terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Uma cultura política de excesso

Renato Lessa
(Publicado originalmente no Suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo,em 11/12/2011)

A hipótese de urdidura conspiratória para explicar a erosão sofrida pela equipe de governo, em seu primeiro ano de vida, tem o sabor e a alma dos monomaníacos e ocultistas. O saudoso pensador anglo-russo Isaiah Berlin propôs uma distinção entre duas modalidades de percepção e de configuração imaginária do mundo e associou-as zoologicamente a ouriços e raposas. A taxonomia de Berlin distinguiu os ouriços como monotemáticos e portadores de uma que considera a complexidade e a confusão da vida como sinais aparentes e ilusórios, cujo entendimento exige a apreensão de causas fundamentais, sempre vinculadas à mãe de todas as causas, seja lá qual for.

Cá entre nós, é crível, para espíritos paranoicamente deflacionados, a suspeita de que o descarrego de sete ministros – sem considerar a visão da fila que se avizinha – dependa de alguma conjura ou causa única? Claro está que há quem torça pela desgraça do governo, e que veja em cada queda de ministro um sinal de que tudo está perdido e a confirmação de certezas íntimas. Outros há que torcem pelo simples infortúnio do indigitado da ocasião, por cobiça ou desejo de vingança pessoal. Há, ainda e por certo, caluniadores profissionais e oposicionistas desorientados sem qualquer coisa de substantivo a dizer ao país, aos quais vem bem a calhar a fatiota de questores da moralidade pública. Mas fazer de torcedores oportunistas e oposicionistas desenergizados algo como o motor imóvel de um processo cósmico de destruição do governo, além de homenagem indevida a tal conjunto heteróclito, é ato de má fé, quando não de estupidez.

Se considerarmos os vetores de corrosão como endógenos, talvez ganhemos em entendimento a respeito não da natureza deste governo, mas do modo de fazer governos e da cultura política que se impôs ao país como esteio de governabilidade democrática. Este governo ainda é uma incógnita: não sabemos ainda se poderá ser avaliado como ortodoxo, nos termos da cultura de governo predominante no país, ou se por ter semeado coisa distinta. Cedo para dizer, embora a tempo de apostar. A despeito disso, há dois macro desafios postos a este governo, inerentes tanto à forma de governar como à cultura política que a movimenta. No desenho desses macro desafios estão inscritos alguns fatores internos e potenciais de erosão.

Um dos desafios é representado pelo que especialistas definem como um esteio de governabilidade: a grande coalizão. A necessidade da composição ampla, quando transformada em virtude, incorpora como naturais dinâmicas abertamente perversas. A obtenção, por parte do Executivo, de meios para governar está associada a uma partilha que afeta a própria capacidade do governo de fazer uso eficaz de tais meios. Administrar a grande coalizão, se não é o principal item da agenda interna do governo, é algo que limita a capacidade de conduzir sua agenda externa, a que afeta as vidas dos cidadãos ordinários. Para usar metáfora contabilista, o custo dessa administração interna não é neutro para o conjunto do país, posto que restringe a capacidade do governo de exercer seu mandato específico.

Ainda nos limites desse primeiro desafio, deve ser dito com toda clareza possível que ele não é apenas de natureza política ou tática, ou algo que se circunscreva ao enxuga-gelo da “coordenação política”. O pouco hábito da análise politica em reconhecer a relevância de dimensões sociais e históricas vale como uma anistia sociológica aos operadores da grande coalizão. Tal animal político – a grande coalizão -, mais do que expressão de apetite e de esperteza partidária, releva de pesado lastro sociológico que – pace Paulo Mercadante, no já não mais lido A Consciência Conservadora no Brasil – vem impondo ao país a resiliência do atraso e do conservadorismo social e político predatório.

O segundo desafio diz respeito à fila de ministros expurgados ou indigitados. Ressalvada sempre a possibilidade de que, individualmente, este ou aquele não seja o caso, o cenário agregado convida à seguinte indagação: como operar em um ambiente político marcado pela presença de um virtual estado de natureza? Tal estado abrange, como é sabido, formas abertamente predatórias, arcaicas, patéticas e heterodoxas em termos penais. Mas não fiquemos por aí, posto que ele abrange, ainda, a sensação de ilimitação, a intoxicação com a ubiquidade, com a deliciosa e beatífica possibilidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, por parte de operadores políticos centrais. Falo da possibilidade de usufruir da ubiquidade de ser governo, ser cliente do governo, ser consultor de quem negocia com o governo, e por aí vamos. Tal concentração de papéis em um único operador cria e alimenta animais políticos que exigem o estado de natureza como seu oxigênio, ainda que a legalidade fique intacta. Ficou fora de moda falar em “cultura política”, mas não é isto um sinal de uma cultura de excesso?

Os fatores de erosão potencial, creio, são internos, embora os ruídos sejam externos. Descontado o rumor insincero e oportunista, é possível supor, quando pensamos nesses ruídos externos, a latência de um sujeito coletivo – tal como o processo civilizador, brilhantemente analisado por Norbert Elias –, constituído aos poucos, sem direção ou propósito claros, mas que aprende a manifestar desconforto com sinais dessa cultura de excesso. É cedo para dizer qualquer coisa de mais afirmativo a respeito, mas é algo que parece não caber na estreita moldura do moralismo e na paranoia de ouriços conspiratórios.

A marca específica do governo de Dilma Roussef, quando estiver clara, será afetada, para além da agenda social e de desenvolvimento, pelo modo de lidar com os desafios aqui aludidos.

domingo, 27 de novembro de 2011

Difícil oposição

Renato Lessa
(Publicado no dia 27 de novembro de 2011, no Suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo)

Não parece ser fácil, nos dias que correm, exercer oposição no Brasil. O ex-PFL morre à míngua e o PSDB ocupa-se, tempo integral, de suas fraturas internas. A não ser que aceitemos a proposição de que as dificuldades da oposição são o simétrico oposto das virtudes do governo, há algo a examinar. Áulicos empedernidos, por certo, sempre podem brandir tanto a certeza genérica de que a excelência do governo é mortal para a oposição, quanto a certeza específica de que é este o caso em questão. Afinal, um país em marcha batida para seu aperfeiçoamento infrene e para a consolidação de sua excelência política e institucional, no fundo, dispensaria a própria operação da oposição.

Se recusarmos o embarque nessa teodiceia política, cabe-nos considerar e/ou desconsiderar outras hipóteses. Desde já, a oposição não poderá contar, em seu arsenal de lamúrias, com a desculpa rota de que seu exercício sofre algum tipo de restrição ou impedimento. Grassa no país irrestrito direito de organização e expressão. Neste particular, o STF, em boa hora, garantiu o direito de expressão dos que defendem a legalização da maconha. Não imagino que tal prerrogativa – o direito de expressão - possa ser negada aos próceres da oposição se e quando tiverem algo a dizer ao país. A violência policial corre solta, mas incide sobre as vítimas habituais. Não dá para imaginar José Serra ou Tasso Jereissati presos e encapuçados após dizerem ao país qual é o programa alternativo do PSDB para a sociedade brasileira.

Não só desfruta a oposição de um ambiente de irrestrita liberdade de organização e de expressão, como conta com boa vontade de veículos de imprensa que, imagino, não se furtariam em vocalizar teses da oposição a respeito de como deve ser o país. Mais apropriado seria considerar que, se supomos que o exercício da oposição implica, entre outras coisas, tornar menos fácil a vida dos governos, a verdadeira e diuturna oposição no Brasil corrente se faz em casa, no próprio âmago do governo. As dificuldades da oposição formal poderiam, com maior plausibilidade, ser interpretadas como afetadas por uma espécie de concorrência desleal: exerce hoje oposição o grupo ou partido que, estando na base do governo, faz valer o usufruto de seu quinhão por meio de sua capacidade de chantagem e retaliação. Futuros dicionários de ciência política não fariam mal em considerar tal variante, em um possível verbete intitulado “oposição”.

