terça-feira, 6 de julho de 2010

A Primeira esquerda brasileira

O texto que aqui publico, devidamente exumado, foi elaborado há alguns anos e publicado no saudoso site concebido e dirigido pelo jornalista Flavio Pinheiro, o www.nominimo.com. Havia ali espaço para muitas coisas, o que incluia minhas eventuais colaborações, frequentemente feitas sob a forma de comentários a respeito de livros que eu julgava interessantes. É o caso de um livro, que pouco impacto teve (“Republicanos e Libertários: Pensadores Radicais no Rio de Janeiro, 1822”), mas que, de uma forma por vezes confusa - talvez pelo fato do país, naquela altura, já ser ele mesmo confuso - procurou iluminar um momento crucial na configuração do país, nos anos vinte do século XIX. Denominei o pequeno texto que escrevi a respeito como "A primeira esquerda brasileira". Ainda hoje sigo a pensar que era exatamente disto que se tratava. Vale a pena, ainda, o livro e, se calhar, a reflexão que fiz a respeito dele. A ver vamos.

Sergio Buarque de Holanda, em iluminada avaliação do legado colonial brasileiro diante das novidades das duas primeiras décadas do século XIX, sugere uma engenhosa hipótese de periodização. No lugar dos marcos canônicos – 1808, 1815, 1820, 1822, por exemplo –, nosso principal historiador propõe uma forma de datação na qual o período compreendido entre 1808 e 1836 ganha particular relevância. Menos por conter datas e acontecimentos que mais tarde viriam a somar-se à crônica da história da Independência – ou à sua “lenda histórica”, como disse Emilia Viotti da Costa – e mais pelo fato de que nesses vinte e oito anos o país abrigou um verdadeiro laboratório de experimentos políticos e institucionais. Segundo Sergio Buarque, “só depois, e mesmo durante o gabinete conciliador de Paraná, é que teremos a verdadeira reação monárquica”.
Localizar a “reação monárquica” nos idos da década de 1840, fazendo-a recuar, mesmo, à década anterior, na regência de Pedro Araújo Lima – sucessor de Feijó –, não é, com certeza, original. A marca é tradicional, consagrada e presente em muitos historiadores do 2o Reinado. Euclides da Cunha – em “Da Independência à República” – e Oliveira Vianna – em “O Ocaso do Império-” –, para evocar dois gênios, sustentam a datação referida.
A fertilidade da periodização sugerida por Sergio Buarque de Holanda reside em um aspecto que muitos poderiam tomar como negativo: entre 1808 e 1836 era virtualmente impossível estabelecer qualquer previsão a respeito do futuro político e institucional brasileiro. A “lenda histórica” da Independência nos induz a organizar fatos julgados “relevantes” no processo de separação de Portugal. A chegada da Corte portuguesa e a abertura dos portos, em 1808, a elevação a Reino Unido, em 1815, o Fico e a declaração final de Independência, em 1822, parecem perfilados no tempo, a indicar um processo cumulativo e condenado a desaguar na criação do Império do Brasil. O resultado final teria sido produto da moderação e do engenho de estadistas, eqüidistantes de posições extremadas.
O livro de Renato Lopes Leite – “Republicanos e Libertários: Pensadores Radicais no Rio de Janeiro, 1822” (Civilização Brasileira, 2000) –, discretamente lançado em meio ao boom editoral a respeito da história brasileira do século XIX, fornece excelente oportunidade para retomarmos as impressões de Sergio Buarque. O livro, que resulta de uma tese de doutoramento, pretende reconstituir o confuso e errático debate político dos anos 1821 e 1822, destacando o papel nele cumprido de um “imaginário republicano”, emoldurado pelos agitados meses que antecederam a Independência, na cidade do Rio de Janeiro. O principal mérito do texto é o de destacar a presença do que poderíamos designar como a primeira esquerda brasileira, materializada em um conjunto de ativistas – jornalistas, padres, políticos, juristas – associados a uma forma de propaganda republicana de corte bastante radical.
