quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Como falam os inimigos: os Diários de Victor Klemperer e a língua do Terceiro Reich

Há pouco mais de dez anos, foi publicada, pela editora Companhia das Letras, uma versão abreviada - de cerca de 900 páginas - dos Diários de Victor Klemperer, obra inestimável para o entendimento - se é que isso é possível - da experiência nazista. A edição abreviada cobre exatamante o período compreendido entre os anos de 1933 e1945. O leitor encontrará nos Diários o registro fino da progressiva implantação do nazismo na vida diária e, do ponto de vista da biografia de Klemperer, o trajeto que o levará ao encontro de sua identidade judaica, o único resíduo existencial que lhe resta diante da supressão de partes constitutivas de sua identidade: alemão, professor de literatura germâmica, combatente da Grande Guerra, etc... Em 2000, a pedido de Sergio Miceli, escrevi o ensaio que ora reproduzo no blog, para publicação no Jornal de Resenhas, então encartado no jornal Folha de São Paulo. A perenidade do texto de Klemperer justifica, a meu juízo, plenamente a exumação do ensaio que sobre ele escrevi.

Renato Lessa

No inverno alemão de janeiro de 1933, a vida do Dr. Victor Klemperer sofre inapelável inflexão. Até então, esse pacato professor titular de literatura românica da Universidade Técnica de Dresden, desde 1920, vinha dedicando-se à leitura, ao ensino e à escritura a respeito de um universo composto por personagens tais como Corneille, Montesquieu – tema de sua tese de doutorado, em 1914 -, Voltaire, Diderot, Rousseau e a miríade de figuras do delicioso século XVII francês, lindamente estudado por Paul Bénichou, em Morales du Grand Siècle e abrigo de céticos, pessimistas, irônicos e libertinos. A exposição a esse universo fez de Klemperer um sujeito híbrido.
Por um lado, ele personaliza o intelectual humanista típico, a combinar erudição histórica e literária, desconfiança diante de pretensões de compreensão exaustiva do mundo e, a despeito disso, disposição incomum de absorver informações e idéias. Ainda nessa chave, Klemperer é o que poderíamos designar como um intelectual permanente: nos seu piores momentos de infortúnio, a partir do desastre de 1933, o temor pela própria vida será invariavelmente acompanhado pelo horror diante do espectro da impossibilidade do pensamento. Esse exercício obsessivo da observação e da leitura e essa insaciabilidade cognitiva estão presentes em Klemperer na persona de um cético prazeiroso, para usar a bela auto-definição que ele mesmo nos proporciona. Como veremos, essa marca tem conseqüências decisivas na escritura klemperiana.
Mais do que humanista com afinidades céticas e cidadão pleno da república das letras, Klemperer é um alemão. Esse é o outro lado da história: o contraponto local de uma identidade que se pretende também referida à uma dimensão não-paroquial. A inflexão de 1933 representa para Klemperer sobretudo a destruição de seu mito pessoal a respeito da circunstância humana mais elementar: a que pertenço, que atributo identitário básico dá sentido a minhas escolhas e ações?
Victor não tem dúvidas a respeito disso. Veterano da Grande Guerra – uma “guerra decente”, em contraste com a que ainda viria -, portador da Cruz de Combate, protestante convertido – embora filho de um rabino: trata-se, portanto, de um alemão. Mesmo supondo que a ênfase nesse atributo, em seu diário, possa ser explicada pela ameaça externa da sua supressão pelos nazistas, é impressionante como a “Alemanha”, na economia textual de Klemperer, é o lastro, a imensa dimensão tácita, de sua vida pessoal. A família, aqui, tem papel remoto. Os irmãos são distantes, mesmo antes da fragmentação imposta pela nova diáspora. O pai é figura mais do que bissexta. A mãe jamais aparece.
A possibilidade da perda do atributo é, portanto, a maior das privações. Em abril de 1934, Klemperer horroriza-se diante do comentário de Grete, sua irmã: “Você pode convencer-se a si mesmo que é alemão, eu não consigo mais”. Abandonada, à sua sorte, no meio de uma Berlim nazificada, Grete suscita em Victor o duro comentário: “Foi tão horrível quanto típico observar de que maneira toda a alemanidade desapareceu em Grete e como ela só consegue e quer observar toda essa situação sob o ponto de vista judaico”. Adotar “o ponto de vista judaico” como referência identitária aparece, portanto, como efeito da desgermanização imposta pelo regime. Grete só pode ser “judia” porque não mais alemã.
