domingo, 19 de junho de 2011

Governar com o inimigo

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, 19 de junho de 2011)

Em entrevista a um programa de televisão, nesta última semana, o governador do Ceará, prócer do Partido Socialista Brasileiro – componente da assim chamada “base aliada” do governo –, deu sua versão a respeito do princípio da gratidão na política. Segundo seu contributo doutrinário, a presidente Dilma Roussef deveria retribuir o apoio dado à sua eleição pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, lançando-o candidato à sua sucessão, no ainda longínquo ano de 2014. O estímulo à gratidão alheia, para os pessimistas, pode ser considerado um traço não incomum da natureza humana. Não será, com efeito, difícil encontrar em François La Rochefoucauld ou em Jean de La Fontaine, moralistas do saudoso século XVII, suporte para tal sentimento.

Há, contudo, além de desencanto antropológico, sinais de patologia política na coisa. Um aliado contribui para a reativação de uma das suspeitas lançadas durante o processo eleitoral, a de que se preparava, na altura, um interregno. Suspeitar é humano, mas se plano havia, há que se suspeitar também de parvoíce, pois haveria que combinar as coisas com os eleitores, com quatro anos de antecedência, e apostar na possibilidade de um cenário no mínimo curioso: Dilma Roussef deveria fazer um governo à la Quincas Borba: a vida não sendo tão boa, não é de todo má. Segundo a prescrição emanada do Cosme Velho, seu governo não deveria ser nem muito bom e nem uma ruína, capaz de macular as chances futuras do seu patrono.
De qualquer forma, antecipar a sucessão parece ser coisa de inimigos. Tem-se aí um indício de que algo está fora de lugar. O gesto do governador pode ser tomado como um estímulo para refletir a respeito da distinção entre amigos e inimigos. De modo menos abstrato, pode-se por a coisa nos seguintes termos: o que é e faz a oposição, e quem a exerce?
A seguir o manual do bom senso, a oposição é uma prerrogativa dos derrotados em 2010. Derrotados curiosos, pois, apesar da imensa popularidade do principal apoiante da candidata vitoriosa, foram capazes de amealhar suculentas dezenas de milhões de votos, com vitórias em pontos importantes do país. Passado o pleito, a oposição oficial nunca esteve à altura de sua façanha. Ganhou notoriedade com a exibição de suas querelas internas, foi assaltada pela razia imposta pelo prefeito de São Paulo e desapareceu. Não estivessem vigentes os institutos constitucionais de 1988, dir-se-ia que os tipos foram para a clandestinidade. Fica à espreita dos deslizes comportamentais dos vitoriosos que, por não serem infreqüentes, dão-lhe algum oxigênio. Ignora-se o que pensa a respeito do país e o que tem a dizer à multidão de seus eleitores.
É da natureza dos sistemas políticos com alguma dose de competição a existência oposições. Sabemos que as há mesmo em sistemas de baixa – ou nula – competitividade. Que dirá do nosso, cuja competitividade é sempre decantada por numerologia ufanista?
A oposição real pode ser encontrada onde era suposto que ela não estivesse. A “base aliada” é um celeiro de descontentes e, o que é mais grave, ambiente assolado pelo princípio da chantagem. A base do modelo político em curso sustenta-se na necessidade da grande coalizão parlamentar e partidária de apoio ao (ou, agora, à) presidente. Por maior que seja a magnitude da vitória eleitoral presidencial, a diversidade brasileira, acolhida pelos fundamentos do sistema eleitoral (nada de errado com isso, em princípio) torna pouco provável a eleição concomitante de maioria parlamentar comparável. Aqui, como alhures, a inevitabilidade das coalizões se faz presente, como condição de - com perdão antecipado pelo uso do termo – “governabilidade”. Até aqui, nada de patológico ou de preâmbulo para danação eterna.
Há diversas ordens de problemas, presentes no arranjo implantado no país após a redemocratização da década de 1980; um arranjo emergencial, cuja “teoria” ou “doutrina” lhe foi posterior na ordem do tempo. Há ali um dilema que lhe é inerente, a consistir no fato de que “governabilidade”, tal como a idéia é veiculada, está associada à formação de maiorias parlamentares disciplinadas, sem considerar o dano infringido pelo processo ao programa substantivo de governo, tal como sufragado pela maioria dos eleitores. Há, pois, uma tensão entre a busca de docilidade parlamentar e a capacidade de execução do governo. Governar cada vez mais se converte em exercer “coordenação política” sobre uma base ampla e de baixa confiabilidade.
O dilema aprofunda-se no governo atual. A principal força de oposição potencial e real está instalada na “base aliada”. Com um agravante: seu líder incontestável ocupa posição indemissível, posto que no exercício da Vice-Presidência da República. A quebra da coalizão, mais do que risco político, o que é da vida, pode configurar problemas mais graves de natureza institucional. O camarada Lenin, certa altura e com brilho, designou a confusão como “dualidade de poder”. Ele gostava da coisa, mas, cá entre nós, trata-se algo que sempre acaba mal.
Como se bem diz em Portugal, o sarilho está posto. Para isto é que se elegem governos? Para que despendam a maior parte de seu tempo e energias a tentar governar a si mesmos? Para fazer da “coordenação política” sua principal atribuição? Há que pensar nos limites dessa forma de governar, segundo a qual a busca de apoio para executar um programa exige a sua descaracterização. O “presidencialismo de coalizão” é a forma institucional do arcaísmo, instalado no processo político de condução do país. Como é possível que um dos personagens mais sinistros da história republicana tenha papel relevante na definição da política de sigilo de documentos? Enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal educa a República e dá lições a respeito da importância da liberdade pessoal (essa frase é séria). Assim não dá.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Entrevista ao jornal Valor Econômico (13/6/2011)