Em 2010, o PSDB realizou façanha de razoável monta. Seu candidato à Presidência da República, José Serra - em disputa contra a então candidata Dilma Roussef, apoiada na figura pública de maior popularidade em toda a história republicana brasileira – amealhou 43% dos votos válidos no segundo turno. Venceu nas regiões Sul e Centro Oeste e no estado de São Paulo. O partido foi ainda vitorioso em oito governos estaduais, incluindo São Paulo e Minas Gerais. É de se perguntar o que o PSDB tem dito aos 44 milhões de eleitores que sufragaram José Serra. Que versão alternativa de país o partido tem apresentado, para além da esgrima da política diária e da opção pela lavagem ética como bandeira maior? Se é possível falar em estelionato eleitoral quando um governo eleito viola de forma explícita expectativas que suscitou no eleitorado, é mesmo o caso de admitir uma variante específica para o caso de oposições absenteístas.

O fato é que o PIB político do país anda raquítico em termos do que poderíamos designar como cultura de oposição. Ao se fazer governo, a partir de 2003, o PT deixou vago o posto antes ocupado por uma oposição a um só tempo política, social e com tinturas programáticas. Sua passagem para o exercício do governo implicou a desativação de operadores importantes e que sustentavam o vigor da oposição exercida. Movimentos sociais e vida associativa inscrevem-se hoje em uma lógica que é muito mais governamental e estatal do que ligada ao que em tempos antigos se denominava como “sociedade civil”. A cultura de oposição do PT desapareceu e deu passagem a uma cultura de governo, com todos os riscos e possibilidades que isso representa. Em outros termos, o PT perdeu a montante – ímpeto oposicionista – e ganhou a jusante – simplesmente, o governo.

Nascido de um rompante de oposição ao governo Sarney, o PSDB, de fins do consulado celerado eleito em 1989 até 2002, constituiu-se como um partido assentado em uma cultura de governo. Foi sucedido por um governo que se apoiou em várias das inovações básicas introduzidas pelo consulado tucano, a elas acrescentando tanto aperfeiçoamentos como aloprações. Em seu DNA, o componente oposicionista – capaz de associar peso político, base social e consistência de programa – é menos evidente do que o esforço de conceber reformas e mudança “de dentro” do sistema de poder. Na rua, fica um tanto à míngua - como Alckmin a tomar o pior cafezinho do planeta, no Bar Amarelinho no Rio de Janeiro, em 2002 (tive nesse dia a certeza de que iria perder) -, sobretudo quando não consegue distinguir-se programaticamente do que se lhe sucedeu. Em termos sucintos, o PSDB perdeu a montante – o governo – e parece ter nada ganho a jusante – capacidade de, como oposição, oferecer ao país um desenho alternativo. Do jeito que está, o PSDB corre o risco de reduzir-se a um partido estadualizado e, como tal, vulnerável às assimetrias do federalismo à brasileira – que faz dos governadores “parceiros” compulsórios da presidente - e incapaz de honrar os 44 milhões de votos nacionais amealhados em 2010.

A vida é dura para os que subsistem fora da grande coalizão que governa a República. Mas pode ser ainda pior para quem não consegue dizer a que vem.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Entrevista ao jornal Folha de São Paulo, 30/10/2011

'Quem faz a faxina é a lógica mafiosa', diz cientista político

UIRÁ MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A CAXAMBU (MG)

A queda do ex-ministro Orlando Silva (Esporte) não tem relevância individual, mas se torna importante por evidenciar um padrão de ocupação do espaço público que funciona dentro de uma lógica mafiosa, afirma o cientista político Renato Lessa, 57.

Para Lessa, professor de teoria política da Universidade Federal Fluminense, o governo de coalizão brasileiro favorece o exercício da política na base da chantagem, e as demissões de ministros não alteram em nada o cenário.

Até porque, diz ele, quem faz a "faxina" não é a presidente Dilma Rousseff, mas a "própria insustentabilidade dessa lógica mafiosa".

Lessa participou nesta semana do 35ë encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em Caxambu (MG), onde conversou com a Folha. Veja abaixo a entrevista.

Rafael Andrade/Folhapress

Cientista político Renato Lessa
Folha - Durante debate sobre análise de conjuntura na Anpocs, o sr. disse que faria uma provocação e afirmou que o Brasil não tem conjuntura. Por quê?

Renato Lessa - É que nós sempre associamos a ideia de conjuntura a um tempo de curto prazo, volátil e marcado pela precipitação dos acontecimentos. Um tempo animado, no qual muitas coisas acontecem, coisas inauditas, imprevisíveis, surpreendentes.

Pense na Primavera Árabe ou na troca de prisioneiros palestinos por um soldado israelense, por exemplo. São momentos que têm a capacidade de reconfigurar todo o campo político daquela sociedade. A isso chamei de conjuntura ativa, um acontecimento com capacidade de provocar mudanças.

Agora, é claro que o Brasil tem uma conjuntura - porque conjuntura é um pedaço de tempo -, mas não uma que obedeça a esses requisitos. Olhando para um retrato 3 x 4 da política, o que aparece é a reiteração de padrões de longo e médio prazo.

Daí por que falei em conjuntura passiva. Não há na política brasileira sinais de inovação.

Essa ausência de conjuntura está ligada a este governo em particular ou o cenário já está desenhado há mais tempo?

Pensando bem, é um cenário que já se apresenta há algum tempo. Ocorre que tivemos um presidente que fabricava conjunturas. Lula foi o animador da República. Muito mais que um presidente de coalizão, era um presidente de animação. Ele ocupava o epicentro da política e produzia seu próprio acontecer na vida pública.

E agora?

Com o estilo Dilma, houve certa rotinização do exercício da Presidência. Há a constatação de que o país passa por uma experiência de invisibilidade da política e presença de uma grande coalizão que não é movida pela contribuição substantiva dos quadros dos partidos, mas determinada pela necessidade de acomodar aliados que supostamente vão votar com o governo.

Mas um governo dessa natureza é vulnerável à chantagem o tempo todo. Há uma lógica da sabotagem. As entranhas do governo são exibidas a partir de fogo amigo, a partir de lógicas que, tecnicamente falando, são mafiosas.

Nesse sentido, a queda do ex-ministro [do Esporte] Orlando Silva é previsível dentro desse padrão de política. Não há nada a comentar especificamente quanto à queda desse ministro, porque ela não tem relevância individual. Tem relevância apenas na medida em que nos ensina a perceber a reiteração de um certo padrão de ocupação do espaço público brasileiro.

Que o senhor considera mafioso?

Sim. Mas é bom deixar claro: estou usando o termo ªmafiosoº em sentido técnico. Não estou acusando ninguém de ladrão, de dom Corleone. Estou me referindo a esse sistema de divisão de butim e de informação que vaza quando algum acordo prévio não foi cumprido.

O interessante é que parece operar no governo uma espécie de cordão sanitário, como se fosse claro o que é poroso à predação e o que não pode ser. A gestão do desenvolvimento social e a da economia, por exemplo. É como se houvesse dois círculos: aquilo que o governo precisa para governar e aquilo que precisa para compor a base de apoio. Há certa noção do que não deve ser vulnerável a essa cultura da coalizão.

Isso o sr. atribui ao perfil da presidente Dilma?

O estilo Dilma é "low profile", mas ela sabe exatamente como o governo se compõe. Por sua experiência, ela sabe como a salsicha é feita. Na medida em que as entranhas do governo são expostas, essa cozinha mal cheirosa é exposta, ela tem a atitude: "isso não vai dar certo". É como se, já na primeira denúncia, ela soubesse como vai acabar. E ela espera o fim da fita.

É uma maneira aparentemente alheia ao processo, ela não atua, não demite o ministro, não faz um escândalo midiático exibindo um rigorismo heroico, mas uma paciência na qual espera algumas semanas, num "timing" quase repetido e ao fim do qual acontece o inevitável.

Ou seja, a própria lógica das interações chantagistas é capaz de executar o serviço. A faxina não é a presidente quem faz. Quem faz a faxina da República é a própria insustentabilidade dessa lógica mafiosa.

A presidente espera a conclusão do processo e, quando acaba, ela segue o barco. O problema não é curado, ela apenas resolve o episódio. É uma posição curiosa: deixa que o corpo feneça, mas o ambiente da doença não é alvo prioritário.

Mas se não há novidade nessa demissão em particular, o fato de terem havido seis em tão pouco tempo de governo não constitui um fato novo, inaudito?

Sim, mas é uma novidade atenuada pela reposição. A margem de manobra para fazer dessa novidade uma verdadeira novidade é muito reduzida, porque não altera a cultura e o ambiente que produzem ministros vulneráveis a acusações tais que sua permanência se torna impossível.

As demissões não alteram o cenário. Não alteram o fato de que é um governo de ampla coalizão, com partidos divididos em amplas facções.