São os preconceitos de um “alemão ordinário” que falam através de Klemperer, em suas primeiras tentativas de interpretação da barbárie hitlerista. Diante da notícia de que o comissário de justiça da Saxônia, já em 1933, ordena a retirada das bibliotecas das prisões de textos marxistas e pacifistas, Klemperer comenta: “Sob a ocupação de negros franceses estaríamos vivendo mais num estado de direito do que sob este governo”. À violência de membos das SA, no mesmo ano, contra comunistas, por meio da linguagem mussoliniana do óleo de rícino e das surras, Klemperer exibe sua perplexidade: “Se italianos fazem isso – tudo bem, nativos do Sul, animais...Mas alemães?” Preconceito, perplexidade e desencanto:
“...não acredito que ela (a Alemanha) venha a ser resgatada das mãos desse novo governo. Por sinal, acredito que ela jamais perderá a ignomínia de ter sido tomada por ele. Quanto a mim, jamais voltarei a ter confiança na Alemanha (...)...sinto mais vergonha do que medo, vergonha pela Alemanha. Verdadeiramente, sempre me senti alemão. Sempre imaginei: século XX e Europa Central são coisas bem diferentes de século XIV e Romênia”.
O regime que começa a ser imposto aos alemães em 1933 viola, portanto, todas as cláusulas da germanidade (a essa altura, Thomas Mann já tinha dito que o regime contrariava as cláusulas da humanidade). No entanto, preconceito, perplexidade e desencanto começam a dar passagem, pouco a pouco, a hipóteses distintas, em chave mais fina, ainda que ambígua: “Na Alemanha (...), essa forma de governo não é encontrada em nenhuma parte, é absolutamente não-alemã e, por isso, sem uma duração, de alguma maneira, definível. Mas no momento, está organizada com a meticulosidade alemã e, por isso, não pode ser abolida num tempo previsível (ênfase minha)”
A essência do governo é “não-alemã”, mas a sua forma e a sua efetividade trariam a marca nacional. A contribuição alemã teria, portanto, um caráter meramente prático, a serviço de valores e objetivos de origem diversa. Os diários de Klemperer – de 1933 a 1945 - podem ser lidos como o testemunho da desconstrução dessa crença. Mais do que registro de uma experiência mundana, trata-se de um exercício de sobrevivência e de auto esclarecimento. O passo inicial desse exercício pode ser encontrado em uma passagem sombriamente antecipatória, registrada em março de 1933: “O destino do movimento hitlerista situa-se inquestionavelmente na questão judaica. Não entendo porque colocaram esse ponto no programa em posição tão central. Esse ponto os levará à ruína. Mas, provavelmente, nós iremos junto”. Além da indicação do conteúdo – o anti-semitismo – a ser maximizado pela forma alemã – a “meticulosidade” -, aparece esse novo sujeito: “nós”. A inflexão de 1933 significa a judaização de Victor Klemperer.
As condições de observação, o terror, a avareza de informações e o incessante cheiro de morte, contraditados pela disposição de viver e dar testemunho, presidem uma narrativa complexa, descontínua e com impressões díspares. A única certeza de Klemperer acaba por não materializar-se: a de sua morte sob o III Reich. Em outros termos, os Diários registram uma história contada por alguém que não poderia sobreviver para contá-la. Mas, como ler essa história?
Pragmáticos e ávidos por informações primárias têm nos Diários de Klemperer – mesmo com acesso limitado à edição abreviada, de cerca de 900 páginas, e não ao texto completo - informações, descrições e impressões preciosas a respeito do experimento do III Reich e do que significou viver como um judeu naquele contexto, ainda que protegido por um casamento misto. Os diários e sua obra prima – o inédito entre nós A Língua do Terceiro Reich, publicado na Alemanha em 1947 – constituem - talvez ao lado de outra peça notável e não disponível a leitores brasileiros, O Estado SS, de Eugene Kogon, de 1946 – o que há de melhor, de instantâneo e de mais compreensivo a respeito da experiência nazista. Ainda que, no que diz respeito a Klemperer, a impressão de Franz Neumann – registrada no magistral Behemoth, de 1942 – de que o regime nazista é avesso à explicação racional, pois tratar-se-ia de um “não-regime” e sim de pura desordem pelo alto, permaneça, seus testemunhos são incontornáveis. Da mesma forma que é impossível considerar a experiência do campo de concentração sem a orientação de Primo Levi, Klemperer é nosso guia compulsório para a noite e o inferno do III Reich.
