como aconteceu com a renitente comunidade de bibliófilos de Farenheit 541, obra de Ray Bradbury, hesitaria entre Guia dos Perplexos, de Maimônides, e os Ensaios de Michel de Montaigne. Leia, a seguir, a entrevista sobre Cony."
Flavio Pinheiro
("Novo guia para os perplexos", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 11/7/03)


Por onde começar a ler Carlos Heitor Cony? Qual a importância de seus primeiros livros e por qual deles se deve começar uma leitura de Cony?
A obra de Cony é um universo com múltiplas entradas. Minha própria experiência de leitor - uma experiência em grande medida constituída pela leitura precoce de Carlos Heitor Cony - a cada reencontro com os textos e a obra imagina diversos começos possíveis. Por isso, temo que minha resposta a esta questão seja um tanto confusa.
Com o passar do tempo e com as sucessivas sedimentações de leituras repetidas, creio que uma das boas vias de acesso pode ser preenchida pela arte dos detalhes, tão disseminada nos textos de Cony. Uma forma de promoção do detalhe, aparentemente minimalista, mas que acaba por constituir átomos de sentido, cada qual dotado da carga dramática e expressiva do conjunto. Assim, imagino um primeiro contato hipotético com a obra de Cony através de uma pequena crônica, publicada em 1964, no heróico livro O Ato e o Fato: Crônicas Políticas (Ed. Civilização Brasileira), intitulada ‘Da salvação da pátria’. Nela Cony narra um episódio que eu mesmo, aos dez anos, vi pela antiga TV Rio - nosso saudoso canal 13 -, qual seja o da ‘tomada’ do Forte Copacabana, no dia 31 de março de 1964, por um oficial do Exército - o então Cel. Montagna (mais tarde general, por bravura). O referido oficial desceu de um Citröen preto, na esquina da Joaquim Nabuco com a praia e, após esbofetear um atônito sentinela, coloca dois paralelepípedos no meio da então pista única da Av. Atlântica, ‘para impedir os tanques do I Exército’, suposta reserva legalista que infelizmente acabou não chegando. Na crônica vemos um Cony observador dar lugar ao ator: ao fim de tudo, ele mesmo com o bico do sapato derruba a ínfima pilha de paralelepípedos, revelando de forma absolutamente desdramatizada o absurdo e a falibilidade da suposta barricada, de seu autor e, suspeito, do gênero humano.
A partir desta experiência minimalista, uma via nobre de acesso pode ser percorrida por dois romances notáveis, A Verdade de Cada Dia (1957) e Tijolo de Segurança (1958), imediatamente posteriores à primeira obra, O Ventre. A leitura desses dois belos e tristes romances urbanos pode ser uma útil antecipação à fortíssima carga dramática e literária da obra de estréia. Esses três livros antecedem a grande obra prima de Cony, Informação ao Crucificado, livro publicado em 1961.
Paulo Rónai, em iluminada apresentação ao livro A Verdade de Cada Dia, sugere que o grande tema de Cony é a família. O comentário, já idoso de mais de quatro décadas e não mais publicado, merece transcrição: ‘O grande assunto de Cony é a família. Emprego o termo à falta de outro, porque a família vista pelo nosso escritor é uma entidade especial, com muitíssimo pouco daquilo que a palavra normalmente evoca: seres coagidos convivendo mau grado seu, presos, trancafiados no mesmo cárcere, que se observam desconfiados, com inveja e ódio. Impedidos, pelas paredes da cela, de ver o mundo além, vivem remoendo melindres antigos, procurando anos a fio o sentido de palavras e gestos, até que a interpretação, afinal encontrada, os afunda mais em seu sofrimento. Dilacerados por forte sede de amor, machucam-se em brigas sem fim, e de cada uma saem mais infelizes, tanto mais que toda sua revolta não lhes pode alterar o fato central da existência, a condenação.’ Rónai resume a caracterização com uma sentença forte e inspirada: ‘Assim, cada romance entreabre a porta de outro compartimento do Inferno’.
O material, digamos, empírico à disposição de Rónai - que escreveu o prefácio à segunda edição, saída em 1963 em uma coleção inventada pelo Ênio Silveira, chamada Biblioteca Universal Popular (e financiada por José Luiz de Magalhães Lins, definido por Ênio como ‘um banqueiro a serviço dos interesses nacionais’) - era composto pelos romances de Cony até então publicados: O Ventre, Tijolo de Segurança, o próprio texto prefaciado, Informação ao Crucificado e Matéria de Memória. Da primeira fase de Cony, portanto, ainda não tinham sido publicados e/ou escritos (pela ordem): Antes, o Verão (1964), Balé Branco (1966), Pessach: A Travessia (1967) e o último e escatológico Pilatos (1974), para ficarmos só nos romances. O conjunto de livros considerados por Paulo Rónai - diminuto se considerarmos o conjunto da obra de Cony - permitiu um juízo apurado e profético. Se tomarmos, por exemplo, o mais recente livro de Cony - A Tarde de sua Ausência - é impressionante a consistência da apreciação de Rónai. De fato, como evitar a sensação de que ali, neste texto tão recente e centrado em uma família em completa dissolução, cada movimento ‘entreabre a porta de outro compartimento do Inferno’?
Portanto, se tomarmos o juízo de Rónai como referência, o par de obras composto por A Verdade de Cada Dia e Tijolo de Segurança pode ser considerado uma ótima ante câmara para o universo de Cony. Ali estão motivos perenes de Cony: a falibilidade humana, a cena urbana, a toponímia carioca, o desespero sempre contido e a forte associação entre tristeza e lucidez.