O principal foco do livro é a atividade jornalística e política – digna dos melhores especialistas em agitprop – exercida por João Soares Lisboa. Criador e redator do primeiro diário publicado no Rio de Janeiro – o “Correio do Rio de Janeiro” –, Lisboa pertencia a um grupo que a pena do conservador Visconde de Cairú não exitou em designar como de “perturbadores públicos” (entre eles tive a alegria de encontrar um Lessa: o padre Antônio João de Lessa, português, maçom e conhecido na altura como o “Catão Lessa”). A principal façanha desses “perturbadores” foi a conhecida “Representação do Povo do Rio de Janeiro”, dirigida ao príncipe D. Pedro em maio de 1822, que reuniu mais de 6000 assinaturas e que exigia a convocação de uma “Assembléia Geral Representativa”, ou “Cortes Brasileiras”.
É importante considerar que na altura, se estava claro que os tradicionais laços coloniais entre Brasil e Portugal eram insustentáveis, de modo algum o futuro imediato possuía qualquer visibilidade. O que a “Representação” sustentava era a necessidade de uma Assembléia Representativa, que funcionaria como sede da “soberania brasílica”. Reagindo à imposição das Cortes portuguesas, instaladas após a Revolução do Porto (1820), que haviam suprimido o papel do Rio de Janeiro como núcleo político, ao resubmeterem as províncias brasileiras ao controle direto e exclusivo de Lisboa, a “Representação” pode ser percebida como postulação de um caminho nítido em direção à independência. Uma independência que acabou não sendo, mas que se tivesse sido teria inaugurado um país sobre bases políticas e institucionais distintas. Hoje, se tudo corresse bem, estaríamos evocando outros founding fathers.
Ao evocar o episódio da “Representação”, o importante livro de Renato Lopes Leite, põe em relevo o lado urbano, radical e democrático da política brasileira na altura, como um dos componentes do processo de independência. A independência que foi, e que pode ser reconstituída nas idéias e nas ações de homens como Cairú e José Bonifácio, foi feita em grande medida contra a alternativa apresentada pelos radicais do Rio de Janeiro. Derrotados em 1822, eles apresentar-se-ão em outras ocasiões. João Soares Lisboa, por exemplo, morre em combate, em 1824, na Confederação do Equador, defendendo a sua idéia de república.
A “Representação do Povo do Rio de Janeiro”, além de indicar a sede da “soberania brasílica”, exibia, ainda, uma clara opção federalista (uma “união frouxa” entre as províncias) e uma clara defesa do voto direto. Um dos membros do grupo odiado pelo Visconde de Cairú, o jornalista Gonçalves Ledo assim sustentava a opção pelas diretas-já: “Que razão podemos dar, que direito apresentar para roubar aos indivíduos o juz de nomear aqueles que os hão de representar na fundação daquilo que eles têm de mais caro, direitos naturais e imprescindíveis anteriores a toda lei?”
A marca de seis mil signatários, em uma cidade cuja população branca a adulta, nos idos de 1822, talvez não tenha excedido trinta mil almas, é notável e indica dose considerável de envolvimento cívico. A manifestação tinha, contudo, precedentes. Cerca de um ano antes da “Representação”, em abril de 1821, uma reunião de eleitores do Rio de Janeiro, na então Praça do Comércio – em frente ao belo prédio de Granjean de Montigny (hoje Casa França-Brasil) – foi interrompida com gritos de “aqui governa o povo” e “haja revolução”. A malta exigiu do rei D. João VI, que ainda aqui se encontrava, o juramento da então liberalérrima Constituição de Cadiz, de 1812, e sua permanência no país, em aberto desafio às Cortes portuguesas. Enquanto o rei acedia à multidão, seu filho – D. Pedro – comandou sangrenta repressão. Segundo a viajante inglesa Maria Graham, em seu “Diário de uma Viagem ao Brasil”, “cerca de trinta pessoas foram mortas, muitas ficaram feridas e toda a cidade encheu-se de consternação indescritível”. O próprio Varnhagen, que não foi exatamente um republicano, lamentou o “modo bárbaro” com o qual os cidadãos cariocas foram tratados. Independentemente dos registros, o prédio de Montigny amanheceu no dia seguinte ao massacre com uma placa com os seguintes dizeres: “Açougue dos Braganças”.