Contudo, mais do que informação, há em Kemplerer uma forma de narrar os fenômenos. O que conduz a uma questão crucial: de que escritura se trata? A resposta a isso remete a muitos planos.
No primeiro deles, e no mais geral, trata-se de uma literatura praticada por escritores in extremis, segundo sábia notação sugerida por Guy Stern. A categoria cobre um conjunto de autores – sob severas e diversas condições de risco – para os quais escrever está associado à decisão de sobreviver pela palavra como seres humanos criativos. Em uma aproximação com a literatura sobre o Holocausto, Alvin Rosenfeld, em A Double Dying: Reflections on Holocaust Literature (Bloomingtom, 1980) sugere: “A literatura sobre o Holocausto nasce...como uma espécie de milagre, não apenas como resultado de um desespero mudo, mas como asserção e afirmação de fé. Em alguns casos, talvez [até] não se trate mais do que tenacidade humana (...) diante da morte brutal. Em outros, trata-se de fé na vontade de rejeitar a obliteração final e maligna. Ou ainda: fé na força persistente e nada estranha de um ânimo para buscar e encontrar novos começos”. A chave da recusa da obliteração nos devolve em cheio a Klemperer.
Esse ato de resistência é precedido de uma decisão ética: a de seguir escrevendo e a de dar testemunho: “Seguirei escrevendo. Esse é o meu heroísmo. Prestarei testemunho, testemunho preciso”. Nos doze anos de ordálio, Klemperer não para de registrar suas impressões. A cada interrupção mais longa – como a da prisão por ter deixado a janela aberta com a luz acesa durante o blackout – segue-se meticuloso esforço de reconstituição dos dias sem acesso ao diário. A inspiração desse cronista é claramente montaigneana. É Montaigne quem aparece como autor sugerido a seus estudantes, nos últimos momentos em que conserva sua cátedra, através de deliciosa passagens dos Essais: ils vont, ils viennent, ils trottent, ils dansent... Klemperer, como Montaigne, escreve os ensaios de sua vida. Não certamente em um castelo e contando com sua memória, mas igualmente ao sabor das impressões provocadas por um mundo que não controla e mantendo-se intelectualmente em movimento. Diante da letalidade do mundo, a escritura é como que uma redenção, um abrigo ou, simplesmente, um antídoto à loucura. A escritura é, portanto, visceralemente tensa: trata-se de exercitar o prazer e a sensação de recuperar a integridade proporcionada pelo pensamento e pela ação textual – ver, por exemplo e em especial, a narrativa a respeito de sua prisão – diante de um mundo letal, no qual os assuntos dispostos à observação são antes objetos de horror do que de conhecimento.
O caráter incognoscível dessa experiência não radica apenas no horror e em sua incompatibilidade com conhecimento sistemático. Além da incerteza abrigada pela certeza do terror, há a surpresa freqüente das situações de anticlímax: tratamento gentil e humano por parte de alemães ordinários, aparentemente desconhecidos de Daniel Goldhagen, e o acaso, o puro acaso, pai, suspeito eu, de considerável porção dos eventos humanos. Klemperer é salvo da morte por sua mulher Eva, “ariana” segundo a língua do III Reich. Protegido por um casamento misto, Victor – um dos 168 judeus sobreviventes de Dresden - escapa da morte certa, em fevereiro de 1945, com o bombardeio daquela cidade, executado pela RAF. Alguma utilidade, portanto, pode ser depreendida da estupidez do bombardeio de Dresden, dizimada quando a sorte da guerra já estava decidida. De qualquer maneira, as bombas inglesas trazem o caos e com ele vida para Victor, agora livre de sua estrela amarela, arrancada de seu paletó por Eva - sempre Eva - e do acréscimo de Israel em seu nome.