Mas esse não é um problema da coalizão em si, certo?

Não, é da natureza da versão que o presidencialismo de coalizão adotou a partir da redemocratização. Isso introduz um viés conservador na política que é quase invencível. A mecânica da coalizão exerce sobre a política o efeito conservador. O âmbito da inovação política é muito pequeno, porque é uma política que em grande medida tem que estar a serviço da manutenção da coalizão, uma coalizão que se repõe.

O principal objetivo da coalizão não é viabilizar governo com determinados programas, é permanecer enquanto coalizão, tem um interesse própria na autoconservação. É essa prioridade da autoconservação que produz esse efeito conservador na política.

O ponto que eu acho importante é que há uma operação da política o tempo todo na gestão dessa coalizão. Não é fácil manter uma coalizão dessa, e tanto que ela dá mostra de que, apesar de ter enorme maioria na base, não é confiável.

O governo, no fim, faz em grande medida um esforço de autogoverno, de governar a si mesmo.

Qual seria a saída?

Não sei nem sei se há saída, se depende de um truque genial de invenção institucional. Isso tem a ver também com dinâmicas sociais e culturais de longo prazo. Tem a ver com despolitização social grande, com persistência de partidos políticos que são agência de captura de sufrágio, e não instituições de socialização e politização...

A política sugere a imagem de uma coisa descolada, autárquica, mais autarquia e menos representação.

A oposição colabora para esse cenário?

É muito difícil fazer oposição a esse modelo político.

O PT fez ao FHC, e o modelo era o mesmo.

Mas fundamentalmente porque havia um partido político que ainda não era parte sistêmica da cultura da grande coalizão. Partido cuja energia oposicionista estava sustentada na crença de que era um partido da sociedade, que fazia um bom assalto democrático ao governo oligarquizado. Era um ator político que também era um ator social. Não existe mais isso.

Tirando esse fato que você bem lembrou, é um ambiente ruim, porque a grande coalizão é porosa, é como se ela fosse ilimitada. Não se põe o problema da coalizão mínima necessária para vencer. Ela é expansiva.

O exemplo é o PSD, que é um dreno na oposição. Sujeitos políticos entram num partido que não é nem de centro nem de esquerda nem de direita e deixam de ser a ponta visível de uma oposição conservadora de direita a um governo determinado.

Tem que haver uma oposição conservadora, temos que ter o espectro todo representado. O sistema da grande coalizão absorve e deixa pouco espaço para quem fica de fora.

E José Serra, que...

Esse é um caso curioso. Serra foi de certo modo vitorioso, porque tem uma expressão eleitoral com quase 40 milhões de votos. Isso não é pouca coisa, é um capital político extraordinário.

Mas o que a oposição faz com esse capital político? Como o interpreta? É como se fosse algo instantâneo que se esvai no momento seguinte à eleição.

Há uma oposição que não está à altura de seu próprio sucesso eleitoral. A oposição tem que ser capaz de formular objeções substantivas à política em curso no país.

É patético que a oposição se limite a ler um recorte de jornal no púlpito do Senado. O ator político precisa interpretar, sugerir, exercer inteligência sobre essas coisas.

Nesses dez primeiros meses de governo Dilma, o sr. identifica alguma agenda que lhe seja própria?

O que estou chamando de conjuntura passiva tem a ver com esse âmbito pequeno da política, mas não significa dizer que outras coisas não estejam ocorrendo fora desse retrato 3 x 4.

Há uma gestão da política macroeconômica, uma política voltada para a redução dos juros. Há uma orientação específica, uma concepção sobre como o país deve tocar sua própria vida econômica diante de uma crise internacional.

Aí há realmente escolhas importantes. Escolhas políticas, estratégicas. Aí sente-se que há um governo, uma direção, não é uma loucura, uma aventura.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Sob a sombra do imprescindível

Renato Lessa
(Versão ligeiramente modificada do artigo publicado no Suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 28/08/2011)

Mais do que eleger sua candidata, em fins de 2010, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva parece ter logrado reeleger uma forma de governar o Brasil. Claro está que tal entidade – a suposta “forma de governar o Brasil” - não se fez presente, de modo expresso e nominal, nas opções apresentadas pelas máquinas de votar. É de se supor, com boas razões para tal, que parte expressiva dos que votaram em Dilma Roussef foi composta por gente que se limitou a escolher Dilma Roussef, sem ilações metafísicas, por simples oposição à alternativa de seu derrotado opositor. Contudo, trata-se de um voto que, desde que formulado como intenção, abriga em seu núcleo duro sua marca de origem: a pretensão de uma transferência que, mais do que eleitoral, apresenta-se como doação de sentido e de identidade.
A constituição de Dilma Roussef como sujeito político, com as responsabilidades inerentes e correntes, releva de tal origem. Essa é, mesmo, sua marca indelével. Isso não estabelece, de certeza, qualquer fatalidade e tampouco condena a presidente ao fracasso ou a seu primo-irmão, o sucesso. Para o pior e para o melhor, o futuro permanece ignoto e, por maioria de razão, sujeito à disputa acérrima a respeito de como o configurar.
A despeito da ausência de determinismo férreo, corremos o risco de ingenuidade se desconhecemos a força potencial da marca de origem. Ela estabelece um campo de oportunidades, cujas implicações possuem ainda contornos imprecisos. Tal imprecisão decorre, em grande medida, do fato de que a transmissão Lula-Dilma, mais do que fenômeno eleitoral e de doação de sentido, incluiu uma expectativa quando à forma de governar. Enganamo-nos quando supomos que a forma de governar é algo afetado sobretudo pelas marcas pessoais do governante. Ainda que tal dimensão esteja distante da irrelevância, ela tem a sua produtividade afetada de modo significativo pelo ambiente que circunscreve sua presença no mundo. Fácil falar assim, mas difícil de entender a vida como ela é. Com freqüência tais marcas pessoais são parte do ambiente, e não algo que o antecipe como expressão genuína de uma personalidade intocada.
Seja como for, no caso da transmissão em questão, tal ambiente pode ser definido como uma forma de governar configurada pela crença – e pela prática que dele decorre - de que tamanho do governo é antes afetado pela extensão da coalizão de apoio do que pelas implicações de seu programa, apresentado aos telespectadores para fins de captura de sufrágio. Em outros termos, trata-se de uma forma constituída pela presença de uma grande e fragmentada coalizão de apoio – a “base aliada” – que, a despeito de eventuais orientações em contrário, é vulnerável aos hábitos predatórios e particularistas de parte expressiva da elite política brasileira. Não é surpreendente que no afã da captura de território, uma elite porosa a hábitos extrativos opere em permanente estado de natureza. É notável o quanto da exibição de escândalos correntes deriva de quebra da ética de silêncio. Por mais que atores externos se ocupem da observação do que se faz na vida pública, é inegável que a base de informações a respeito da predação depende, em não pouca medida, de quebra de códigos de honra de extração mafiosa.
Ainda que as implicações criminais dêem azo à indignação, são os critérios originais de configuração dessa forma de governar que operam como fundamento. Não estou a sugerir uma linha de implicação direta, mas apenas uma estrutura de oportunidades na qual a deriva heterodoxa em matéria penal é um dos desdobramentos possíveis. Não há surpresa, portanto, na exibição sucessiva de, digamos, escândalos, já que o campo no qual eles se inscrevem como possibilidade está aí posto, e há algum tempo. A novidade, se calhar, consiste na escala de implicações públicas: quedas de ministros e adoção explícita da chantagem como método de interação política.
Tal novidade não deve ser debitada a eventual agravamento dos hábitos predatórios, e nem ao aperfeiçoamento dos métodos de investigação. Otimistas cívicos sempre estão prontos a aderir a éticas de faxina, na suposição de que elas devém do clamor público e do fortalecimento da cultura cívica. Melhor seria considerar hipótese distinta, que indica algo que politólogos áulicos candidamente designam como “falha de coordenação”. Depurado o eufemismo, tal “falha” indica simplesmente a ausência de um operador capaz de extrair da forma de governo estabelecida o “rendimento” que ela apresentou nos mandatos presidenciais anteriores: aquiescência, disciplina e controle sobre as implicações políticas de espasmos predatórios.
Em outros termos, é necessário ler na lógica dos escândalos um sub-texto possível, a fixar uma pretensão de imprescindibilidade. Não significa isso dizer que os escândalos, e suas conseqüências na configuração do governo, sejam eventos preparados por quem sustenta a imprescindibilidade do ex-presidente, como grande operador da política brasileira. O que aqui está a ser dito, com dose menor de paranóia, é que a natureza dessa forma de governar, com suas implicações naturais, exige um operador com os atributos de associação do ex-presidente. Trata-se de um juízo, digamos, funcional. Tudo isso é, é evidente, conjectural, pois não há garantia antecipada de que tal operador possa ter a mesma eficácia em qualquer circunstância. Os que nisso apostam, podem perder feio, mas, com certeza, muito menos do que os telespectadores.
Às imposições da natureza, os humanos opõem os recursos da imaginação e da vontade de autonomia. Resta saber em que medida Dilma Roussef – a quem não falta coragem – aplicará tais atributos. Só sei que, mesmo que Lula seja seu candidato in pectore à sua sucessão, tal inclinação não terá efeitos apenas nos resultados de 2014, mas pesará como sombra a cada dia do restante de seu mandato. Nesse caso, a tal forma de governo terá esterilizado a pretensão de autonomia. A ver vamos.