Em “Republicanos e Libertários”, além da ênfase ao aspecto urbano e radical da conjuntura pré-Independência, abre-se a oportunidade de analisar as propostas de republicanos e democratas brasileiros – ou melhor, “brasílicos” – nos quadros da tradição mais ampla e longeva do republicanismo. O ponto central dessa tradição, presente em seus adeptos brasileiros, é a defesa do envolvimento dos cidadãos no trato da coisa pública e a democratização do poder político. Ao reencontrarmos esses republicanos no momento mesmo de constituição do país, é inevitável a pergunta a respeito de seu legado. O saber tradicional sobre a história política da Regência e do 2o Reinado indica sua supressão nos idos das décadas de 30 e 40. Da mesma forma, sabemos que o que virá a ser chamado de republicanismo ao final da Monarquia não guarda qualquer semelhança com a radicalidade de João Soares Lisboa, Frei Caneca ou Cipriano Barata de Almeida, exemplares da primeira esquerda brasileira. Ao contrário, ao observarmos os republicanos vencedores no 15/11/1889, temos a impressão de que clones do Visconde de Cairú – que orgulhosamente dizia que “Rousseau, e Condorcet, Mirabeau e Mably não são os meus homens” – dominavam, ressurretos, a cena política do país.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Por que ler Carlos Heitor Cony, ou "Um novo guia para os perplexos"

O texto, a seguir, resulta de entrevista que concedi a Flavio Pinheiro, há alguns anos. Flavio, na altura, editava um ótimo site - nominimo.com.br - e, a propósito de uma longa conversa que tivemos sobre o escritor Carlos Heitor Cony, imaginou um roteiro de perguntas, que acabou por resultar na entrevista que ora transcrevo. Passados cerca de 7 anos da conversa com Flavio, ainda mantenho minhas opiniões e sensação diante dos textos de Cony. Por isso, creio, vale a exumação do texto, que nunca cheguei a publicar. O próprio site dirigido pelo Flavio Pinheiro há muito saiu do ar.

"Renato Lessa é cientista político e leitor voraz de boa literatura. Admite que suas preferências literárias são ‘legionárias e promíscuas’. Mistura Virgílio, Dante, Shakespeare, Molière, Celine, Kafka, Joyce, Thomas Mann, Eça de Queirós, Jorge de Senna, Bioy Casares, Jorge Luis Borges, Primo Levi e Elias Caneti. Entre os brasileiros os obrigatórios Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, mas também Cornélio Pena, Marques Rabelo, Mario Filho e, é claro, Carlos Heitor Cony.
Leitor atento de tudo que Cony escreveu, nesta entrevista Lessa monta um guia do que ler, por onde começar e o que é absolutamente indispensável na vasta obra do escritor. Informação ao Crucificado é, para ele, o melhor livro de Cony, embora considere Tijolo de Segurança uma ‘obra-prima’. Muita gente não entendeu porque em seu último livro, A Tarde da sua Ausência Cony repete no fim um capítulo que estava no início. ‘Entendo o efeito literário, mas saí do livro com a sensação de Ter sido vencido por uma escolha formal’, diz

Se um dia fosse condenado a ser um livro, como aconteceu com a renitente comunidade de bibliófilos de Farenheit 541, obra de Ray Bradbury, hesitaria entre Guia dos Perplexos, de Maimônides, e os Ensaios de Michel de Montaigne. Leia, a seguir, a entrevista sobre Cony."
Flavio Pinheiro
("Novo guia para os perplexos", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 11/7/03)


Por onde começar a ler Carlos Heitor Cony? Qual a importância de seus primeiros livros e por qual deles se deve começar uma leitura de Cony?
A obra de Cony é um universo com múltiplas entradas. Minha própria experiência de leitor - uma experiência em grande medida constituída pela leitura precoce de Carlos Heitor Cony - a cada reencontro com os textos e a obra imagina diversos começos possíveis. Por isso, temo que minha resposta a esta questão seja um tanto confusa.