Qual o melhor livro desta primeira fase?
A resposta a esta pergunta é, na verdade, uma nova forma de responder à questão anterior e, sendo assim, tornar o conjunto de respostas ainda mais confuso. O melhor livro - desta e de todas as outras fases - é Informação ao Crucificado (embora considere Tijolo de Segurança uma obra prima). Digo isto a despeito do próprio Cony - em geral o melhor guia para Carlos Heitor Cony -, que tem preferência declarada por Pilatos. Há uma corrente de interpretação da obra de Cony que, privilegiando Informação ao Crucificado, associa este autor a uma tradição literária católica - composta por Jackson de Figueiredo, Alceu de Amoroso Lima, Gustavo Corção e Octávio de Faria. Eu não iria tão longe. É certo, no entanto, que a religiosidade nos textos de Cony é muito forte, quando não seja pela farta erudição católica. No entanto, creio que a religiosidade de Cony tem um quê de paganismo e heresia. Mas, para que essa opinião faça sentido, é preciso falar da centralidade de Informação ao Crucificado no conjunto da obra. Ainda que o livro tenha sido precedido por outras obras a ele, portanto, literariamente anteriores, sustento que Informação ao Crucificado precede existencialmente todos os livros escritos por Cony. A crermos na chave auto biográfica - e parece não haver motivos para crer em outra direção - Informação ao Crucificado narra a experiência pessoal de Cony no seminário maior da arquidiocese do Rio de Janeiro. Uma experiência vida de forma extremamente intensa e cujo resultado líquido é um estado permanente de dúvida e descrença. Ao mencionar a experiência pessoal de Cony com a religião e com a saída da religião, não pretendo adotar uma forma naturalista de entender sua literatura. A biografia do autor não explica a sua literatura. Antes, creio que a chave interpretativa para os textos está contida nos próprios texto, e Cony na medida em que escreve a sua experiência nos fornece uma chave dessa natureza.
Em termos mais diretos, sustento que a obra de Cony pode ser interpretada como uma forma de literatura pós-lapsária. Uma literatura precedida por uma experiência - literariamente construída - de queda no absurdo e na precariedade da vida. O momento dessa queda é a informação prestada ao crucificado: Deus acabou. Lembro-me que em uma conversa com Cony - em um seminário que participamos juntos - mencionei sua hipótese sobre a morte ou o fim de Deus, ao que ele corrigiu-me: Deus não morreu, simplesmente acabou, tal como uma conta bancária, que pode ser reativada a qualquer momento por algum depósito ou herança de uma tia velha e solteira.
A sensação da queda é construída passo a passo no texto da Informação. Um dos eventos centrais é o diálogo de João Falcão com o arcebispo - na época D. Jaime de Barros Câmara, um das mais obscurantistas e reacionárias autoridades da Igreja Católica no Brasil - concluído com a dura observação do cardeal: ‘Eu não acredito em nada de bom em quem não acredita em nada...’ D. Jaime praticamente expulsa Falcão/Cony da igreja, e por isso muito a ele devemos, nós que amamos a literatura. Ao mesmo tempo a religiosidade mantém-se intacta, de uma forma pagã e herética, na qual os santos subsistem à falência de Deus e de sua igreja. Ao longo da obra, é possível encontrar deliciosos momentos de anti clericalismo e humor, como no nome de um personagem de A Verdade de cada Dia - um escroque completo - batizado como Marcelino de Jesus, em duvidosa homenagem ao Padre Marcelino Champagnat, pio patrono dos Irmãos Maristas.
Mas, voltando ao ponto, central: Informação ao Crucificado pode ser lido como momento deflagrador de uma literatura a respeito da queda, povoada por seres falíveis, defeituosos, tristes e a despeito disso agarrados de algum modo à vida. Não me parece aleatório o fato de que o último livro da primeira fase de Cony - então apresentado pôr ele como seu último livro seja Pilatos, um dos momentos máximos da escatologia e da degradação humana na literatura brasileira.
O desfecho de Informação ao Crucificado foi fundamental para o não alinhamento de Cony a uma literatura católica. Qualquer outra saída, seja pela obediência, seja pelo fideísmo, teria outras conseqüências. A opção de Cony fez com que a dúvida o constituísse como seu próprio personagem.
Mas, é preciso falar também de Pessach: a Travessia. Considerar a travessia nesse livro concretizada e que, em um certo sentido, complementa a que não foi efetuada em Informação ao Crucificado. Em Pessach, são as mesmas razões apresentadas por João Falcão - i. e., Cony - a D. Jaime de Barros Câmara a respeito de como evitar o pecado, baseadas no princípio da coação interior e não no da obediência a autoridade externa, que estão presentes na decisão de Paulo - e Cony pode ser tudo menos inocente quando batiza um personagem seu com o nome de Paulo - de incorporar-se à luta armada. Em Informação, o motivo interno deu vazão à dúvida e à descrença; em Pessach, à aposta pascaliana.

Dos livros da nova fase literária de Cony - reinaugurada com Quase Memória - qual o que mais lhe agrada? O que é perfeitamente descartável na obra de Cony? Você entendeu a intenção de Cony, no desfecho de seu novo livro (A Tarde de sua Ausência)?
Gosto muito de A Casa do Poeta Trágico, na qual os motivos do primeiro Cony - se é que posso expressar-me deste modo - estão bastante presentes. Aqui não há o lirismo e o humor de Quase Memória e o desvairado e delicioso surrealismo - associado à nostalgia ferroviária, da qual compartilho por razões familiares - de O Piano e a Orquestra. A despeito da opinião de Cony a respeito de Quase Memória, trata-se de um livro pungente e delicioso.
Em princípio não descartaria nada na obra de Cony. Diria apenas que em alguns momentos de sua obra eu não pude sentir os efeitos conyanos habituais. Nesse sentido não é que não goste, mas Romance sem Palavras passou-me um tanto desapercebido. Em A Tarde de sua Ausência encontro alguns motivos básicos da obra, já assinalados pôr Rónai. Encontro ainda um dos capítulos mais bem escritos por Cony desde sempre, justamente um dos que se repetem ao final do livro. Entendo o efeito literário pretendido, mas saí do livro com a sensação de que fui vencido pôr uma escolha formal, eu que esperava um desdobramento substantivo.