domingo, 19 de junho de 2011

Governar com o inimigo

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, 19 de junho de 2011)

Em entrevista a um programa de televisão, nesta última semana, o governador do Ceará, prócer do Partido Socialista Brasileiro – componente da assim chamada “base aliada” do governo –, deu sua versão a respeito do princípio da gratidão na política. Segundo seu contributo doutrinário, a presidente Dilma Roussef deveria retribuir o apoio dado à sua eleição pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, lançando-o candidato à sua sucessão, no ainda longínquo ano de 2014. O estímulo à gratidão alheia, para os pessimistas, pode ser considerado um traço não incomum da natureza humana. Não será, com efeito, difícil encontrar em François La Rochefoucauld ou em Jean de La Fontaine, moralistas do saudoso século XVII, suporte para tal sentimento.

Há, contudo, além de desencanto antropológico, sinais de patologia política na coisa. Um aliado contribui para a reativação de uma das suspeitas lançadas durante o processo eleitoral, a de que se preparava, na altura, um interregno. Suspeitar é humano, mas se plano havia, há que se suspeitar também de parvoíce, pois haveria que combinar as coisas com os eleitores, com quatro anos de antecedência, e apostar na possibilidade de um cenário no mínimo curioso: Dilma Roussef deveria fazer um governo à la Quincas Borba: a vida não sendo tão boa, não é de todo má. Segundo a prescrição emanada do Cosme Velho, seu governo não deveria ser nem muito bom e nem uma ruína, capaz de macular as chances futuras do seu patrono.
De qualquer forma, antecipar a sucessão parece ser coisa de inimigos. Tem-se aí um indício de que algo está fora de lugar. O gesto do governador pode ser tomado como um estímulo para refletir a respeito da distinção entre amigos e inimigos. De modo menos abstrato, pode-se por a coisa nos seguintes termos: o que é e faz a oposição, e quem a exerce?
A seguir o manual do bom senso, a oposição é uma prerrogativa dos derrotados em 2010. Derrotados curiosos, pois, apesar da imensa popularidade do principal apoiante da candidata vitoriosa, foram capazes de amealhar suculentas dezenas de milhões de votos, com vitórias em pontos importantes do país. Passado o pleito, a oposição oficial nunca esteve à altura de sua façanha. Ganhou notoriedade com a exibição de suas querelas internas, foi assaltada pela razia imposta pelo prefeito de São Paulo e desapareceu. Não estivessem vigentes os institutos constitucionais de 1988, dir-se-ia que os tipos foram para a clandestinidade. Fica à espreita dos deslizes comportamentais dos vitoriosos que, por não serem infreqüentes, dão-lhe algum oxigênio. Ignora-se o que pensa a respeito do país e o que tem a dizer à multidão de seus eleitores.
É da natureza dos sistemas políticos com alguma dose de competição a existência oposições. Sabemos que as há mesmo em sistemas de baixa – ou nula – competitividade. Que dirá do nosso, cuja competitividade é sempre decantada por numerologia ufanista?
A oposição real pode ser encontrada onde era suposto que ela não estivesse. A “base aliada” é um celeiro de descontentes e, o que é mais grave, ambiente assolado pelo princípio da chantagem. A base do modelo político em curso sustenta-se na necessidade da grande coalizão parlamentar e partidária de apoio ao (ou, agora, à) presidente. Por maior que seja a magnitude da vitória eleitoral presidencial, a diversidade brasileira, acolhida pelos fundamentos do sistema eleitoral (nada de errado com isso, em princípio) torna pouco provável a eleição concomitante de maioria parlamentar comparável. Aqui, como alhures, a inevitabilidade das coalizões se faz presente, como condição de - com perdão antecipado pelo uso do termo – “governabilidade”. Até aqui, nada de patológico ou de preâmbulo para danação eterna.
Há diversas ordens de problemas, presentes no arranjo implantado no país após a redemocratização da década de 1980; um arranjo emergencial, cuja “teoria” ou “doutrina” lhe foi posterior na ordem do tempo. Há ali um dilema que lhe é inerente, a consistir no fato de que “governabilidade”, tal como a idéia é veiculada, está associada à formação de maiorias parlamentares disciplinadas, sem considerar o dano infringido pelo processo ao programa substantivo de governo, tal como sufragado pela maioria dos eleitores. Há, pois, uma tensão entre a busca de docilidade parlamentar e a capacidade de execução do governo. Governar cada vez mais se converte em exercer “coordenação política” sobre uma base ampla e de baixa confiabilidade.
O dilema aprofunda-se no governo atual. A principal força de oposição potencial e real está instalada na “base aliada”. Com um agravante: seu líder incontestável ocupa posição indemissível, posto que no exercício da Vice-Presidência da República. A quebra da coalizão, mais do que risco político, o que é da vida, pode configurar problemas mais graves de natureza institucional. O camarada Lenin, certa altura e com brilho, designou a confusão como “dualidade de poder”. Ele gostava da coisa, mas, cá entre nós, trata-se algo que sempre acaba mal.
Como se bem diz em Portugal, o sarilho está posto. Para isto é que se elegem governos? Para que despendam a maior parte de seu tempo e energias a tentar governar a si mesmos? Para fazer da “coordenação política” sua principal atribuição? Há que pensar nos limites dessa forma de governar, segundo a qual a busca de apoio para executar um programa exige a sua descaracterização. O “presidencialismo de coalizão” é a forma institucional do arcaísmo, instalado no processo político de condução do país. Como é possível que um dos personagens mais sinistros da história republicana tenha papel relevante na definição da política de sigilo de documentos? Enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal educa a República e dá lições a respeito da importância da liberdade pessoal (essa frase é séria). Assim não dá.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Entrevista ao jornal Valor Econômico (13/6/2011)

“É Dilma quem tem que assumir a coordenação política", diz Lessa
Heloisa Magalhães/Valor Econômico | Do Rio
13/06/2011