Com o passar do tempo e com as sucessivas sedimentações de leituras repetidas, creio que uma das boas vias de acesso pode ser preenchida pela arte dos detalhes, tão disseminada nos textos de Cony. Uma forma de promoção do detalhe, aparentemente minimalista, mas que acaba por constituir átomos de sentido, cada qual dotado da carga dramática e expressiva do conjunto. Assim, imagino um primeiro contato hipotético com a obra de Cony através de uma pequena crônica, publicada em 1964, no heróico livro O Ato e o Fato: Crônicas Políticas (Ed. Civilização Brasileira), intitulada ‘Da salvação da pátria’. Nela Cony narra um episódio que eu mesmo, aos dez anos, vi pela antiga TV Rio - nosso saudoso canal 13 -, qual seja o da ‘tomada’ do Forte Copacabana, no dia 31 de março de 1964, por um oficial do Exército - o então Cel. Montagna (mais tarde general, por bravura). O referido oficial desceu de um Citröen preto, na esquina da Joaquim Nabuco com a praia e, após esbofetear um atônito sentinela, coloca dois paralelepípedos no meio da então pista única da Av. Atlântica, ‘para impedir os tanques do I Exército’, suposta reserva legalista que infelizmente acabou não chegando. Na crônica vemos um Cony observador dar lugar ao ator: ao fim de tudo, ele mesmo com o bico do sapato derruba a ínfima pilha de paralelepípedos, revelando de forma absolutamente desdramatizada o absurdo e a falibilidade da suposta barricada, de seu autor e, suspeito, do gênero humano.
A partir desta experiência minimalista, uma via nobre de acesso pode ser percorrida por dois romances notáveis, A Verdade de Cada Dia (1957) e Tijolo de Segurança (1958), imediatamente posteriores à primeira obra, O Ventre. A leitura desses dois belos e tristes romances urbanos pode ser uma útil antecipação à fortíssima carga dramática e literária da obra de estréia. Esses três livros antecedem a grande obra prima de Cony, Informação ao Crucificado, livro publicado em 1961.
Paulo Rónai, em iluminada apresentação ao livro A Verdade de Cada Dia, sugere que o grande tema de Cony é a família. O comentário, já idoso de mais de quatro décadas e não mais publicado, merece transcrição: ‘O grande assunto de Cony é a família. Emprego o termo à falta de outro, porque a família vista pelo nosso escritor é uma entidade especial, com muitíssimo pouco daquilo que a palavra normalmente evoca: seres coagidos convivendo mau grado seu, presos, trancafiados no mesmo cárcere, que se observam desconfiados, com inveja e ódio. Impedidos, pelas paredes da cela, de ver o mundo além, vivem remoendo melindres antigos, procurando anos a fio o sentido de palavras e gestos, até que a interpretação, afinal encontrada, os afunda mais em seu sofrimento. Dilacerados por forte sede de amor, machucam-se em brigas sem fim, e de cada uma saem mais infelizes, tanto mais que toda sua revolta não lhes pode alterar o fato central da existência, a condenação.’ Rónai resume a caracterização com uma sentença forte e inspirada: ‘Assim, cada romance entreabre a porta de outro compartimento do Inferno’.
O material, digamos, empírico à disposição de Rónai - que escreveu o prefácio à segunda edição, saída em 1963 em uma coleção inventada pelo Ênio Silveira, chamada Biblioteca Universal Popular (e financiada por José Luiz de Magalhães Lins, definido por Ênio como ‘um banqueiro a serviço dos interesses nacionais’) - era composto pelos romances de Cony até então publicados: O Ventre, Tijolo de Segurança, o próprio texto prefaciado, Informação ao Crucificado e Matéria de Memória. Da primeira fase de Cony, portanto, ainda não tinham sido publicados e/ou escritos (pela ordem): Antes, o Verão (1964), Balé Branco (1966), Pessach: A Travessia (1967) e o último e escatológico Pilatos (1974), para ficarmos só nos romances. O conjunto de livros considerados por Paulo Rónai - diminuto se considerarmos o conjunto da obra de Cony - permitiu um juízo apurado e profético. Se tomarmos, por exemplo, o mais recente livro de Cony - A Tarde de sua Ausência - é impressionante a consistência da apreciação de Rónai. De fato, como evitar a sensação de que ali, neste texto tão recente e centrado em uma família em completa dissolução, cada movimento ‘entreabre a porta de outro compartimento do Inferno’?
