sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Limpeza Literária

Renato Lessa
(Publicada em minha coluna Sobrehumanos, na revista Ciência Hoje, dezembro de 2010)

Houve um tempo no qual o escritor Monteiro Lobato (1882-1948) foi fundamental para a constituição de nossa sensibilidade para com o país e o mundo. Ninguém como ele, na literatura brasileira, foi capaz de mobilizar a imaginação infanto-juvenil, e mesmo dos quase adultos, para temas tão variados. Se abstrairmos a obra adulta, dotada de grande mérito, a dedicada à juventude teve valor inestimável, pela associação singular entre exercício da imaginação e ânimo enciclopédico.
A dimensão pedagógica do empreendimento de Monteiro Lobato teve a marca inequívoca da variedade disciplinar. Livros inteiros dedicados a diferentes disciplinas: geografia, física, aritmética, gramática, astronomia. Os livros Viagem ao céu, História do mundo para as crianças, Emília no país da gramática, Aritmética da Emília, Geografia de D. Benta, História das invenções e O poço do Visconde configuravam uma deliciosa Paidéia infanto-juvenil, a um só tempo humanística, moderna e multidisciplinar. Os temas da mitologia grega, assim como a escuta das narrativas populares – ver, por exemplo, Histórias de Tia Nastácia – somavam-se ao quadro. Não há, hoje, à disposição do público infanto-juvenil, obra semelhante e com tal capacidade de sedução literária.
Dois livros infanto-juvenis de Monteiro Lobato exerceram particular impacto na imaginação dos muitos que os devoraram. Em A reforma da natureza e A chave do tamanho, foi tratado de forma sublime o tema da intervenção dos humanos no curso da história e da natureza. Ainda que, ao fim e ao cabo, a natureza apresente as razões para ser como é, no que diz respeito à história o livro A chave do tamanho, publicado em 1942, tem início quando Emília e seus companheiros de estória resolvem acabar com a guerra. Para tal, dirigem-se a um lugar no qual várias chaves controlam as dinâmicas do mundo. Ao tentar modificar a posição da chave da guerra, Emília move a chave do tamanho, transformando os humanos em seres liliputianos. O enredo é delicioso e sugere o quanto a experiência da história e da vida dos humanos é assaltada por nossa capacidade de intervenção e de alteração de circunstâncias.
Seria impossível, hoje, escrever os livros infanto-juvenis de Monteiro Lobato com a mesma linguagem e com o mesmo quadro de valores nos quais foram concebidos. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e muda-se a linguagem, assim como os limites do que é adequado dizer. A literatura, no entanto, é um patrimônio. Como tal, não pode ser refeita e corrigida ao sabor das inovações conceituais que lhe sobrevêm. Melhor é cuidar do patrimônio e desenvolver inteligência crítica e analítica para lidar com ele, tal como ele é.
Parece não ter sido essa a orientação do Conselho Federal de Educação. Por unanimidade, os conselheiros ‘condenaram’ um dos livros de Monteiro Lobato – Caçadas de Pedrinho, por conter expressões racistas externadas pela boneca Emília – e propuseram sua exclusão da lista de livros adotados pelo Ministério da Educação. Em boa hora o ministro da Educação, Fernando Haddad, vetou a estultice. Não seria melhor desenvolver entre os professores uma capacidade de interpretação crítica de passagens daquela natureza? Não seria isso, inclusive, uma ótima oportunidade para tratar com os alunos do tema do racismo?
É de imaginar o cenário tétrico, de limpeza literária, marcado pela transformação do parecer do Conselho em política pública. Quantas vítimas literárias teríamos? O que dizer dos índios tratados nos romances de José de Alencar (1829-1877) e das mulheres ‘vitimadas’ nas peças de Nelson Rodrigues (1912-1980)? É de lembrar, ainda, o processo ao qual foi submetido o livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880), na França do século 19, brilhantemente analisado em livro do historiador norte-americano Dominick La Capra (Madame Bovary on Trial, de 1982). Acusado de obscenidade, o livro foi a julgamento em 1857. Ao fim e ao cabo, tudo acabou bem: o livro foi absolvido naquele mesmo ano e conta-se que o acusador-mor – Ernest Pinard (1822-1909) – terminou seus dias a escrever literatura obscena.

domingo, 5 de dezembro de 2010

O Paradigma Globocop

Renato Lessa
(Publicado no suplemento ALIÁS, do jornal Estado de São Paulo, em 5/12/2010)

Os nervosos acontecimentos ocorridos na última semana de novembro, no antigo estado da Guanabara, foram acompanhados de um conselho dado pelas autoridades aos cidadãos: fiquem em suas casas, evitem as ruas. No recesso de seus lares, os cariocas evadidos do espaço público confinaram-se à persona de telespectadores. Coube ao Globocop, e a uma trupe de repórteres de campo hiper excitados, devidamente inoculados por cargas generosas de adrenalina, a definição dos termos da realidade.