Uma coalizão formada por tantos diferentes partidos e ideologias, um PT fragmentado e um PMDB poderoso, com o vice-presidente Michel Temer fazendo do Palácio do Jaburu um centro alternativo de poder ao Alvorada são ingredientes que exigem da presidente Dilma Rousseff uma capacidade de articulação política que seu governo não tem demonstrado, independentemente da saída do Antonio Palocci, da Casa Civil. Para o cientista político, Renato Lessa, professor da Universidade Federal Fluminense, a presidente "tem que chamar para si a coordenação política".
Na entrevista abaixo, Lessa faz uma análise do momento político nacional e avalia que o país está "numa situação de muito risco". Ressalta que o risco não é de quebra institucional - "o governo Dilma não está em perigo". Para ele o que está em risco é agenda que a presidente anunciou para o país que está comprometida porque "coalizão não é só apoio parlamentar é co-participação no governo".
Veja abaixo parte da conversa do cientista político com o Valor.
Valor: O modelo de coalizões no Congresso não está se mostrando inviável?
Renato Lessa: Esse é o modo de governar que se consagrou no Brasil há quase 30 anos, desde a Nova República. Foi ensaiado na gestão de [José] Sarney, que foi um governo de grande coalização pois todos estavam com o governo, com exceção do PT. E, também, foi desenvolvido nos oito anos de Fernando Henrique [Cardoso]. Os componentes são que o presidente eleito pelo voto popular e o Congresso fragmentado não têm maioria, então a saída é fazer coalizão. Na época do Fernando Henrique, bastava o PSDB votar com o PFL e, como no PMDB tem sempre quem esteja a serviço de quem está no governo, a coalizão estava formada. A administração dessa coalizão não chegou a ser problemática. A lógica do modelo já estava presente. Qual é ela? A lógica da chantagem. Mesmo que Fernando Henrique pretendesse fazer reformas constitucionais, não bastava ter 50% de apoio. Ele tinha de quer ter dois terços. Tudo isso tem um componente sociológico brasileiro que é o arcaísmo de regiões do Brasil na quais a dominação política se dá de acordo por padrões muito antigos, padrões coronelistas, padrões de dominação eleitoral, e essa gente que cobra seu apoio na montagem das grandes coalizões.
"Ou Dilma enfrenta com uma maneira própria de governar ou sucumbe e governo vira interregno"
Valor: A crise do modelo de coalizão está na origem da denúncia do mensalão no governo Lula?
Lessa: No governo Lula a coisa agravou porque pulverizou. O número de partidos participantes da coalizão aumentou e o leque ideológico esticou de uma maneira impressionante, após unir o centro e centro direita. Mas o governo Lula teve muito a ver com a crença de que o personagem tinha - e tem - capacidade de conciliar o inconciliável. Ao mesmo tempo que tinha num Ministério da Agricultura um Reinhold Stephanes e um Roberto Rodrigues - aliás um excelente quadro, mas um homem vinculado ao segmento agrário - havia uma esquerda radical forte, ativa, na área da reforma agrária. Foi já um governo de coalizão, com distância ideológica dos extremos e pela quantidade de parceiros que tiveram que ser incorporados. Claro que tinha que dar no mensalão, era um corolário de uma coalizão toda ela formada com expectativa de motim.
Valor: Dilma foi incapaz de reproduzir o modelo?
Lessa: Dilma herda os mesmos problemas com algumas novidades. O papel central que o PMBD assume com a Vice-Presidência, o que muda a correlação de forças. O Lula tinha como vice José Alencar, Dilma tem [Michel] Temer que é presidente do PMDB. Ele é como o dono do partido, controla o partido e conversa com todos os segmentos desde Jarbas Vasconcelos e outros como Eduardo Cunha. A outra novidade é que o PMDB está dentro de casa e há a ausência do negociador.
Valor: Lula era o seu próprio negociador do seu governo...
Lessa: Era o coordenador político do governo e tinha um ou outro que afinavam. E agora está complicado, o atributo de costurar acordos é prerrogativa do presidente, o coordenador faz a movimentação mas a direção é dada por ele. Lula e Fernando Henrique entenderam e jogaram bem o jogo. Dilma ainda é uma incógnita. Ela tem que sair para esse jogo e chamar para si a coordenação política. Tem legitimidade para isso com maioria expressiva de votos e três anos e meio de governo. Ela não está politicamente sequelada e tem recursos de recuperação, mas tem dificuldades imensas. Uma delas é contar com uma coalizão tão ampla.
Valor: Como o senhor avalia a escolha da ministra Ideli para a coordenação politica?
Lessa: Primeiro, acho que era um bom momento de acabar com os dois ministérios que não fariam falta. A função de negociador é da presidente. Escolher a ministra Ideli não é animador. O governo ganha em agressividade mas perde em capacidade de negociação. É como diz o treinador de futebol. Ganha em agressividade mas perde em pegada.
Valor: Essa coalizão é administrável?
Lessa: Tem o fogo amigo, o PMDB, de questionável lealdade, e o PT inteiramente fragmentado, inteiramente enlouquecido. Se o governo carece de coordenação política, o PT carece 20 vezes mais de coordenação interna.
Valor: O senhor acha que o desgaste como o que a presidente Dilma passou já foi controlado?
Lessa: A presidente está à frente de um dilema: ou ela enfrenta com uma maneira própria de governar ou ela sucumbe e governo fica com cara de interregno e a profecia se autocumpre. Cria-se um clima no qual todo mundo vai olhar para o governo pensando no próximo governo Lula e isso é fatal.
Valor: A presença de Lula em cena não é negativa para imagem da presidente?
Lessa: A pergunta é se isso é desejável. Lula é um fato. É um fenômeno. Não se pode fazer de conta que Lula não existe. Ele não pode ser visto apenas como sombra. Não vejo problema que ele apareça como fator político relevante. O que não pode acontecer é ele se tornar sombra, se tornar indispensável. O risco é ele se transformar em um operador político regular, um macro coordenador político do governo. O principal problema é costurar essa coalizão que é explosiva, alguém tem que ser capaz de fazer essa costura. Para haver previsibilidade e segurança para governar. O que está ficando claro é que os operadores do PT disponíveis no mercado não têm capacidade para cumprir essa tarefa. Inclusive, qualquer alternativa que surge em algum segmento do PT é bombardeada, imediatamente enfraquecida por outro segmento.
Valor: O PT paulista perdeu o posto de uma vez por todas?
Lessa: E isso é incompreensível para um partido supostamente nacional, que tem um projeto poder nacional com uma agenda para o país inteiro. Como um ala do partido pode criar problemas dessa natureza?
Valor: A reforma política consertaria os problemas da coalizão?
Lessa: Precisa ver o que queremos dizer quando se fala em reforma política. Sou cético porque a reforma não atuaria nos partidos e operadores políticos. Mas acho que não há erro ter que fazer governo de coalizão. Portugal está fazendo coalizão de direta com a centro-direita, o que não espanta ninguém. Os ingleses são coligados. Israel desde 1948 tem governos de coalizão. A esquerda dominava até os anos 80 mas tinha apoio da direita senão não conseguia fazer maioria. Isso é da vida. Os únicos países que conseguem controlar isso são os que usam voto majoritário. Aí cria outro problema que é ausência de representação. Limita a vida partidária a dois atores, como nos Estados Unidos, aí fica uma taxa de alienação política enorme, as pessoas não se reconhecem no sistema partidário. É cobertor curto.
Valor: A amplitude da coalizão brasileira é tão comum assim?
Lessa: A nossa política de coalizão é um modelo para o desenvolvimento de relação de chantagem. Temos que falar coisas como o baixo espírito público da classe política brasileira, baixa qualidade de reflexão, acho que há um déficit cognitivo da interpretação das coisas, as pessoas pensam com o estômago, com o apetite. E os próprios intelectuais, que de um modo geral são governistas, perdem capacidade de crítica e respeito pelo rumo que a democracia brasileira está tomando. Os partidos não são lugares de reflexão, de mobilização do apetite, da chantagem, não estão politizando a sociedade.
Valor: O governo Dilma está em risco?
Lessa: O governo Dilma não está em perigo. O que está em risco é a agenda que ela anunciou para o país. A agenda está comprometida porque a coalizão não é só apoio parlamentar é coparticipação no governo. A coparticipação no governo de inimigos, adversários chantagistas claro que impacta a agenda da mudança social, implícita na proposta da presidente. Afinal de contas é uma mulher de esquerda, apesar disso ter mudado muito ultimamente, é uma agenda escrita com a mão esquerda. Com esse ministério não dá, com Garibaldi Alves [ministro da Previdência] não dá, com Michel Temer não dá. Não basta apenas um arranjo numérico para ter maioria parlamentar, a agenda dela vai sofrer uma erosão. Por que o vice-presidente da República não dá a conhecer ao país o que ele pensa? Ele é um operador sombrio. Esse é o problema. O maior aliado da presidente é o seu principal problema. É uma mácula que está na coalizão e agora chegou ao paroxismo, ao limite de radicalização, está evidente a lógica da chantagem.
Valor: Há exemplos internacionais de maior sucesso na transparência das autoridades?
Lessa: Fazer lei de transparência não adianta. Adianta sim ter opinião pública atenta, órgãos independentes, organização da sociedade civil. O custo de fazer coisas indevidas está aumentando. Vão parar de fazer isso quando ficar claro que não dá para fazer qualquer coisa e ficar impune. O país é a oitava economia do mundo e grande parte da elite política está associada a Estados que têm os piores indicadores sociais do planeta. Os de Alagoas e Maranhão e Roraima são inexplicáveis. A República não é governável sem Renan Calheiros, José Sarney e Romero Jucá. E, por outro lado, o país é moderníssimo, respeitado internacionalmente com economia pujante. Alguma coisa não está batendo.
Valor: Mais uma vez a ética de representantes do PT é abalada. O capital eleitoral do partido nunca será minado?
Lessa: O partido está desgastado mesmo. A pior coisa que poderia acontecer ao PT é estar no poder há tanto tempo. Era bom para o país ter um partido como o PT na oposição. Agora, a oposição fica dependendo das falhas éticas eventuais para agir como se fosse o ombudsman do país. O governismo tomou lugar do petismo. O PT, em um certo sentido, dissolveu-se na grande coalizão. Contribuiu para a complexidade da coalizão.
Valor: E qual a saída?
Lessa: Acho que o quadro é muito difícil e complexo. A alternativa é assumir um risco de governo de minoria, não ceder à chantagem. Pode governar sem legislar, governar administrativamente. Governo se torna importante para aprovar o Orçamento. Diante de chantagens, a presidente deveria pagar para ver.
Valor: Mas o vice-presidente representa um partido que tem interesses muito fortes...
Lessa: Colocar um vice-presidente do PMDB tem um custo muito grande. O José Alencar foi uma boa escolha. Tinha uma relação pessoal excelente com o Lula e pouca representação política. Temer é um chefe de partido ativo, um operador da política, um centro alternativo do poder. O Palácio do Jaburu é um centro alternativo de poder do Alvorada