Essa é, portanto, uma história de acasos e de certezas, que transita entre a sensação instantânea de estar vivo e o reconhecimento incontornável de que tudo acabará em morte. Essa é uma história narrada à moda de Montaigne, mas também de Primo Levi. Se considerarmos a brilhante imagem de Primo Levi – a da complexidade do estado de desgraça -, exposta em sua narrativa da experiência de Auschwitz, veremos que essa é a coluna, digamos, metodológica da narrativa de Klemperer. Pela imagem, Levi denota um processo no qual cada infortúnio sofrido, mesmo que momentaneamente suprimido, dá lugar ao reconhecimento e ao domínio de outro infortúnio: à supressão do frio, com o fim do inverno, sobrevinha a ditadura da fome; essa, se por acaso saciada minimamente, permite que consideremos a doença, ou outra fonte de infortúnio qualquer. A dor, mais do que cubista, revela-se sob camadas de malignidade, em uma disposição arqueológica que evoca o inferno de Dante. A história de Victor e de Eva segue a lógica da complexidade do estado de desgraça: isso faz com que todas as avaliações registradas ao fim de cada ano – de 1933 a 1944 –, e sempre a indicar que as coisas nunca estiveram piores, embora retrospectivamente sujeitas a reparos, sejam verdadeiras.
O leitor dessa história sabe como as coisas terminam. Se medianamente culto, dispõe de excelentes histórias, algumas das quais tentam explicar o inexplicável. Mas, Victor não sabe do que se trata, ignora o alcance das coisas, ouve falar imprecisamente de Auschwitz apenas em 1942 e, sobretudo, não tem a visão do final, ainda que tenha a certeza da morte. Essa é a mais radical experiência da escritura in extremis: eis aqui os ensaios da minha vida, pelos caminhos que conduzem à minha morte certa.
A decisão de escrever é condição necessária da escritura. Essa proposição trivial adquire no caso de Klemperer uma aura dramática e remete a um enigma: Victor escreve porque fica na Alemanha. Sendo assim, como explicar essa decisão de ficar?
Havia na Alemanha, em 1933, cerca de 500.000 judeus. Através de sucessivas ondas de migração – que incluem irmãos e amigos de Klemperer – e até 1941, quando a saída do país ficou impossível, apenas 1/3 permaneceu. Na posição que ocupava, a fuga do nazismo, e do país, não era para Klemperer impossível. Ao longo do diário, várias razões são apresentadas: todas elas denotam inadaptação a qualquer coisa que não fosse alemã. Klemperer constrói uma casa nova, nas cercanias de Dresden, aprende a dirigir com quase 60 anos de idade e compra um automóvel, carinhosamente designado como “bode velho”. Seus movimentos indicam a direção de um enraizamento, em um mundo que a todo momento o define como “personalidade problemática”.
Como explicar, então, esse apego? Kurt Schwitters, artista plástico alemão e um dos criadores do dadaísmo, sai da Alemanha em 1933 e, mais do que isso, decide abandonar a língua. Em seu exílio inglês, Schwitters não mais utiliza a língua natal, pois a crê contaminada pelos símbolos da “nova ordem”. Klemperer representa o negativo da atitude de Schwitters. O III Reich é, antes de tudo, uma linguagem. Antes de Wittgenstein, Klemperer está a sugerir que sendo uma forma de vida, o III Reich é um contexto linguístico e semântico. Talvez seja exagero dizer que fica na Alemanha para estudar a linguagem do III Reich. Isso pode soar como falácia: post hoc, ergo propter hoc. No entanto, se esse não é o motivo, creio ser essa a razão. A chave dessa suposição encontra-se plenamente apresentada na obra-prima A Língua do Terceiro Reich, de 1947 .
O apego a essa manifestação do regime resulta, ironicamente, das proprias supressões que ele impõe. Privado do acesso a bibliotecas, expulso de sua casa e da possibilidade de exercer seu ofício em bases normais, a língua de seus inimigos adquire centralidade. Klemperer, assim, apega-se a algo que o regime não pode suprimir ou a ele negar: a sua linguagem. Tudo o mais pode ser retirado: vida, bens e dignidade. Mas, sob condição de oferecer a Klemperer uma coleção notável de fenômenos: as palavras, as locuções e, ao fim, os sons que estruturam a nova forma de vida. Victor sobrevive para observar como falam os inimigos, para revelar a intimidade e os efeitos de seus jogos de linguagem. Seus textos concedem ao leitor o privilégio inestimável de testemunhar nossa vitória final sobre o nazismo.