O que mais o cativa na literatura de Cony?
Meu principal fardo profissional consiste em lidar com a tradição intelectual do ceticismo; suas origens remotas, suas redefinições na modernidade e sua presença no quadro filosófico contemporâneo. Pois bem, meu primeiro contato com o que muito tempo depois aprendi ser o ceticismo deu-se na leitura precoce e sempre presente dos livros de Cony. O que sempre me encantou em Cony foi a visão da falibilidade humana, da associação entre tristeza e lucidez - presente na idéia e que a compreensão de como as coisas dão-se efetivamente é um preâmbulo para a infelicidade. Paradoxalmente, essas características são cruciais para que uma dimensão da escrita de Cony seja possível: o seu humor invulgar. Um humor fino, genuíno e cortante, posto que sustentado na tal compreensão pós-lapsária da nossa existência. Ao mesmo tempo, tudo isso entremeado com passagens belas e sublimes, como luzes jogadas nas faces de seres que vivem a obscuridade da vida. O que me encanta em Cony é o que me encanta em Francis Bacon e El Greco.
Seria um presente poder contar com edições críticas da obra de Cony, que nos trouxessem de volta os belos textos e orelhas de Antonio Houaiss, Paulo Rónai, Leandro Konder, Ênio Silveira, Mário da Silva Brito e Antonio Callado.
Rio de Janeiro, julho de 2003

terça-feira, 29 de junho de 2010

Sem pressão, não há representação I

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 9 de maio de 2010)

Não é que os parlamentos em geral possuam limitada capacidade de e disposição para auto-reforma. Na verdade, e com alguma freqüência, costumam introduzir alterações regimentais internas, com impacto sobre a distribuição de poder entre as suas partes. De acordo com a direção da mudança adotada, líderes podem ser fortalecidos, em detrimento das bancadas, ou vice versa; procedimentos de auto-depuração podem ser aperfeiçoados, ou transformados em mecanismos de auto-proteção. Enfim, são muitas as possibilidades, e parlamentares – aqui e alhures - além de legislar, alteram as condições sob as quais legislam.
Menos freqüente – e a chave aqui é um tanto otimista - é a auto-reforma voltada para restringir as “liberdades” dos parlamentares. Com o termo aspeado quero designar processos de mudança que incidem sobre as relações entre parlamentares e seus próprios mandatos. Não é que não haja, no interior do Congresso brasileiro, para trazer a coisa ao terreno local, vozes favoráveis a reformas e à introdução de algum controle público sobre o que fazem os parlamentares, sobre os modos pelos quais obtêm mandatos e sobre como os compreendem e exercem. O fato é que, por minoritárias, dificilmente tais vozes reúnem condições políticas para deflagrar processos de mudança na matéria. Nunca é demais lembrar que nada pior do que restrições comportamentais para animais políticos que imaginam o paraíso como um cenário no qual obteriam reeleições sucessivas. Nesse sentido, quanto menos restrições, melhor. Se inevitáveis, que incidam sobre os outros. Se não der jeito mesmo, e em último caso, que se apliquem a todos.
O tema, por certo, é sensível e explosivo. É de recordar, por exemplo, a “doutrina” da propriedade pessoal do mandato, diante de propostas de limitação, advindas do Judiciário, da troca de partidos. Pela “doutrina” da pessoalidade do mandato, este cola-se à persona de seu detentor, que a carrega por toda a duração de sua investidura, independentemente da mobilidade de seus vínculos partidários. A mesma querela incide sobre o debate a respeito das imunidades, cuja extensão abriga aspectos de natureza criminal.
De um modo geral, tem sido o Judiciário o responsável por introduzir reformas que poderiam ser percebidas como regulações externas à atividade dos parlamentares. Regulações, por exemplo, que incidem sobre sua mobilidade e sobre suas vidas pregressas. O próprio Tribunal Superior Eleitoral, há algo como um ano, considerou a matéria da vida pregressa de candidatos, tema caro aos envolvido no movimento dos “ficha limpa”. Trata-se de tema de alguma relevância, pois incide sobre o modo pelo qual a pretensão a ter uma biografia política insere-se na biografia, digamos, geral do sujeito em questão. Deve a vida pregressa ser considerada para avaliar se alguém pode desempenhar funções representativas (ou outras derivadas do voto)? Voto vencido na ocasião, o ministro Ayres de Brito sustentou que não fazia sentido não aplicar aos que postulam ocupar cargo eletivo, as mesmas restrições que se apresentam a pretendentes a outras funções públicas. Bastar-lhes-ia uma condenação para que seus prontuários inviabilizassem a pretensão. Perguntava o ministro: haverá função pública mais relevante – em suas implicações igualmente públicas – do que a do exercício de um mandato eletivo?
Entendeu o plenário do TSE, na altura, que decidir em tal direção implicava em usurpação legislativa. Em outros termos, o tribunal estaria a fazer uma nova lei a respeito de inelegibilidades e não a interpretar e aplicar o quadro jurídico existente, tal como gostaria o bom Montesquieu. Em tempos de desenfreada judicialização da política, este foi um notável momento, pero um tanto seletivo, de auto-contenção. O voto do ministro Eros Grau foi emblemático na defesa do que lhe parecia ser o quadro jurídico, não alterável por decisão não-legislativa.
Vida que segue, a alternativa à questão passou a depender do que poderiam fazer os parlamentares, detentores não-exclusivos da função de legislar. De modo ainda mais remoto, e um tanto panglossiano, cabe registrar a existência de rejeição, in limine, de qualquer intervenção no “mercado político”, com a conseqüente atribuição ao “eleitor” do papel de manejar a cimitarra reparadora. O capítulo mais recente da história, contudo, foi ordenado por enredo distinto: nem decisão autônoma de auto-reforma, por parte do parlamento, nem a espera fideísta pela manifestação da sabedoria do “eleitor”. O processo, em andamento distinto, foi deflagrado por uma iniciativa exterior ao parlamento e aos partidos – por meio de proposta popular de legislação que exclui das eleições os chamados “ficha suja”. A iniciativa acolhida por alguns parlamentares – aqueles comprometidos com o combate ao risco de captura do parlamento por parte de pessoas que mantêm com as leis do país relações heterodoxas – tomou a forma de projeto de lei cuja tramitação positiva foi iniciada a poucos dias.
A adesão dos demais parlamentares – com a não inesperada defecção de alguns “ficha-sujíssimos” – pode sempre ser debitada na conta do cinismo e do oportunismo. Haverá quem o faça e, devo dizer, com razões respeitáveis. Mas, temo não ser esta a melhor leitura a fazer do episódio. Independentemente de da incidência temporal de seus efeitos – se para já, ou para daqui a dois anos –, a iniciativa política que associou uma ação autônoma de um conjunto de cidadãos a seu acolhimento parlamentar é uma boa notícia e um bom indício para os hábitos representativos locais. Se lido em chave apropriada, duas ordens de reflexão distintas podem ser desenvolvidas.
Em primeiro lugar, a iniciativa é um experimento que indica algum grau de aprendizado, por parte de um conjunto de cidadãos e de um grupo de parlamentares, a respeito do que pode significar o vínculo da representação. O comentário maduro da liderança do movimento a respeito das alterações feitas pela Câmara ao projeto original foi significativo. Embora uma as alterações – a de que a condenação em primeira instância que impede a candidatura deva emanar de um colegiado, e não apenas de um único juiz – tenha efeitos atenuantes, a liderança compreendeu a necessidade da mudança, por razões táticas e pelo entendimento de que é legítimo que o Legislativo exerça um papel de filtragem.
Por fim, trata-se de compreender, em termos mais gerais, que a qualidade da representação está associada à qualidade da demanda social por representação. Em outros termos, é necessário que os corpos legislativos sejam interpelados “de fora”. Sua qualificação não decorre de processos internos e autárquicos, imaginados por engenheiros legislativos, mas da tensão entre um exterior – o demos, e sua capacidade de exercer pressão eficaz – e um interior, do qual deve se exigir capacidade de escuta e criatividade política e institucional. No caso em questão, pressão e escuta, igualmente adequados, acabaram por dar sentido á ideia de representação. É torcer para que a moda pegue.