sábado, 4 de junho de 2011

Jabuticaba institucional

Renato Lessa
(Versão ligeiramente modificada de artigo publicado no suplemento Aliás, do Estado de São Paulo, 5/6/2011).

Há vários experimentos em curso no planeta, nos quais o exercício do governo sustenta-se em amplas coalizões partidárias e parlamentares. A natureza crescentemente fragmentada das sociedades e seus efeitos sobre as escolhas eleitorais assim o determinam. Tomemos o caso de Israel: desde a sua fundação, em 1948, os governos naquele país, para obter o apoio do número mágico de, ao menos, 61 deputados fiéis, em um parlamento composto por 120 membros, sustentam-se em heteróclitas composições partidárias.
A Itália, depois de haver destruído seus sistemas eleitoral e partidário do pós-guerra, a partir da década de 1980 vê-se às voltas com o embate entre duas grandes coalizões: os berlusconianos da Casa da Itália e a vasta constelação abrigada no Partido Democrático, tataraneto do velho PCI. Qualquer uma dessas alternativas implicará a prática de governos de coalizão. Até mesmo o Reino Unido, orgulhoso de seu sistema eleitoral majoritário – supostamente capaz de garantir maiorias “puras” e monopartidáias – sucumbe a um governo de coalizão, com a associação entre os conservadores de David Cameron e os “Lib-Dem” de Nicholas Clegg. E por aí a coisa vai.
Exemplos abundam, mas para nenhum deles cunhou-se um conceito, para fixá-los como espécie distinta na constelação dos sistemas políticos. Imaginem só alguém a descrever o aziago governo de Benjamin Netanyahu, com ares de elucidação, como “parlamentarismo de coalizão”. Uma reposta polida a tal gesto de iluminação poderia ser simplesmente: “Sim, e daí?”.
Entre nós, o léxico político dispõe da expressão “presidencialismo de coalizão” (PC), um tanto ubíqua na imprensa e na análise acadêmica conservadora. Mais do que descritiva, ela exerce um efeito de apaziguamento sobre os espíritos. É como se uma voz a acompanhasse, toda vez em que é formulada, a dizer: “meus filhos, é assim que as coisas são”. Nada, enfim, como a força de um nome inercialmente estabelecido para deflacionar o espanto, a indignação e a crítica.
Além do efeito normalizador exercido pelo seu nome próprio, o experimento PC, por singularmente brasileiro, teria, assim, algo em comum com as jabuticabas. Há evidente exagero ufanista na apreciação da singularidade, resultado de aplicação de velho truque nominalista: cunhar um nome singular para um experimento trivial – por exemplo, governos de coalizão – e produzir a crença de que tal experimento, pela aplicação do conceito, resulta em algo único e original.
Coalizões há por toda parte, o que não impede que particularidades locais sejam detectadas. O risco do exagero na afirmação da singularidade reside em uma espécie de patriotismo institucionalista, sustentado na crença de que os laboratórios nacionais desenvolveram drogas inovadoras para lidar com os dilemas da assim chamada “governabilidade”. A falta de boa sociologia política não ajuda em nada a pensar o quanto dessa droga releva do ambiente que ela pretende debelar.
Instalado no consulado tucano, precedido do ensaio do governo Sarney, o experimento PC, à partida, apresentava uma fisionomia bifronte: por um lado tratava-se de um modo de governar no qual, dada a inexistência de base parlamentar suficiente, o presidente eleito é levado a compor vasta e heterogênea coalizão para fazer valer seus projetos de governo, com as devidas erosões e adições aí implicadas; por outro, e de modo mais velado, o experimento PC repôs um velho mote da tradição política nacional: o de que a modernização, qualquer que seja o seu desenho, exige a composição como o “atraso”. O experimento PC combina, portanto, pragmatismo político com maldição sociológica. A fusão desses dois horizontes consagra a presença do arcaísmo como condição social e política perene. A exigência de “governabilidade” faz do comportamento predatório um sintoma de racionalidade.
O experimento PC, sob Lula, expandiu os padrões usuais, pela extensão e maior heterogeneidade da coalizão. Diante da variedade do que se convencionou chamar, não sem certo humor, de “base aliada”, os talentos e atributos do Presidente apareceram como recursos inestimáveis. O experimento deve, nesse sentido, muito ao personagem e à sua habilidade na negociação e na composição de posições inconciliáveis.
A passagem para o governo de Dilma Roussef torna mais aguda uma dimensão já presente no experimento PC. Trata-se de um arranjo – para além do pragmatismo e da sociologia – fundado em lógicas de chantagem. A habilidade na chantagem converteu-se, também, em marcador de racionalidade política. Presente em “etapas” anteriores do experimento, a força de tal componente nos dias que correm sugere nova definição: o experimento PC é um modo de governar segundo o qual uma oposição potencial - e por vezes real e desleal - faz parte da base do governo. Há, portanto, algum absurdo na coisa. A parceria com o partido do Dr. Temer - além da presença de hooligans políticos na base aliada – é hospedeira do risco de instabilidade política, a despeito de ter sido “construída” com finalidade oposta. Mesmo sendo artificiais, como nos ensinou o bom Hobbes, os animais políticos não podem contradizer suas naturezas. O experimento PC exige operadores diuturna e absolutamente fiéis a suas naturezas, o que exige esforços extraordinários de coordenação.
Para lidar com isso, o ex-presidente Lula parece assumir a macro-coordenação política do governo. A presidente, em apresentação vigorosa da expansão do Bolsa Família, reforça seu papel de macro-coordenadora da gestão do governo. Resta ver o que resultará dessa diversificação não usual de papéis, se complementaridade ou ainda maior confusão. É de se supor que as soluções produzidas no âmbito da macro-coordenação política tenham implicações sobre a estrutura da gestão. Ficará mais difícil saber quem governa quem.
De qualquer modo, o primeiro gesto do macro-coordenador político foi o da sutura do atrito com o PMBD, o principal ator do experimento PC. O PT, dirigido por operadores atônitos e com déficit reflexivo notório, arrisca-se à coadjuvância. Jamais sairá do governo, o que reduz seu capital de chantagem. As hostes do Dr. Temer estão muito mais à vontade nesse jogo.