“É Dilma quem tem que assumir a coordenação política", diz Lessa
Heloisa Magalhães/Valor Econômico | Do Rio
13/06/2011

Uma coalizão formada por tantos diferentes partidos e ideologias, um PT fragmentado e um PMDB poderoso, com o vice-presidente Michel Temer fazendo do Palácio do Jaburu um centro alternativo de poder ao Alvorada são ingredientes que exigem da presidente Dilma Rousseff uma capacidade de articulação política que seu governo não tem demonstrado, independentemente da saída do Antonio Palocci, da Casa Civil. Para o cientista político, Renato Lessa, professor da Universidade Federal Fluminense, a presidente "tem que chamar para si a coordenação política".
Na entrevista abaixo, Lessa faz uma análise do momento político nacional e avalia que o país está "numa situação de muito risco". Ressalta que o risco não é de quebra institucional - "o governo Dilma não está em perigo". Para ele o que está em risco é agenda que a presidente anunciou para o país que está comprometida porque "coalizão não é só apoio parlamentar é co-participação no governo".
Veja abaixo parte da conversa do cientista político com o Valor.
Valor: O modelo de coalizões no Congresso não está se mostrando inviável?
Renato Lessa: Esse é o modo de governar que se consagrou no Brasil há quase 30 anos, desde a Nova República. Foi ensaiado na gestão de [José] Sarney, que foi um governo de grande coalização pois todos estavam com o governo, com exceção do PT. E, também, foi desenvolvido nos oito anos de Fernando Henrique [Cardoso]. Os componentes são que o presidente eleito pelo voto popular e o Congresso fragmentado não têm maioria, então a saída é fazer coalizão. Na época do Fernando Henrique, bastava o PSDB votar com o PFL e, como no PMDB tem sempre quem esteja a serviço de quem está no governo, a coalizão estava formada. A administração dessa coalizão não chegou a ser problemática. A lógica do modelo já estava presente. Qual é ela? A lógica da chantagem. Mesmo que Fernando Henrique pretendesse fazer reformas constitucionais, não bastava ter 50% de apoio. Ele tinha de quer ter dois terços. Tudo isso tem um componente sociológico brasileiro que é o arcaísmo de regiões do Brasil na quais a dominação política se dá de acordo por padrões muito antigos, padrões coronelistas, padrões de dominação eleitoral, e essa gente que cobra seu apoio na montagem das grandes coalizões.
"Ou Dilma enfrenta com uma maneira própria de governar ou sucumbe e governo vira interregno"
Valor: A crise do modelo de coalizão está na origem da denúncia do mensalão no governo Lula?
Lessa: No governo Lula a coisa agravou porque pulverizou. O número de partidos participantes da coalizão aumentou e o leque ideológico esticou de uma maneira impressionante, após unir o centro e centro direita. Mas o governo Lula teve muito a ver com a crença de que o personagem tinha - e tem - capacidade de conciliar o inconciliável. Ao mesmo tempo que tinha num Ministério da Agricultura um Reinhold Stephanes e um Roberto Rodrigues - aliás um excelente quadro, mas um homem vinculado ao segmento agrário - havia uma esquerda radical forte, ativa, na área da reforma agrária. Foi já um governo de coalizão, com distância ideológica dos extremos e pela quantidade de parceiros que tiveram que ser incorporados. Claro que tinha que dar no mensalão, era um corolário de uma coalizão toda ela formada com expectativa de motim.
Valor: Dilma foi incapaz de reproduzir o modelo?
Lessa: Dilma herda os mesmos problemas com algumas novidades. O papel central que o PMBD assume com a Vice-Presidência, o que muda a correlação de forças. O Lula tinha como vice José Alencar, Dilma tem [Michel] Temer que é presidente do PMDB. Ele é como o dono do partido, controla o partido e conversa com todos os segmentos desde Jarbas Vasconcelos e outros como Eduardo Cunha. A outra novidade é que o PMDB está dentro de casa e há a ausência do negociador.
Valor: Lula era o seu próprio negociador do seu governo...
Lessa: Era o coordenador político do governo e tinha um ou outro que afinavam. E agora está complicado, o atributo de costurar acordos é prerrogativa do presidente, o coordenador faz a movimentação mas a direção é dada por ele. Lula e Fernando Henrique entenderam e jogaram bem o jogo. Dilma ainda é uma incógnita. Ela tem que sair para esse jogo e chamar para si a coordenação política. Tem legitimidade para isso com maioria expressiva de votos e três anos e meio de governo. Ela não está politicamente sequelada e tem recursos de recuperação, mas tem dificuldades imensas. Uma delas é contar com uma coalizão tão ampla.
Valor: Como o senhor avalia a escolha da ministra Ideli para a coordenação politica?
Lessa: Primeiro, acho que era um bom momento de acabar com os dois ministérios que não fariam falta. A função de negociador é da presidente. Escolher a ministra Ideli não é animador. O governo ganha em agressividade mas perde em capacidade de negociação. É como diz o treinador de futebol. Ganha em agressividade mas perde em pegada.
Valor: Essa coalizão é administrável?
Lessa: Tem o fogo amigo, o PMDB, de questionável lealdade, e o PT inteiramente fragmentado, inteiramente enlouquecido. Se o governo carece de coordenação política, o PT carece 20 vezes mais de coordenação interna.
Valor: O senhor acha que o desgaste como o que a presidente Dilma passou já foi controlado?
Lessa: A presidente está à frente de um dilema: ou ela enfrenta com uma maneira própria de governar ou ela sucumbe e governo fica com cara de interregno e a profecia se autocumpre. Cria-se um clima no qual todo mundo vai olhar para o governo pensando no próximo governo Lula e isso é fatal.
Valor: A presença de Lula em cena não é negativa para imagem da presidente?