Sem pressão, não há representação II

Renato Lessa
(Publicado na coluna "Sobre Humanos, na Revista Ciência Hoje, de junho de 2010)

De um ponto de vista estritamente minimalista, para que a assim chamada de-mocracia representativa funcione basta que alguns cidadãos – sequer a maioria deles – compareçam com regularidade às sessões eleitorais e depositem nas urnas - ou nas máquinas - as suas escolhas. Em alguns países, nos quais o voto não é obrigatório, é possível, mesmo, que tal contingente seja minoritário no conjunto dos adultos aptos a votar. Basta que haja alguma autorização eleitoral coletiva para que um corpo de representantes seja instalado. Não se requer, portanto, dos eleitores, para que o sistema “funcione”, que devotem à política mais tempo do que o empreendido no trajeto até as sessões eleitorais e nas eventuais filas de espera. O ato de escolha não exige qualquer presença ou acompanhamento daquilo que os escolhidos fazem com o voto que deposita-ram.
Há mesmo quem defenda que este mínimo é mais do que suficiente e, até mes-mo, ótimo. Edmund Burke, pensador político e parlamentar de origem irlande-sa, porém atuante na Inglaterra do século XVIII, sustentava a tese da radical independência do parlamentar com relação a seus eleitores. Estes são movidos sempre por razões particularistas, enquanto que os representantes devem sem-pre ter em vista o interesse público. Claro está que caberia aos mesmos, em consulta exclusiva a suas consciências, determinar o que seja tal interesse público. Em tempos mais recentes, correntes importantes da Ciência Política norte-americana – a chamada escola pluralista, em particular – chegaram a afirmar que uma certa apatia pública é mesmo condição para a estabilidade das democracias. Se todos participassem ao mesmo tempo, os sistemas políticos não seriam capazes de “processar” todas as “demandas sociais” e caminhariam para uma espécie de colapso institucional. No limite, as democracias, se sustentadas em participação plena e permanente de todos os seus cidadãos, seriam ingovernáveis.
Tudo isso é muito curioso, pois conduz-nos a uma teoria da democracia que deflaciona a importância do voto e prescinde da participação política não-eleitoral como dimensão relevante do processo e do aprendizado políticos. Se é verdade que bastam alguns votos para que a escolha de representantes se efetue, é necessário acrescentar à análise a questão da qualidade da representação. Tudo indica que a qualidade da demanda social por representação afeta a qualidade da representação propriamente dita. Em outros termos, a presença de cidadãos ativos e dispostos a devotar parte de seu tempo a alguma militância cívica e à observação crítica do quer fazem os seus representantes, para dizer o mínimo, não fará mal à saúde dos sistemas reprersentativos. Pode ser mesmo que faça mal a alguns representantes, mas não fará, por certo, mal à representação.
O recente episódio do movimento “Ficha Limpa” constitui ótima oportunidade para refletir a respeito das considerações que aqui faço. Trata-se de movimento que colheu quase 2 milhões de assinaturas de eleitores, em apoio a uma iniciativa popular de projeto de lei. O projeto visava impedir candidaturas a postos eletivos de pessoas com condenações na Justiça. O projeto foi acolhido por 31 parlamentares que o introduziram no processo legislativo e acabou por ser aprovado pela Câmara de Deputados, não sem sofrer algumas mudanças atenuantes, mas que não o descaracterizaram. Independentemente do desfecho de todo o processo – no momento em que escrevo o projeto está em vias de tramitação no Senado -, há aqui algo de interessante a observar.
Antes de tudo, é necessário levar em conta que a melhoria da qualidade da re-presentação não depende tanto da definição de critérios necessários de morali-dade para o exercício dos mandatos, quanto da presença de cidadãos ativos a exercer pressão legítima e eficaz sobre o parlamento. Em outros termos, o e-xemplo mencionado vale mais pelo aprendizado do que pode significar uma cultura da representação política que exige mais do que algum comparecimento erleitoral eventual. “Representação”, sem alguma presença ativa dos representados, através de pressão e observação atenta, não passa de formalismo e de palavra vazia.