A difícil oposição

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás, do Estado de São Paulo, em 1/5/2011)

Um dos grandes presidentes da Casa dos Representantes (House of Representatives) - a Câmara de Deputados dos EUA -, o lendário Tip O’Neill, a certa altura disse que “toda política é local”. Por mais que possa mobilizar temas e interesses de ordem mais geral, a dinâmica da política releva do localismo e do imediato. O’Neill, típico New Dealer Democrat de ótima cepa, passou 50 de seus 82 anos de vida como parlamentar, 34 dos quais em Washington, tendo presidido a Casa por dez anos, de 1977 a 1987. Insistia no caráter local da política, não tanto por paroquialismo, mas pela defesa de uma concepção de representação que vinculava os representantes aos representados.
Há outro sentido possível para a expressão. Da mesma forma que os temas da, digamos, grande política vinculam-se a cenários locais, estes, por alguma operação metonímica, podem dar passagem ao vislumbre do geral. Supor que localismo é apenas localismo significa opção deflacionada para o uso de nossas – já precárias por constituição própria – capacidades cognitivas. O localismo pode ser pensado, sem prejuízo da atenção a fenômenos particulares, como ponto de observação do cenário mais amplo da política e seu espaço de decantação.
Supor, por exemplo, que o drama dos tucanos em São Paulo tem como fundo divergências entre vereadores do partido e o governador do estado é levar a hipótese do localismo às raias do paroxismo. Mais do que isso, significa supor que o PSDB, que, a despeito da pretensão de reconfigurar o país, sempre foi caracterizado como de extração paulista, padece da maldição de encerrar os seus trabalhos por força de uma crise paulista.
Dissolve-se hoje, a olhos vistos, o PSDB, assim como o agonizante DEM, herdeiro do finado PFL. Há quem culpe o prefeito de São Paulo, pelo gesto oportunista de “fundar” um partido novo. Não tenho mandato e nem ânimo para defendê-lo, mas mais espantosa do que a esperta iniciativa é a magnitude do estrago da aventura sobre legendas partidárias ditas “consolidadas”. O quadro, digamos, doutrinário do partido do Dr. Kassab, como sabido, é indigente, mesmo para padrões nacionais. Trata-se de legenda que se apresenta como não sendo nem de esquerda, nem de direita e nem de centro. O corolário tático da estimulante renovação nos programas partidários é a disposição para apoiar o governo federal, os governos estaduais e, é claro, os governos municipais.
É uma tentação destacar o lado ubuesco da iniciativa, mas esse reembaralhamento oportunista não diz ele algo a respeito da vida partidária brasileira em geral?
O veterano O’Neill preocupava-se com o nexo entre representantes e representados. Padecia, portanto, de uma concepção de política que, ainda que asssentada no mundo parlamentar, supunha que a vertebração dos partidos tem a ver com o que fazem fora do âmbito legislativo. Concepção fora de moda, a crer nos analistas e estudiosos brasileiros que dizem que o que importa é saber como os parlamentares votam em plenário, no exercício de seus mandatos. Ainda segundo essa concepção autárquica do mandato e da representação, aprendemos que os partidos brasileiros são altamente disciplinados em seu comportamento parlamentar. Nada de errado com eles: os governistas tendem sempre a votar com o governo e os oposicionistas com a oposição. O bom Aristóteles sabia o que estava a dizer quando afirmava que juízos tautológicos são sempre verdadeiros.
As dificuldades da oposição são enormes. Há quem as atribua às excelências do governo Lula, o que teria reduzido as margens de crítica. Tese não raro vociferada por áulicos obsecados pela ostensão de índices de desempenho. Alguns desses índices são mesmo notáveis, o que, é evidente, estabelece limites ao discurso responsável e torna um tanto ridículo o catastrofismo. Mas, como desconheço governo infalível, sempre há margem para oposição, se esta – é evidente – tem algo a dizer; se oferece ao país uma alternativa fiável e distinta. É inacreditável que um partido capaz de conquistar cerca de 40% dos votos nacionais em 2010, contra uma candidata apoiada por um governo de altíssima popularidade, tenha perdido o mapa de acesso a tal patrimônio. Perceber essa conquista como derrota é sinal inequívoco de pouco apego ao pensamento.
As artes do “presidencialismo de coalizão”, por outro lado, ultrapassam seus efeitos imediatos de garantir “base aliada” numerosa e segura. Sua extensão esteriliza a política, porque sustentada na convicção de que a saúde da democracia depende da disposição dos parlamentares em apoiar o governo. Não vai daqui a defesa kamikase da superioridade dos governos de minoria. Mas reduzir a representação nacional a fundamento de – desculpem – “governabilidade” é, como dizia Zé Trindade, de amargar. A vida fora desse grande nexo é inóspita, sobretudo para nostálgicos.
E é de nostalgia que se trata, quando emergem sonhos de fusão entre PSDB e DEM. A oficialização da atração preferencial pela direita, por parte dos próceres tucanos, vale como desistência expressa do projeto de seus fundadores. A indigência intelectual e o oportunismo privam o país de um requisito fundamental para a democracia, uma oposição capaz de articular um ponto de vista alternativo. Por bons que sejam os governos, há sempre alternativa melhor. Falta ao país quem, a sério, diga isso.

A visibilidade do abjeto

Renato Lessa
(Publicado em minha coluna Sobrehumanos, na Revista Ciência Hoje, em maio de 2011)

Um dos dilemas mais fortes liberalismo diz respeito a como lidar com a intolerância e com seu adepto, o intolerante. O tema da tolerância é antigo e impôs-se no debate moderno com guerras de religião, que assolaram a Europa a partir do século XVI. Guerras cujo fundamento consistia na associação entre religião e razão de Estado e cujo efeito, de modo invariável, implicava a eliminação – física e/ou cultural - de minorias religiosas, consideradas como de lealdade duvidosa ao Estado ao qual petenciam. O clima dessas guerras foi admiravelmente reconstituído por Heinrich Mann no livro A Juventude de Henrique IV (1938), uma das bases para o filme de Patrice Chéreou, A Rainha Margot (1994). O livro e, com foco maior, o filme reencenam o clima do massacre de São Bartolomeu, ocorrido em Paris a 24/8/1572, que deu a partida para a eliminação física de 100.000 huguenotes, por parte dos governantes católicos na França.
A vasta reação à intolerência religiosa pode ser encontrada em obras de diversos pensadores, a partir do próprio século XVI: Michel de Montaigne, Jean Bodin, ambos naquele século, e Pierre Bayle e John Locke, no século seguinte, entre vários autores. Bayle não só defendeu a tolerância, como afirmou a possibilidade de que ateus sejam pessoas virtuosas, sendo a religião apenas algo de natureza privada e íntima. John Locke, em sua célebre Carta sobre a Tolerância (1689), combateu o princípio da coação externa em matéria religiosa e propugnou por uma idéia de poder público garantidor da liberdade individual. O tema se fez, ainda, presente no século seguinte, tal como pode ser percebido nas obras de David Hume e Voltaire.
Mas a questão da tolerância não diz respeito exclusivo a questões de natureza religiosa. O filósofo inglês John Stuart Mill, no século XIX, em seu clássico Sobre a Liberdade, afirmou que uma sociedade decente, para além de obedecer a regra da maioria em suas decisões políticas fundamentais, caracteriza-se pela proteção legal das minorias. Maiorias e minorias são conjuntos políticos erráticos, cuja flutuação não pode afetar liberdades individuais essenciais e permanentes: pensar, escrever, falar, crer e aderir a valores. Os que aderem a tal concepção de tolerância perguntam-se com frequência: como tolerar o intolerante?
A resposta não é simples. A opção por não tolerá-lo implica, ao final, a vitória do intolerante que, independentemente do que defende, milita contra a sustentabilidade da própria tolerância. Tolerá-lo, por outro lado significa reconhecer a legitimidade de quem ataca os princípios básicos da tolerância.
Há pouco lidamos com esse dilema, em termos práticos, diante da manifestação, em entrevista televisiva, de posições abjetas e intolerantes por parte de um obscuro parlamentar brasileiro, notabilizado pela defesa da tortura e dos assassinatos perpetrados pelo regime de 1964. Na entrevista, posições racistas e homofóbicas foram apresentadas de modo aberto, mas sem qualquer surpresa. Há, é evidente, uma dimensão penal nisso tudo, mas tal ângulo não parece ser o único a ser considerado.
O ângulo punitivo e penal visa calar o deputado e fazê-lo responsável perante a lei. Mas o mais grave não é o que fez, mas sim a disposição de 120.646 eleitores em escolhê-lo seu representante, no estado do Rio de Janeiro. Prendê-lo e calá-lo de nada adianta. Varreremos para baixo do tapete parte da nossa própria sujeira. Demonizando-o, purificamo-nos. Democracia pressupõe visibilidade, o que implica a ostensão do abjeto. A oposição ao abjeto exige saber onde ele está e qual a extensão da infecção moral que promove. Não se trata de punir o deputado, mas de reduzir, pela política e não pela polícia, o âmbito de sua sustentação.