Portanto, se tomarmos o juízo de Rónai como referência, o par de obras composto por A Verdade de Cada Dia e Tijolo de Segurança pode ser considerado uma ótima ante câmara para o universo de Cony. Ali estão motivos perenes de Cony: a falibilidade humana, a cena urbana, a toponímia carioca, o desespero sempre contido e a forte associação entre tristeza e lucidez.

Qual o melhor livro desta primeira fase?
A resposta a esta pergunta é, na verdade, uma nova forma de responder à questão anterior e, sendo assim, tornar o conjunto de respostas ainda mais confuso. O melhor livro - desta e de todas as outras fases - é Informação ao Crucificado (embora considere Tijolo de Segurança uma obra prima). Digo isto a despeito do próprio Cony - em geral o melhor guia para Carlos Heitor Cony -, que tem preferência declarada por Pilatos. Há uma corrente de interpretação da obra de Cony que, privilegiando Informação ao Crucificado, associa este autor a uma tradição literária católica - composta por Jackson de Figueiredo, Alceu de Amoroso Lima, Gustavo Corção e Octávio de Faria. Eu não iria tão longe. É certo, no entanto, que a religiosidade nos textos de Cony é muito forte, quando não seja pela farta erudição católica. No entanto, creio que a religiosidade de Cony tem um quê de paganismo e heresia. Mas, para que essa opinião faça sentido, é preciso falar da centralidade de Informação ao Crucificado no conjunto da obra. Ainda que o livro tenha sido precedido por outras obras a ele, portanto, literariamente anteriores, sustento que Informação ao Crucificado precede existencialmente todos os livros escritos por Cony. A crermos na chave auto biográfica - e parece não haver motivos para crer em outra direção - Informação ao Crucificado narra a experiência pessoal de Cony no seminário maior da arquidiocese do Rio de Janeiro. Uma experiência vida de forma extremamente intensa e cujo resultado líquido é um estado permanente de dúvida e descrença. Ao mencionar a experiência pessoal de Cony com a religião e com a saída da religião, não pretendo adotar uma forma naturalista de entender sua literatura. A biografia do autor não explica a sua literatura. Antes, creio que a chave interpretativa para os textos está contida nos próprios texto, e Cony na medida em que escreve a sua experiência nos fornece uma chave dessa natureza.
Em termos mais diretos, sustento que a obra de Cony pode ser interpretada como uma forma de literatura pós-lapsária. Uma literatura precedida por uma experiência - literariamente construída - de queda no absurdo e na precariedade da vida. O momento dessa queda é a informação prestada ao crucificado: Deus acabou. Lembro-me que em uma conversa com Cony - em um seminário que participamos juntos - mencionei sua hipótese sobre a morte ou o fim de Deus, ao que ele corrigiu-me: Deus não morreu, simplesmente acabou, tal como uma conta bancária, que pode ser reativada a qualquer momento por algum depósito ou herança de uma tia velha e solteira.
A sensação da queda é construída passo a passo no texto da Informação. Um dos eventos centrais é o diálogo de João Falcão com o arcebispo - na época D. Jaime de Barros Câmara, um das mais obscurantistas e reacionárias autoridades da Igreja Católica no Brasil - concluído com a dura observação do cardeal: ‘Eu não acredito em nada de bom em quem não acredita em nada...’ D. Jaime praticamente expulsa Falcão/Cony da igreja, e por isso muito a ele devemos, nós que amamos a literatura. Ao mesmo tempo a religiosidade mantém-se intacta, de uma forma pagã e herética, na qual os santos subsistem à falência de Deus e de sua igreja. Ao longo da obra, é possível encontrar deliciosos momentos de anti clericalismo e humor, como no nome de um personagem de A Verdade de cada Dia - um escroque completo - batizado como Marcelino de Jesus, em duvidosa homenagem ao Padre Marcelino Champagnat, pio patrono dos Irmãos Maristas.