domingo, 27 de junho de 2010

Vida social e impactos da natureza

Renato Lessa
(Publicado na coluna "Sobre Humanos", na Revista Ciência Hoje, maio de 2010)

Uma das mais importantes mutações ocorridas nos tempos modernos pode ser encontrada na crescente importância conferida aos seres humanos – enquanto indivíduos – para a definição do que seja uma vida decente. Desde tempos imemoriais, por certo, houve preocupação em definir requisitos para uma vida boa. Tal tema constituiu desde então matéria para controvérsias filosóficas e morais intermináveis, e já os antigos gregos dividiam-se entre os que defendiam, pela ordem, a busca da verdade, de virtude pessoal e de felicidade como finalidades a ser perseguidas.
Com a Idade Média, os valores da cultura grega clássica acabaram submetidos à teologia. A ideia de vida boa passa a significar uma forma de vida orientada para a busca de salvação pessoal. Um conforto cujo usufruto exige, lamentavelmente, a morte daquele que o busca.
Com os tempos modernos – a partir do sec. XVI – a ideia de uma vida decente passa progressivamente a ser pensada como resultado da qualidade da própria vida em sociedade, e não de desdobramentos sobrenaturais. O tema não era de todo inédito, já que mesmo no contexto do pensamento grego clássico, os filósofos sofistas haviam atentado para tal relação. Platão fez o mesmo, em chave negativa, ao dizer que sociedades imperfeitas estão condenadas a produzir resultados imperfeitos.
A partir do Renascimento ficou clara a relação: o aperfeiçoamento das relações sociais e a qualidade do exercício dos governos são condições cruciais para uma vida humana decente. Um dos corolários dessa reorientação é a percepção de que sociedades e governos são criações dos humanos e não produtos da ação inescrutável da natureza. É o que encontramos em autores do século XVII (Thomas Hobbes), XVIII (David Hume) e XIX (Karl Marx). É virtualmente incontável a quantidade de tratados e ensaios, produzidos entre o século XVI e XVIII a respeito do melhor modo de conceber e organizar a vida social. A despeito da larga diversidade de respostas, há alguns pontos convergentes. O mais importante diz respeito à percepção de que a vida social não é constituída pela ação de fatalidades ou de imposições da natureza.
Não se tratava de onipotência diante da natureza. É certo que o processo de afirmação da dignidade humana, a partir do século XV, esteve sempre associado á busca de conhecimento crescente a respeito do que então se designava como filosofia natural. Retirada a aura de mistério, segundo a qual há uma autoria da natureza e ela possui caráter divino, a cultura moderna progressivamente emancipa os humanos e permite a progressiva investigação a respeito de fenômenos naturais. Tal perspectiva de conhecimento progressivo sobre a natureza não significou pretensão de controle sobre suas leis básicas. Indica, tão somente, que os humanos recusam-se a ocupar a posição de presas fáceis e vítimas indefesas dos processos naturais.
O terremoto de Lisboa, ocorrido na segunda metade do século XVIII, para além de seu impacto no pensamento europeu, obrigou as autoridades portuguesas a reconstruir integralmente a parte baixa da cidade. Tal empreendimento empregou técnicas inovadoras de construção, capazes de resistir a abalos sísmicos de monta. Quer isto dizer que as catástrofes naturais passaram e ser avaliadas segundo a capacidade humana de preveni-las ou de mitigar seus efeitos. Ainda que os fatores naturais estejam fora de controle, a qualidade da resposta social está sim sob responsabilidade dos governos. Nesse sentido, as catástrofes naturais não devem se pensadas apenas como aparições extraordinárias e imprevisíveis de ordem natural. Seus efeitos dizem também da qualidade da vida social sobre o qual incidem.
Desse modo, catástrofes naturais revelam tanto o modo pelo qual a natureza procede quanto a forma pela qual a sociedade refrata tais processos. De um modo geral, a qualidade dos governos tem papel crucial na extensão dos danos, assim como na evitabilidade dos mesmos.