domingo, 22 de agosto de 2010

A crítica da ficção racional

Renato Lessa

Se você sente algum incômodo com a imposição do vocabulário da "rational choice" como linguagem natural da política, sugiro como bálsamo a leitura de um livro, que combina coragem com acuidade, a respeito dos fundamentos daquela corrente ideológica, que pretende apresentar-se como paradigma científico. Trata-se do livro de Bruno Sciberras de Carvalho, jovem professor adjunto de Teoria Política do IFCS/UFRJ, intitulado "A Escolha Racional como Teoria Social e Política: uma interpretação crítica" (Rio de Janeiro: Topbooks, 2008). Tive a alegria de ser profesor de Bruno, no finado Iuperj, e de ter partipado de sua banca de doutorado, ocasião em que apresentou como tese o texto que deu origem ao livro mencionado. Honra extra sobreveio quando Bruno convidou-me a escrever a orelha de seu livro. Reproduzo-a aqui, como um convite á leitura do livro.


No conjunto das Ciências Sociais, a Ciência Política, hoje, candidata-se a ocupar o segmento mais conservador. Tal conquista não lhe parece ter sido atribuída por sociólogos ou antropólogos, os outros habitantes do conjunto mencionado. São movimentos no seu próprio interior que a têm transformado em um saber rendido à materialidade dos fatos brutos e cada vez mais distante da alucinação originária dos filósofos da política que, como diria James Joyce, cerravam os olhos para melhor ver as coisas.
Dois movimentos, ao longo da história recente da disciplina, indicaram os rumos dessa virada conservadora. Antes de tudo, em fins dos anos 50, com a auto intitulada revolução behaviorista, a Ciência Política estabeleceu sua ruptura com o campo das Humanidades. David Easton fez o elogio dessa recusa ao definir a nova forma de cientificidade: uma revolução na coleta de dados. Séculos de metafísica, especulação filosófica e de imagética variada sobre diversos mundos possíveis são suprimidos como modos de uma pré (ou anti) cientificidade. Os fatos governam o mundo e o que nos resta é recolhê-los diligentemente. Mais vale uma série estatística nas mãos do que dois filósofos políticos a voar.
A partir dos anos 80 e 90, outro passo decisivo marcou a Ciência Política contemporânea. Trata-se, agora, de uma ruptura com a própria tradição das Ciências Sociais, a partir da difusão da crença de que as instituições políticas podem ser mais bem compreendidas se tomadas como entes autárquicos, dotados de uma lógica irredutível a causalidades “exteriores”, sejam elas sociais, históricas ou, muito menos, culturais. O institucionalismo triunfante – presente nessa fixação das instituições como o objeto por excelência dessa nova ciência exata – fundiu-se, ainda, com um conjunto de suposições sobre a natureza humana que a descreve como uma máquina global de maximizações, tal como a definiu Jon Elster.
Pois bem, institucionalismo cum escolha racional configura um híbrido ideológico que replica os sinais civilizatórios do tempo presente: o homem maximizador – produto e premissa do fundamentalismo de mercado – é tomado como chave analítica para o seu próprio entendimento. Conhecer, portanto, é reiterar o que se vê.
O livro de Bruno Carvalho resulta de excelente e corajosa investigação a respeito dos pressupostos da teoria da escolha racional, fundados na postulação de um agente humano maximizador de utilidades, uma variante especial do homo sapiens que bem mereceria a designação de homo choicer. A proposta de Bruno é a de investigar os fundamentos dessa perspectiva de configuração do social. Ao fazê-lo revela que, mais do que (ou menos do que) estabelecer um conjunto de hipóteses analíticas, a escolha racional configura um desenho de mundo inóspito a qualquer perspectiva emancipatória, fundada em suposições mais complexas a respeito da condição humana.
O trabalho de Bruno mostra, ainda, que o predomínio conservador está longe de ser inelutável. É fundamental exercer a crítica da escolha racional como paradigma científico e, sobretudo, como forma de vida. Com o livro de Bruno, temos à nossa disposição um inestimável arsenal crítico. Depois de lê-lo somos restituídos à convicção de que é tão necessária quanto viável a construção de um saber da política, crítico e reconciliado com a tradição das Humanidades e das Ciências Sociais.

Elucidações Raquíticas

Renato Lessa

(Publicado no suplemento ALIAS, do jornal Estado de São Paulo, em 22/08/2010)

Não acompanho a sede por debates, quando se trata de campanhas eleitorais, presidenciais ou não. Salvo nem tão surpreendentes surpresas, representadas por personagens colaterais, que se permitem dizer o que não diriam se fossem efetivamente competitivos, a coisa, em geral, sabe a trucagem e a oportunidade para exercícios de dissimulação. A política exige representação, por certo. Em grande medida, ela é representação, pois a possibilidade de dizer algo que produza impacto na configuração pública da sociedade exige o pôr-se em um lugar artificialmente construído, para que isso seja possível. É simples a coisa: não há política natural e isso exige atos de representação.