Lessa: A pergunta é se isso é desejável. Lula é um fato. É um fenômeno. Não se pode fazer de conta que Lula não existe. Ele não pode ser visto apenas como sombra. Não vejo problema que ele apareça como fator político relevante. O que não pode acontecer é ele se tornar sombra, se tornar indispensável. O risco é ele se transformar em um operador político regular, um macro coordenador político do governo. O principal problema é costurar essa coalizão que é explosiva, alguém tem que ser capaz de fazer essa costura. Para haver previsibilidade e segurança para governar. O que está ficando claro é que os operadores do PT disponíveis no mercado não têm capacidade para cumprir essa tarefa. Inclusive, qualquer alternativa que surge em algum segmento do PT é bombardeada, imediatamente enfraquecida por outro segmento.
Valor: O PT paulista perdeu o posto de uma vez por todas?
Lessa: E isso é incompreensível para um partido supostamente nacional, que tem um projeto poder nacional com uma agenda para o país inteiro. Como um ala do partido pode criar problemas dessa natureza?
Valor: A reforma política consertaria os problemas da coalizão?
Lessa: Precisa ver o que queremos dizer quando se fala em reforma política. Sou cético porque a reforma não atuaria nos partidos e operadores políticos. Mas acho que não há erro ter que fazer governo de coalizão. Portugal está fazendo coalizão de direta com a centro-direita, o que não espanta ninguém. Os ingleses são coligados. Israel desde 1948 tem governos de coalizão. A esquerda dominava até os anos 80 mas tinha apoio da direita senão não conseguia fazer maioria. Isso é da vida. Os únicos países que conseguem controlar isso são os que usam voto majoritário. Aí cria outro problema que é ausência de representação. Limita a vida partidária a dois atores, como nos Estados Unidos, aí fica uma taxa de alienação política enorme, as pessoas não se reconhecem no sistema partidário. É cobertor curto.
Valor: A amplitude da coalizão brasileira é tão comum assim?
Lessa: A nossa política de coalizão é um modelo para o desenvolvimento de relação de chantagem. Temos que falar coisas como o baixo espírito público da classe política brasileira, baixa qualidade de reflexão, acho que há um déficit cognitivo da interpretação das coisas, as pessoas pensam com o estômago, com o apetite. E os próprios intelectuais, que de um modo geral são governistas, perdem capacidade de crítica e respeito pelo rumo que a democracia brasileira está tomando. Os partidos não são lugares de reflexão, de mobilização do apetite, da chantagem, não estão politizando a sociedade.
Valor: O governo Dilma está em risco?
Lessa: O governo Dilma não está em perigo. O que está em risco é a agenda que ela anunciou para o país. A agenda está comprometida porque a coalizão não é só apoio parlamentar é coparticipação no governo. A coparticipação no governo de inimigos, adversários chantagistas claro que impacta a agenda da mudança social, implícita na proposta da presidente. Afinal de contas é uma mulher de esquerda, apesar disso ter mudado muito ultimamente, é uma agenda escrita com a mão esquerda. Com esse ministério não dá, com Garibaldi Alves [ministro da Previdência] não dá, com Michel Temer não dá. Não basta apenas um arranjo numérico para ter maioria parlamentar, a agenda dela vai sofrer uma erosão. Por que o vice-presidente da República não dá a conhecer ao país o que ele pensa? Ele é um operador sombrio. Esse é o problema. O maior aliado da presidente é o seu principal problema. É uma mácula que está na coalizão e agora chegou ao paroxismo, ao limite de radicalização, está evidente a lógica da chantagem.
Valor: Há exemplos internacionais de maior sucesso na transparência das autoridades?
Lessa: Fazer lei de transparência não adianta. Adianta sim ter opinião pública atenta, órgãos independentes, organização da sociedade civil. O custo de fazer coisas indevidas está aumentando. Vão parar de fazer isso quando ficar claro que não dá para fazer qualquer coisa e ficar impune. O país é a oitava economia do mundo e grande parte da elite política está associada a Estados que têm os piores indicadores sociais do planeta. Os de Alagoas e Maranhão e Roraima são inexplicáveis. A República não é governável sem Renan Calheiros, José Sarney e Romero Jucá. E, por outro lado, o país é moderníssimo, respeitado internacionalmente com economia pujante. Alguma coisa não está batendo.
Valor: Mais uma vez a ética de representantes do PT é abalada. O capital eleitoral do partido nunca será minado?
Lessa: O partido está desgastado mesmo. A pior coisa que poderia acontecer ao PT é estar no poder há tanto tempo. Era bom para o país ter um partido como o PT na oposição. Agora, a oposição fica dependendo das falhas éticas eventuais para agir como se fosse o ombudsman do país. O governismo tomou lugar do petismo. O PT, em um certo sentido, dissolveu-se na grande coalizão. Contribuiu para a complexidade da coalizão.
Valor: E qual a saída?
Lessa: Acho que o quadro é muito difícil e complexo. A alternativa é assumir um risco de governo de minoria, não ceder à chantagem. Pode governar sem legislar, governar administrativamente. Governo se torna importante para aprovar o Orçamento. Diante de chantagens, a presidente deveria pagar para ver.
Valor: Mas o vice-presidente representa um partido que tem interesses muito fortes...
Lessa: Colocar um vice-presidente do PMDB tem um custo muito grande. O José Alencar foi uma boa escolha. Tinha uma relação pessoal excelente com o Lula e pouca representação política. Temer é um chefe de partido ativo, um operador da política, um centro alternativo do poder. O Palácio do Jaburu é um centro alternativo de poder do Alvorada