Do negacionismo e da presença da Shoah para além de si mesma

Renato Lessa
(Publicado originalmente no número 6 da revista DEVARIM, da ARI/RJ - Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro -, em abril de 2008)

1. Ao receber o Premio Nobel em Literatura, em 2002, o escritor húngaro Imre Kertész, em seu discurso de agradecimento – intitulado “Heureca” –, foi preciso a respeito do lugar ocupado pela Shoah em sua obra. Uma presença contínua, associada a um luto permanente no qual “não existe apenas amargura, mas também um extraordinário potencial moral”. Disto deriva a associação, por ele proposta, entre a sua própria identidade como judeu e a presença do que define como um “desafio moral”: “Se para os dias de hoje o Holocausto criou uma cultura – como sem dúvida aconteceu -, seu objetivo deve ser a reparação por meio do espírito, a partir de uma realidade irreparável – uma catarse”.
Desafio de não pequena monta, posto que, para Kertész, nada teria acontecido depois de Auschwitz que o “tivesse negado ou refutado”. A relação desse grave juízo com o prêmio que acabara de receber foi estabelecida pela afirmativa que faria logo em seguida: “Nos meus escritos, o Holocausto nunca aparece no passado”. A posição de Kertész exige melhor qualificação. Por um lado, a própria idéia da irreparabilidade do campo de extermínio está a indicar que nada no que lhe sucedeu pode gerar efeitos de superação do experimento. Neste sentido, o Campo não pertence ao passado, circunstância fixa e imóvel de um tempo irremediavelmente remoto, mas aparece como elemento de um longo presente, cujos limites não se dão a ver. O próprio conceito de irreparabilidade, parece evidente, interdita qualquer perspectiva de reparação. Por outro lado, a decisão de associar a memória e a vivência da Shoah a uma obrigação moral de interpelação da experiência humana é obrigada a enfrentar inúmeros esforços de revisão e fixação dos seus significados e de negação de seu alcance ou, até mesmo, de sua existência real.

2. Passados mais de sessenta anos da derrota alemã e da libertação dos campos de extermínio, o lugar histórico e moral ocupado pela Shoah na consciência histórica e moral contemporânea permanece nebuloso e incerto. As dificuldades de inscrição já se apresentaram às primeiras tentativas de transmitir o testemunho daquilo que David Rousset denominou como a “experiência concentracionária”[2].
Primo Levi, ao longo de sua militância de testemunho, sempre recusou o topos da incomunicabilidade, fundado na crença na impossibilidade radical de transmitir aos que não viveram o inferno do Campo o que lá teria ocorrido[3]. Mas, essa posição de princípio não estava, para ele, a serviço de uma crença ingênua na transparência dos relatos e na fácil transitividade da experiência. Ao contrário, apenas uma vida dedicada ao testemunho poderia interpelar a descrença e a indiferença e, mais do que isso, educar eventuais manifestações empáticas. Sim, posto que, além de combater a descrença e a negação do ocorrido, há que trabalhar sobre as sensibilidades empáticas, sobre os que se apiedam.
Ensinar-lhes a delicada arte da solidariedade e do reconhecimento de que o Campo foi o lugar de um experimento sem precedentes. Aqui reside o núcleo do problema. A singularidade e o caráter sem precedentes da Shoah sofreram, desde a derrota do nazismo, uma vasta ordem de questionamentos e negações. Não foram poucos os que insistiram – e ainda o fazem – na comparabilidade e na comensurabilidade entre a Shoah e outros eventos de dizimação em massa de seres humanos[4].

3. O debate sobre os significados possíveis da Shoah abriga vasta diversidade. Contudo, um certo relativismo diante de tal variedade, sob pena de irresponsabilidade política e moral, não deve descurar do fato de que as interpretações não são inocentes; não emanam simplesmente de uma característica ontológica própria dos humanos, como sustentava Heidegger, mas são portadoras, elas mesmas, de premissas e, sobretudo, produzem conseqüências materiais para a própria configuração do mundo histórico e social. É neste sentido que o negacionismo deve ser retirado do abrigo da condescendência relativista e ser remetido a sua dupla inscrição: a recusa criminosa da materialidade dos crimes nazistas e a deriva político-existencial de sustentar o anti-semitismo como crença básica e o anti-sionismo como atitude política.

4. A idéia de revisionismo - e a de seu portador, o revisionista - segrega uma imagem que, à partida, não aparece como abjeta. O termo possui excelente pedigree: em termos históricos aparece no século XIX associado à causa mais do que defensável: a da revisão da condenação de Alfred Dreyfuss. Não há nada, em princípio, de errado com a idéia de revisionismo. Tudo dependerá, parece óbvio, daquilo que se pretende rever e, o que é mais importante, do grau em que a idéia de revisão implica a refutação da existência de eventos históricos esmagadoramente evidentes.
Com o pós-II Guerra verificou-se de forma progressiva a emergência de um revisionismo negacionista, com relação a Shoah, dotado de claras tinturas anti-semitas e, a partir de 1948, anti-sionistas. O revisionismo negacionista pode ser pensado como a expressão extremada e criminosa de uma questão extremamente ampla: o lugar da Shoah na consciência contemporânea. Além disso, possui muitas formas, para além de suas manifestações mais óbvias e claras. Mais do que seguir a enfadonha e impalatável trama dos autores e instituições devotados ao revisonismo negacionista, importa detectar a estrutura de seu pensamento. Jean-Pierre Vernant, em seu já clássico Les Assassins de la Mémoire, resumiu os “princípios” centrais[5]:
(i) Não houve genocídio; o que teria sido seu instrumento e símbolo – a câmara de gás – jamais existiu;
(ii) A “solução final” não teria significado senão a expulsão dos judeus para a Europa Oriental[6];
(iii) O número de vítimas judias do nazismo é menor do que comumente se supõe; autores revisionistas, tais como Rassinier e Butz, sustentam que no máximo morreram um milhão de judeus, devido a bombardeios aliados e a doenças;
(iv) A Alemanha hitlerista não pode ser julgada responsável pela guerra: os judeus são co-responsáveis pela eclosão do conflito mundial;
(v) A principal ameaça à humanidade, durante a década de 1930, não era representada pela Alemanha, mas pela União Soviética; Stalin, e não Hitler;
(vi) O genocídio judaico foi uma invenção da propaganda aliada, fortemente influenciada pelos judeus que, “sob a influência do Talmud, têm propensão à imaginação estatística”[7].