Não vai, portanto, nenhuma postulação por uma autenticidade perdida, do tipo da que exigimos quando lidamos com, digamos, pessoas naturais ou com seres que habitam nossos círculos de intimidade. Dilma, Marina, Plínio, Serra e os demais não nos interessam – ou não nos deviam interessar – por atributos que seriam mais bem apresentados em revistas de celebridades. São por definição, e como nos ensinou o Dr. Hobbes, pessoas artificiais. Quando destilam autenticidade e espontaneidade, estão a representar. Melhor faríamos se nos perguntássemos: o que estão a representar quando pretendem não representar?
Tal postura de, digamos, ceticismo eleitoral parece-me recomendável, sobretudo se considerarmos que o que se diz em campanhas não prefigura necessariamente o que se fará no governo. Por falha mnemônica ou traição, por certo, mas, sobretudo, pela implacável presença do acaso, do imponderável e da ação de dinâmicas sociais e mundiais sobre as quais não se tem honestamente controle algum. Por certo, faz parte do exercício de representar uma persona pública minimizar a presença da ignorância como componente inerradicável dos humanos. Há um que de delírio obsessivo e de onipotência do pensamento na coisa.
Mas, vá lá, até que debates servem para algo. Diante da eliminação da discussão política como prática corriqueira, debates, por mais laqueados que sejam, e horários dito gratuitos acabam por ser o que se tem. Vale dizer, de passsagem que o estado da comunicação política no país, como diria o saudoso Zé Trindade – um autêntico exemplar da vasta série brasileira dos Zés -, é de amargar. Frases curtas, idéias simples, plasticidade, emoção, tudo isso assentado na suposição de uma cláusula pétrea: a menoridade cognitiva dos cidadãos, que devem ser tratados como sujeitos dotados de baixa reflexividade. Os realistas, rendidos aos fatos e à inevitabilidade das coisas, podem acrescentar: isso ocorre aqui e alhures. A conclusão analítica é notável: a infantilização do vocabulário das campanhas é um marcador de maturidade e aperfeiçoamento democrático.
A utilidade à qual aludi pode dizer respeito, por exemplo, a eventuais atos falhos, durante debates e que podem ser elucidativos. Não nos é dado mentir a respeito de atos falhos ou lapsos momentâneos de falta de memória e sinceridade, embora possa haver, por certo, trucagem na matéria. O debate promovido pelo jornal Estado de São Paulo, entre os candidatos a vice-presidente possui, entretanto, utilidade extra. Menos pelo que dizem que pensam – ou pensam que dizem - os participantes, mas pela sinalização que emitem pelo fato de terem sido escolhidos para o papel.
Em tal aspecto, as marcas são claras: o vice de Serra, a indicar a maior inflexão à direita já feita na história do PSDB – maior mesmo do que a transformação de Alckmin no grão-chefe tucano e, a paulista -; o vice de Dilma, a exibir a solidez do apoio da grande máquina que dirige e a sugerir que possui densidade e, sobretudo recursos políticos para ultrapassar mera coadjuvância; por fim, o vice de Marina, a exalar a cultura da pureza das ações sociais não estatais e do sucesso pessoal e empresarial altruístico.
Mas o que dizem de relevante os postulantes à vice-presidência? Em meio ao debate superficial e fragmentado, chama a atenção o recurso ao plebiscito e ao referendo como forma de lidar com questões ditas espinhosas, tais como o aborto. Dois dos postulantes – Temer e Leal - defendem tais recursos como forma de praticar a “democracia direta” ou “participativa”. O vice de Serra preferiu considerar o tema do aborto a partir da idéia de que se deve evitar o sexo entre adolescentes. Causa ingrata, então não? Lembra mesmo Juarez Távora, na década de 1950, a solicitar que os operários apertassem os cintos.
O recurso retórico a “formas de democracia direta” converteu-se em mantra nos últimos anos. Conferem-se atestados democráticos a qualquer ação coletiva que seja capaz de dirigir aos poderes constituídos demandas por políticas públicas preferenciais que possam ser chamadas de suas. Demandas com freqüência formuladas em cenários corporativos e segundo critérios majoritários. Para os vice-candidatos em questão, mais – o menos – do que doutrina democrática, trata-se de passar a bola. As correntes organizadoras da opinião política – supostamente partidos políticos – já não contam. É a pureza e a espontaneidade do “eleitor” que devem decidir sobre temas candentes. Que o diga o tema do desarmamento. A menção ao instituto supostamente participativo, mais do que índice de compromisso democrático, pode estar a sugerir raquitismo político. Os vices parecem espelhar-se em seus chefes. Não surpreende o fato de que tenham nos proporcionado vice-elucidações.

domingo, 15 de agosto de 2010

Estado Providência

Renato Lessa

Há dois anos, em agosto de 2008, publiquei este artigo no suplemento Aliás, no jornal Estado de São Paulo. O caso foi vergonhosamente esquecido e os culpados virtualmente anistiados. Para marcar os dois anos do trucidamento dos jovens do Morro da Providência, republico no blog o artigo.