Catástrofes

Renato Lessa
(Publicado em minha coluna Sobrehumanos, na Revista Ciência Hoje, março de 2011)

Mais do que sobre bases materiais, civilizações sustentam-se sobre crenças básicas. Nenhuma sociedade, por certo, subsiste se as chamadas dimensões objetivas – sejam elas demográficas, econômicas ou políticas – não constituírem um fundamento material, dotado de um mínimo grau de permanência. Afinal, produzir, trocar e guerrear parecem ser invariantes a todas as formas sociais conhecidas. Mas o que determina o sentido das experiências civilizatórias é o conjunto de crenças que fixa seus sentidos e horizontes. Os humanos, tal como afirmava o filósofo Ernst Cassirer são fazedores e utilizadores de símbolos, mais do que de utensílios ou ferramentas. Na mesma direção, outro filósofo contemporâneo – Nelson Goodman – asseverava que somos fabricadores de mundos e que a matéria para essa atividade imparável é nossa capacidade de simbolizar. Em suma, fabricamos mundos por meio da linguagem. A forma da nossa civilização e os artefatos que a compõem resultam dessa fertilidade simbólica.

Os atenienses, do século V, antes da Era Comum, inventaram uma forma política inovadora, à qual deram o nome de “democracia”. Tal novidade fundava-se em uma crença: a de que todos os homens adultos e nascidos na cidade eram “iguais”, a despeito de suas diferenças sociais e funcionais. De qualquer modo, hoje lembramo-nos dos atenienses menos pelas técnicas agrícolas que utilizavam e mais por sua arte, por sua literatura e, sobretudo, por sua filosofia política

A forma civilizatória que, na modernidade, se expandiu pelo planeta, tendo o ocidente europeu como epicentro, sustentou-se também em um conjunto de crenças. A mais importante talvez tenha sido a de que cada um de nós é portador de uma consciência individual, sede de algo que designamos como razão e que conduz nossas capacidades cognitivas. Muito se escreveu, é verdade, contra isso. Mas por mais atacada que seja a crença na razão, parece ser indisputada a nossa crença de possuímos uma identidade pessoal e de que por meio da introspecção somos capazes de simular algum distanciamento com relação ao mundo.

Duas outras crenças foram fundamentais para a modernidade: a crença na regularidade da natureza e na capacidade da ciência de explicá-la de modo adequado, assim como de produzir desdobramentos tecnológicos que conferem aos humanos maestria crescente sobre o mundo natural. Isso significa dizer que lidamos mal com catástrofes naturais, sobretudo quando associadas a efeitos deletérios do “progresso” científico e tecnológico. Na altura do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, Voltaire não teve dúvidas em encontrar o culpado: o próprio “autor” da natureza foi indigitado. Para Voltaire, a natureza estava “errada”: nada justificava a tsunami que varreu quase toda a capital do então império português. Por fim, coube a um déspota esclarecido – o Marquês de Pombal (adepto do partido da razão) – a reconstrução exemplar da baixa lisboeta. De certa forma, a razão venceu o terremoto.

Quase três séculos depois, a catástrofe japonesa não dá azo nem à culpabilidade dos fenômenos naturais, nem à fé cega no progresso tecnológico. A associação entre tsunami e desastre nas centrais nucleares japonesas mostra como duas das crenças básicas de nossa forma civilizatória – regularidade/controle da natureza e progresso tecnológico crescente e virtuoso – merecem inspeção atenta. Pelo jeito, além de enterrar os mortos e cuidar dos sobreviventes, há que lidar com a interpelação posta pela catástrofe a algumas das bases da presença humana no planeta.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Da animação à gestão

Renato Lessa

Da lavra do politólogo Sergio Abranches, na altura da década de 1980, a expressão “presidencialismo de coalizão” acabou por se fixar no vocabulário político geral da nação. Não apenas cientistas políticos a utilizam, mas jornalistas, políticos e o povo em geral. As intenções originais, contudo, eram mais modestas. Tratava-se de entender o funcionamento do sistema político brasileiro implantado em 1946 e destruído pelo republicídio de 1964. A expressão buscava tão somente fixar de modo conceitual o amálgama institucional brasileiro, um composto confuso que incluía federalismo, bi-cameralismo, presidencialismo e representação proporcional.

Trocando em miúdos, a fragmentação política e social brasileira – tanto regional como partidária – encontrava abrigo em um sistema eleitoral que, dada a sua característica proporcional e não majoritária, aparecia como mais inclinado à representação inclusiva, e igualmente fragmentada, do que à geração de maiorias para governar. Dessa forma, o presidente, eleito pelo voto direto, era obrigado a compor maiorias parlamentares e a desenhar seu próprio ministério, com base em ampla coalizão partidária e regional. Essa, a essência do presidencialismo de coalizão, vigente na República de 1946 e reposto na vida política brasileira com o fim do aziago consulado de 1964. Coube ao insigne estadista brasileiro José Sarney, o aggiornamento do arranjo. Nenhum dos governos que se lhe seguiram dispensaram a utilização do artifício.

A faceta analítica original da expressão – e seu leve travo crítico – deu lugar, entre os politólogos conservadores, a um verdadeiro efeito de naturalização. A expressão parece hoje mais designar um desígnio inamovível da natureza do que um arranjo histórico sujeito à obsolescência. Toma-se a expressão como descritiva e, mais do que isso, como estado de natureza irrecorrível, quando não revestida de justificativas que, mais do que apego obsessivo ao realismo, revelam preferências estético-políticas.

Não é infreqüente ouvir politólogos a corrigir a imperita opinião dos seres ordinários a desancar o que ingenuamente lhes parece ser uma ignóbil porcaria, seja ela a desenvoltura de parlamentares predadores ou a criminosa captura de sufrágio, inscrita de forma indelével nas práticas eleitorais. Há sempre uma voz ponderada, com suposto fundamento científico, a dizer que “a” democracia, em todos os países, convive com tais pormenores e o que importa é a qualidade das instituições no atacado, e não o varejo do comportamento individual predatório.

Lembra bem os pobres passageiros do bonde de Seveso, em um belíssimo conto de Italo Svevo, que, diante do atraso regular de horas de seu único transporte, diziam coisas do seguinte tipo: ouvi falar que o trem que vai para Vladivostok, de uma feita, atrasou três dias...

Vida que segue, as artes da coalizão, no governo Lula, foram acompanhadas de uma modalidade de presidencialismo dotada de atributo contido na idéia de animação. Um pouco à moda de Montesquieu, pode-se dizer que se a coalizão constitui a natureza do governo em questão, a animação o põe em movimento. Lula foi inexcedível nas artes do presidencialismo de animação.

A presidente Dilma Roussef não possui – e, ao que tudo indica, não pretende possuir – proficiência na matéria. Seu primeiro mês, se comparado ao ruído e à ubiqüidade do antecessor, dá a impressão de que o governo está em estado de pré-temporada, recluso em alguma estância hidromineral erma. Isso não é necessariamente mau. Governos lidam, com freqüência com temas e questões enfadonhas, que exigem mais focalização competente do que o recurso recorrente à fanfarra.

Dilma Roussef montou sua equipe de governo dentro dos padrões da ortodoxia. Reservou para os de sua maior confiança ministérios estratégicos e, na maioria dos demais – quase duas dezenas – procedeu à praxe. A desenvoltura de predadores notórios deve ser vista tal como os médicos interpretam nossos hemogramas, em busca de marcadores que indicam más notícias. Na primeira reunião da equipe, no entanto, a presidente deu sinais de que pretende se demarcar, senão da prática das coalizões, ao menos da alegria e do estar à vontade que a acompanhavam, quando conduzida por seu antecessor. Seu enfado com o inacreditável ministro do Turismo, a discorrer sobre mais de uma centena de metas, e o aviso dado aos que cogitam em delinqüir podem ser interpretados como bons sinais. Necessários mas, se calhar, insuficientes.

No lugar do presidencialismo de animação, Dilma Roussef, aos poucos, afirma a sua própria versão do regime: um presidencialismo de gestão. Mais do que interromper a cultura da hiper exposição de seu antecessor, em uma República que se acostumou favoravelmente à animação, o presidencialismo de gestão, se levado á sério, choca-se com a natureza do regime, fundado na grande coalizão. A não ser que seja um rótulo vazio, em movimento retórico de baixa extração, a afirmação da gestão como núcleo da experiência republicana, pace Dilma, é incompatível com a demografia do próprio governo. De modo mais direto, alguém vai ter que sobrar: republicanos ou republicidas.

(Publicado no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 23/01/2011)