As “teses” do revisionismo negacionista são indefensáveis. Sua refutabilidade absoluta faz com que o campo no qual devem ser tratados seja o do direito penal. A fracassada tentativa de processar a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt, feita por David Irving, em um tribunal inglês, definiu de forma clara o lugar dos negacionistas: não constitui crime dizer o que efetivamente são, que crenças sustentam e que objetivo perseguem. Como praticantes de uma “contra-história”, para utilizarmos o termo de Amos Filkenstein, não constituem desafio do ponto de vista intelectual[8].
Sua ameaça é de natureza política e criminal. O revisionismo negacionista é, contudo, apenas um dos modos possíveis da contra-história, uma “narrativa inautêntica e uma ação perniciosa” voltada para a “distorção da auto-imagem do adversário, de sua identidade, através da desconstrução de sua memória”[9].

5. O debate alemão a respeito da identidade do país no pós-guerra constitui um interessante estudo de caso, capaz de revelar o modo pelo qual diferentes interpretações da história recente daquele país conferem a Shoah papéis e lugares inteiramente distintos. Nos anos 1980 ocorreu naquele país um duplo e importante debate público, em torno de uma questão crucial: como inserir o Sonderweg no quadro mais amplo da história alemã? O debate foi deflagrado em 1985, por conta dos 40 anos da libertação, e desdobrou-se na célebre querela dos historiadores – a Historikerstreit.
Mesmo excluindo o campo abertamente criminoso ocupado pelos revisionistas, havia uma considerável diversidade de posições, todas derivadas de um problema básico, posto de forma sagaz pelo escritor Heinrich Böll: "O fato do poder nazista não ter sido derrotado de dentro e sim destruído desde o exterior...é uma das razões que poderiam explicar porque aqueles doze anos foram mais ou menos apagados da memória"[10]. Os termos dessa disputa e suas implicações dão sentido à proposição de Saul Friedlander de que o debate a respeito da história é uma discussão sobre a forma do passado na memória pública e na identidade nacional[11].
Para além do marco dos 40 anos da libertação, o debate dos historiadores – Historikerstreit - também exibiu os dilemas dessa busca pela determinação das formas do passado. De forma nada surpreendente, tal busca teve como referência central a Shoah, tal como atesta o subtítulo do documento que reúne as diferentes posições em confronto, publicado em 1987: documentação sobre a controvérsia a respeito da singularidade (Einzigartigkeit) do extermínio nacional socialista dos judeus.
A querela acabou por configurar dois campos opostos. Um deles, ocupado por historiadores de orientação liberal e de esquerda, sustentou a singularidade dos crimes nazistas e, a despeito de suas diferenças internas – divididas entre uma vertente “liberal” e outra “estruturalista” -, a conseqüente recusa em diluir a Shoah em justificativas e quadros histórico-políticos mais amplos.
Para o campo conservador – que inclui autores tais como Joachim Fest, Ernst Nolte e Andreas Hillgruber, entre outros -, se a responsabilidade dos nazistas não pode ser negada, é necessário estabelecer uma sistemática comparação entre seus crimes e outros cometidos por regimes diferentes em outros lugares e momentos. Nolte, em particular, confere aos bolcheviques a primazia da busca de aniquilação global. Em suma, por pior que tenha sido, o nazismo é comparável. Refuta-se, dessa forma, o topos da incomparabilidade. A revisão interpretativa sugerida pelos conservadores rompe com a caracterização tradicional dos perpetradores. Ainda que a criminalidade nazista não seja negada ou defendida, ela é compartilhada com os Aliados e, em particular, com o Exército Vermelho, em função de crimes que este cometeu em solo alemão. Com visível desrespeito à cronologia dos fatos, sugere-se uma perspectiva de responsabilidade compartilhada, segundo a qual entre as vítimas deve estar incluída a população civil alemã.
A perspectiva dos conservadores não ficou sem contestação. A posição do historiador Eberhard Jäckel, durante a Historikerstreit, talvez tenha sido a mais clara : O extermínio dos judeus pelo nacional socialismo foi algo inigualável, pois nunca antes um Estado, com a autoridade de seus líderes responsáveis, decidiu a anunciou a total aniquilação de um determinado grupo de pessoas, incluindo idosos, mulheres, crianças, recém-nascidos, e fez com que tal decisão fosse aplicada, através do uso de todos os instrumentos possíveis do poder disponível pelo Estado[12].