O filósofo francês François Lyotard disse, em uma certa altura, que o Holocausto assemelhou-se a um terremoto que acabou por destruir os instrumentos de mensuração e detecção de terremotos. Ainda que nosso horizonte imediato de malignidade não se compare ao do extermínio brutal e cuidadosamente perpetrado pelos nazistas, há algo a reter na idéia de um desastre que corrói a própria possibilidade de compreendê-lo.

No calor dos acontecimentos iniciados pela ação do Exército no morro carioca da Providência e que culminaram com o trucidamento de três jovens, a opinião circunstanciada dos especialistas foi solicitada, como recurso de elucidação daquilo que a olhos, vá lá, normais aparecia como inexplicável. Entre as tentativas de elucidação, uma em particular chamou-me a atenção, pois viria a ser repetida por outros especialistas e por colunistas de notória expressão conservadora. Na noite do dia do enterro dos três jovens, um veterano especialista no tema da violência atribuiu – em entrevista televisiva – o evento a uma questão de treinamento (sic). Em termos diretos: o Exército não foi treinado para lidar com a segurança pública, logo, por mais lamentável que seja, o episódio inscreve-se na ordem das possibilidades.

Não desejo prosseguir com essa referência em chave assim tão pessoal, mas a reação de meu filho de 18 anos, a meu lado, abriu-me uma janela de reflexão. Ao ouvir a sábia explicação, disse meu filho em sua linguagem especial de rubro-negro carioca, a qual aqui penso traduzir: “eu não fui treinado para lidar com segurança pública, mas não entregaria três seres humanos para a morte certa, nas mãos de assassinos notórios”. Com efeito, a observação possibilitou o desfrute da elevação existencial que sobrevém com a indignação: acabam de trucidar três jovens inocentes e o sujeito põe-se a falar de “treinamento”.

Os instrumentos de mensuração de desastres sociais – e seus operadores -parecem ter sucumbido aos desastres. Há um evidente hiato entre possíveis despreparos operacionais, ou lapsos de treinamento, por parte dos chamados “agentes da lei” e aquilo que seres humanos se permitem fazer com outros seres humanos. E é disso, primariamente, que se trata. Uma ciência social sem espírito está, às cegas, a procura de regras e instituições para retificar a vida social. A boa regulação e o bom desenho institucional acabarão por nos redimir, dizem-nos. Claro está que uma nova escuta do social se impõe, que seja capaz de reorientar nossas observações e fazer do tema e do lugar do sofrimento humano o núcleo sobre o qual toda a atenção deve incidir. Há muitas camadas no evento em questão a considerar, antes que nos preocupemos com problemas de “treinamento”.

Antes de tudo, a primeira camada do evento, a do registro do nome de cada uma das vítimas, antes que caiam no abismo infinitesimal da numeração estatística: Wellington Gonzaga Costa, 19 anos; Marcos Paulo da Silva, 17 e David Wilson Florêncio da Silva, 24. Os três foram detidos no Morro da Providência por onze militares do Exército brasileiro, chefiados por um tenente e, depois de um périplo que incluiu maus tratos imediatos e uma ida ilegal ao quartel, foram entregues a traficantes de uma área “inimiga”, que procederam ao esperado. Um dos primeiros impulsos da cobertura jornalística consistiu em informar-nos a respeito da folha penal de cada um dos vitimados, como que a sinalizar os limites adequados de nossas reações. Omito, aqui, tais dados, por absolutamente irrelevantes. O que importa registrar é que, em um intervalo de poucas horas – da detenção à morte, os jovens só poderão ser descritos por aquilo que os laudos da autópsia revelariam do que foi imposto a seus corpos. São seus laudos cadavéricos que hoje servem de suporte para a notoriedade que acabaram por obter, do único modo que lhes foi facultado.