Se Euclides da Cunha pode dizer, em Os Sertões, que o sertanejo é antes de tudo um forte, é possível hoje retificar a proposição e afirmar que o brasileiro é antes de tudo um telespectador. Com efeito, a televisão é a única concessão pública no país com cobertura universal. Vai, com muita folga, adiante dos esgotos, dos hospitais e das escolas. Não é, nesse sentido, exatamente alentador reconhecer que um dos marcadores prediletos de inclusão social, adotados pelos áulicos correntes, diz respeito à facilidade de crédito para compra de hiper-aparelhos de televisão.
Trata-se, mais do que isso, da universalização do acesso a uma forma de realidade, na qual se estabelecem agendas que configuram parte da alma dos brasileiros. Sentimentos, atitudes políticas, decisões a respeito da vida, exemplos, enfim, um grande conjunto de referências para a manufatura das identidades pessoais e compartilhadas tem a sua base informacional e normativa fixada pela universalização à qual aludi.

Durante os dias de invasão das comunidades no complexo do Alemão, os cariocas desfrutaram de cobertura ininterrupta. A nada encantadora alma das ruas só encontrou alguma inteligibilidade quando mediada pela sua tradução televisiva. Os componentes básicos dessa forma de apresentação reúnem uma estética da informação e a delimitação de um regime preciso e confinado para o exercício do pensamento e da reflexão.

A informação é configurada por uma estética de rapidez e de movimento incessante. Parte-se do suposto de que o consumidor de imagens, o cidadão-telespectador, é cognitivamente mobilizado mais por circunstâncias de ação, do que por oportunidades de reflexão. O brasileiro, nessa chave, é antes de tudo, um sujeito entediável e irreflexivo. Tal como os futuristas italianos, é um adepto incondicional da velocidade como, experiência e como valor. Rasantes de helicópteros são, nesse sentido, fundamentais e adequados a tal antropologia, assim como a exibição de repórteres, no terreno, com esgares nervosos e coletes à prova de balas, com cores e logotipos especiais. A estética do combate é trazida para dentro dos estúdios. Foi notável, por exemplo, a indumentária escolhida pelo porta voz da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que compareceu a entrevistas em estúdio, com seu colete à prova de balas.

Repórteres e entrevistadores hiper excitados entrevistaram jovens ex-policiais-combatentes, igualmente hiper-excitados. A exibição de imagens de ação incessante operava como suplemento hiper-cinético ao nervosismo das entrevistas. Um valor maior, portanto, se apresenta: o da adrenalina como virtude cognitiva e como gramática para o tratamento dos dramas da cidade.

Nos marcos da estética da rapidez, o pensamento foi convocado para apresentar suas interpretações a respeito do conflito. Com poucas exceções, ao cidadão-telespectador foi apresentada uma sucessão de especialistas, a repetir os lugares comuns, emanados das versões oficiais e televisivas dos eventos. O “especialista”, dessa forma, reforça o que estabelece o narrador originário. Dois marcadores conceituais invariavelmente apareceram nessa prática de reforço de significados: o da “guerra” e o do “terrorismo”.

O primeiro marcador – guerra - foi devidamente tratado por excelente e oportuno texto do jornalista João Paulo Charleaux, na edição do Estadão de 1º de dezembro: não há fundamento jurídico na utilização do conceito de guerra, sua carga simbólica, ademais, pode ser tomada como autorização para a matança. Com efeito, mais do que indicar a impropriedade jurídica da metáfora, importa dizer que ela define uma interação cujo objetivo é a eliminação dos inimigos. Ninguém vai á guerra para aprisionar o exército inimigo, mas para eliminá-lo. O inimigo preso é o inimigo que se rende e é protegido por convenções precisas. Trata-se, portanto, de um efeito colateral da guerra e não o seu evento central. O contrário se dá com a ação policial: visa prender e só mata em circunstâncias especiais.

O uso da imagem do terrorismo é igualmente problemática. No mínimo, é seletiva. Sob terror vivem extensas comunidades da Zona Oeste carioca, sob o domínio de milícias. A erradicação das mesmas é enormemente dificultada pela presença de policiais e de suas ramificações nos chamados “poderes constituídos”. Esse é, na verdade, o lado duro e podre de uma polícia que se apresentou de modo heróico e glamoroso na “guerra do Alemão”.

Mais do que metáforas, o que parece se fortalecer com o episódio é algo que poderia ser designado como um Paradigma Globocop. Um narrador onipotente, onisciente e onipresente, dotado da capacidade de tudo prescrutar e de uma rede de intérpretes fiéis e fidelizados. Seus efeitos, contudo, não cabem nos limites estreitos que uma crítica por vezes paranóica lhe impõe. O paradigma opera no vácuo e na ausência de instituições de controle social sobre os agentes do poder executivo, para não falar da rarefação do mundo da representação política. Sua onipresença abrange múltiplas funções, entre as quais a de um papel autoatribuído de ombudsman de fato dos cidadãos, movido sabe-se lá por que concepção de vida pública. Diante de sua ubiqüidade, os próprios gestores da segurança pública se vêem obrigados a se expressar e agir nos limites da lei. É evidente que isso é positivo, mas, não nos iludamos, a reforma da polícia é algo ainda muito remoto, a despeito da seriedade de alguns de seus operadores.