6. O lugar da Shoah na consciência histórica contemporânea ainda não está fixado de forma segura. Permanece vulnerável aos jogos do negacionismo e das relativizações históricas. O primeiro deles visa revitalizar permanentemente o anti-semitismo e anti-sionismo: se o Estado de Israel é um efeito imediato da Shoah, sua negação aparece como imperativo para que seu efeito perca qualquer legitimidade[13].
A relativização histórica não está, em princípio, imune a motivações da mesma natureza. Mas não é essa ligação abjeta que a caracteriza. A relativização, com freqüência, deve-se aos procedimentos e aos hábitos da História, enquanto disciplina. Na medida em que as representações da Shoah transitam do registro da memória para a narrativa disciplinar da História, os eventos a ela associados submetem-se aos protocolos da explicação, da comparabilidade e da contextualização racional. O risco é o do apagamento da singularidade da Shoah e dos imperativos morais que dela decorrem. A revolta do cineasta Claude Lanzman contra os propósitos de explicação do extermínio – explicar, para ele, é um ato de imoralidade – decorre dos riscos de historicização e de normalização[14].
A memória, ao contrário e tal como ressaltam trabalhos clássicos sobre o assunto, é avessa ao relativismo[15]. É, ainda, expressão de luto, de perda, registro repetido do trauma e índice da singularidade do evento ao qual se reporta. Neste sentido é particular e específica dos que a detém, não sendo, em princípio, universalizável. O desafio que se impõe aos que combatem o negacionismo e a relativização da Shoah pode ser posto nos seguintes termos: como inscrever a Shoah na experiência contemporânea, sem abrir mão do que tem de particular e incomparável.
Amos Filkenstein sugere um caminho intermediário, capaz de reter a carga existencial da memória e adquirir, por meio do uso de procedimentos da História, uma perspectiva de universalização. Designou esse meio termo como “consciência histórica”[16], uma forma de observar a experiência humana a partir da experiência do pior dos mundos possíveis. Em outros termos, história e moralidade acabam por fundir-se na observação do mundo humano.
Por muito tempo, nossa relação com a Shoah estará marcada pela aporia sugerida por Kertész: um evento irreparável como base de uma perspectiva de reparação do mundo. Reinhard Koselleck acrescenta ainda outro dilema irrecorrível: a singularidade da Shoah, para que seja determinada, exige tanto a comparação como a necessidade de abandoná-la[17]. A despeito das aporias, a Shoah é única porque, como a mais extrema modalidade de destruição de seres humanos, contém em si a experiência de todas as dizimações possíveis. É isto que faz com que a sua singularidade se inscreva no plano do universal humano.

Notas
[1]. Discurso proferido por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura em 2002. In: Imre Kertész, A Língua Exilada, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 16. [2]. Cf. David Rousset, L’Experience Concentrationnaire, Paris: Editions de Minuit, 1965. [3]. A esse respeito, ver, em particular, Os Afogados e os Sobreviventes, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, cap. IV, “Comunicar”, pp. 51-61. [4]. Uma boa amostra dessa discussão pode ser encontrada em Alan Rosenbaum, Is the Holocaust Unique? Perspectives on Comparative Genocide, Boulder: Wetsview Press, 1996. [5]. Ver Jean-Pierre Vernant, Les Assassins de la Mémoire:”Um Eichmann de papier et autres essais sur le révisionnisme”, Paris: Editions La Découverte, 1987. Para um tratamento do negacionismo norte-americano a referência obrigatória é a do excelente livro de Deborah Lipstadt, Denying the Holocaust: The Growing Assault on Truth and Memory, New York: Plume, 1994. [6]. Cf. Robert Faurisson, Mémoire em défense: contre ceux que m ‘accusent de falsifier l´histoire, Paris: La Vieille Taupe, 1980, p. 90. Faurisson acrescentou ainda, em prefácio a outro livro negacionista (Le Mensonge d´Auschwitz, Paris: FANE, 1973), a seguinte justificativa: já que “a maioria dos judeus da França veio da Europa Oriental”, a assim chamada “Solução Final” não foi outra coisa do que seu repatriamento, da mesma maneira com a qual os franceses repatriaram os argelinos, em outubro de 1961 (p.8). [7]. Ver o abjeto livro de Butz, The Hoax of the Twentieth Century, Torrance: Noontide Press, 1979, pp. 245-248. Trata-se de uma das obras de referência para o negacionismo norte-americano. [8]. Ver Amos Filkenstein, “History, Counterhistory, and Narrative”, In: Saul Friedlander (Ed.), Probing the Limits of Representation: Nazism and Final Solution, Cambridge: Harvard University Press, 1992, pp. 66-81. [9]. Op. cit., p. 69. [10]. Cf. Heinrich Böll, “Enfance Exemplaire”, Les Temps Modernes 396-7, julho/agosto 1979, p. 241. [11]. Ver Saul Friedlander, Memory, History, and the Extermination of the Jews of Europe, Bloomington: Indiana University Press, 1993 p. 23. [12]. Apud Saul Friedlander, op. cit., p. 50. [13]. Shmuel Trigano, em excelente e corajoso livro, chama a atenção para modalidades mais sutis de anti-sionismo, caracterizadas pela reverência a Shoah e a suas vítimas imediatas como aspectos do passado, associadas a atitudes de hostilidade para com o Estado de Israel, e não apenas aos governos eventuais que o dirigem. Ver, Les Frontières d’Auschwitz, Paris: Le Livre de Poche, 2005. [14]. Ver Claude Lanzmann, “The Obscenity of Understanding: An Evening with Claude Lanzmann”, In: Cathy Carut (Ed.), Trauma: Explorations in Memory, Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1995, pp. 200-220. [15]. Ver, por exemplo, Maurice Halbwach, La Mémoire Collective (Paris: PUF, 1968) e Pierre Nora, Les Lieux de la Mémoire (Paris: PUF, 1984). [16]. Ver Amos Finkelstein, “Historical Consciousness”, History and Memory: Studies in Representation of the Past 1/1, 1989 [17]. Carta pessoal de Reinhard Koselleck a Saul Frielander, apud Saul Friendlander, op. cit. p. 57.