Wellington foi severamente torturado, com golpes de madeira e barras de ferro; levou 26 tiros por todo o corpo – tiros nas mãos, pés e joelhos e em um olho -; teve ainda, durante o suplício, os braços amarrados e as coxas perfuradas por um vergalhão de ferro. David foi igualmente torturado e baleado com 26 tiros por todo o corpo; suas pernas foram quebradas e seu tormento arrastou-se por uma hora. Marcos levou apenas um tiro, que lhe perfurou o pulmão e a aorta, mas foi arrastado pelos cabelos, pelas vielas do Morro da Mineira. Um experimentado legista – testemunha do que há de mais radical na dor humana – comentou: os três jovens sofreram barbaramente antes de morrer. É esse o ponto nuclear do evento: as marcas finais fixadas nos corpos dos três supliciados.

A câmara de gás de Auschwitz ainda hoje conserva em suas paredes as marcas das unhas dos que ali foram eliminados do mundo. Hoje se apresentam como pormenores e fragmentos que interpelam e obrigam a imaginar o complexo e imenso horror do campo de extermínio. Pequenos arranhões sobre as paredes são suficientes para que toda a experiência do horror seja evocada. Sabemos bem ler aquela partitura. O que se nos impõe, agora, é aprender a ler os laudos de autópsia e de corpo de delito de jovens idênticos aos vitimados do Morro da Providência. Na impossibilidade de escutar seus gritos e pedidos de ajuda, o que dizem seus parentes, amigos e vizinhos deve ser tomado como uma arma de elucidação do que se passa nos meandros mais sombrios e letais da vida social.

Os relatos falam-nos de uma ocupação militar, suscitada por uma fétida aliança política, entre o Presidente da República e seu candidato a prefeito do Rio de Janeiro. O rebatimento da aliança sobre a área do Morro da Providência deu-se sob a forma da participação do Exército em obras de recuperação de fachadas e telhados. Com a graciosa oferta de mão de obra, sobreveio a ocupação militar, sob pretexto de dar segurança aos operários. No enterro dos rapazes, a comoção generalizada não inibiu a percepção adequada da rede de causalidades que tornou possível o evento em questão: Lula, o Exército e o senador Crivella foram citados de modo pouco carinhoso, para dizer o mínimo. O que esperar de uma aliança desse tipo? Querem o que? (Crivella, aliás, não fosse tudo isso, mereceria ainda assim severo castigo eleitoral pelo nome magnífico de seu programa, designado como “cimento social”).

Dos vizinhos, ouvimos o testemunho do toque de recolher, das repetidas revistas ilegais, das ameaças com armas e da menção a casos precedentes de entrega de “elementos” suspeitos a milícias e a traficantes. Melhor do que parafrasear, é ouvir o que diz uma mulher de 55 anos: “Eles (o Exército) fazem igual à polícia. Revistam nossas bolsas, colocam os moradores na parede, olham a mochila de crianças, jogam spray de pimenta”. No caminho para o enterro dos jovens, a bandeira brasileira que havia sido fincada pelos ocupantes foi arrancada pelos moradores que ali pretendiam por um pavilhão de cor mais adequada. Negra, por certo. O pavilhão foi reposto pelos soldados e hoje, acrescenta à sua simbologia histórica o fato de indicar quem manda no pedaço.

Duvido que um dos moradores ouvidos tenha lido o filósofo italiano Giorgio Agamben, famoso, entre outras coisas, por declarar que vivemos todos – e em toda parte - em um “estado de exceção permanente”. Mais contido, o morador sem metafísica afirmou: “quarenta anos depois, voltamos à ditadura”. Por experiência pessoal, e não por pirotecnia intelectual, o morador introduz um aspecto central do drama: depois da evidência incontornável das marcas impostas aos corpos dos vitimados, segue-se o relato da experiência de viver sob estado de exceção, de suspensão de regras de previsibilidade e de proteção coletiva e individual.

Depois de vinte anos de vida democrática, o sistema de segurança e controle da ordem social parece ser irreformável. Os piores desenhos de política parecem encontrar abrigo perfeito na mão de psicopatas, tal como o infeliz que pretendia dar um “corretivo” e “apenas uma surra” nos “elementos”. Parece não haver alternativa imediata a não ser a resistência popular aos espasmos despóticos. As mães dos jovens do Morro da Providência parecem ter entendido isso, da maneira mais dolorosa possível. O martírio de seus filhos valeu como um terrível ato de elucidação. Stabat mater dolorosa...lacrimosa...