Mas, voltando ao ponto, central: Informação ao Crucificado pode ser lido como momento deflagrador de uma literatura a respeito da queda, povoada por seres falíveis, defeituosos, tristes e a despeito disso agarrados de algum modo à vida. Não me parece aleatório o fato de que o último livro da primeira fase de Cony - então apresentado pôr ele como seu último livro seja Pilatos, um dos momentos máximos da escatologia e da degradação humana na literatura brasileira.
O desfecho de Informação ao Crucificado foi fundamental para o não alinhamento de Cony a uma literatura católica. Qualquer outra saída, seja pela obediência, seja pelo fideísmo, teria outras conseqüências. A opção de Cony fez com que a dúvida o constituísse como seu próprio personagem.
Mas, é preciso falar também de Pessach: a Travessia. Considerar a travessia nesse livro concretizada e que, em um certo sentido, complementa a que não foi efetuada em Informação ao Crucificado. Em Pessach, são as mesmas razões apresentadas por João Falcão - i. e., Cony - a D. Jaime de Barros Câmara a respeito de como evitar o pecado, baseadas no princípio da coação interior e não no da obediência a autoridade externa, que estão presentes na decisão de Paulo - e Cony pode ser tudo menos inocente quando batiza um personagem seu com o nome de Paulo - de incorporar-se à luta armada. Em Informação, o motivo interno deu vazão à dúvida e à descrença; em Pessach, à aposta pascaliana.

Dos livros da nova fase literária de Cony - reinaugurada com Quase Memória - qual o que mais lhe agrada? O que é perfeitamente descartável na obra de Cony? Você entendeu a intenção de Cony, no desfecho de seu novo livro (A Tarde de sua Ausência)?
Gosto muito de A Casa do Poeta Trágico, na qual os motivos do primeiro Cony - se é que posso expressar-me deste modo - estão bastante presentes. Aqui não há o lirismo e o humor de Quase Memória e o desvairado e delicioso surrealismo - associado à nostalgia ferroviária, da qual compartilho por razões familiares - de O Piano e a Orquestra. A despeito da opinião de Cony a respeito de Quase Memória, trata-se de um livro pungente e delicioso.
Em princípio não descartaria nada na obra de Cony. Diria apenas que em alguns momentos de sua obra eu não pude sentir os efeitos conyanos habituais. Nesse sentido não é que não goste, mas Romance sem Palavras passou-me um tanto desapercebido. Em A Tarde de sua Ausência encontro alguns motivos básicos da obra, já assinalados pôr Rónai. Encontro ainda um dos capítulos mais bem escritos por Cony desde sempre, justamente um dos que se repetem ao final do livro. Entendo o efeito literário pretendido, mas saí do livro com a sensação de que fui vencido pôr uma escolha formal, eu que esperava um desdobramento substantivo.

O que mais o cativa na literatura de Cony?
Meu principal fardo profissional consiste em lidar com a tradição intelectual do ceticismo; suas origens remotas, suas redefinições na modernidade e sua presença no quadro filosófico contemporâneo. Pois bem, meu primeiro contato com o que muito tempo depois aprendi ser o ceticismo deu-se na leitura precoce e sempre presente dos livros de Cony. O que sempre me encantou em Cony foi a visão da falibilidade humana, da associação entre tristeza e lucidez - presente na idéia e que a compreensão de como as coisas dão-se efetivamente é um preâmbulo para a infelicidade. Paradoxalmente, essas características são cruciais para que uma dimensão da escrita de Cony seja possível: o seu humor invulgar. Um humor fino, genuíno e cortante, posto que sustentado na tal compreensão pós-lapsária da nossa existência. Ao mesmo tempo, tudo isso entremeado com passagens belas e sublimes, como luzes jogadas nas faces de seres que vivem a obscuridade da vida. O que me encanta em Cony é o que me encanta em Francis Bacon e El Greco.
Seria um presente poder contar com edições críticas da obra de Cony, que nos trouxessem de volta os belos textos e orelhas de Antonio Houaiss, Paulo Rónai, Leandro Konder, Ênio Silveira, Mário da Silva Brito e Antonio Callado.
Rio de Janeiro, julho de 2003