sábado, 4 de junho de 2011

Jabuticaba institucional

Renato Lessa
(Versão ligeiramente modificada de artigo publicado no suplemento Aliás, do Estado de São Paulo, 5/6/2011).

Há vários experimentos em curso no planeta, nos quais o exercício do governo sustenta-se em amplas coalizões partidárias e parlamentares. A natureza crescentemente fragmentada das sociedades e seus efeitos sobre as escolhas eleitorais assim o determinam. Tomemos o caso de Israel: desde a sua fundação, em 1948, os governos naquele país, para obter o apoio do número mágico de, ao menos, 61 deputados fiéis, em um parlamento composto por 120 membros, sustentam-se em heteróclitas composições partidárias.
A Itália, depois de haver destruído seus sistemas eleitoral e partidário do pós-guerra, a partir da década de 1980 vê-se às voltas com o embate entre duas grandes coalizões: os berlusconianos da Casa da Itália e a vasta constelação abrigada no Partido Democrático, tataraneto do velho PCI. Qualquer uma dessas alternativas implicará a prática de governos de coalizão. Até mesmo o Reino Unido, orgulhoso de seu sistema eleitoral majoritário – supostamente capaz de garantir maiorias “puras” e monopartidáias – sucumbe a um governo de coalizão, com a associação entre os conservadores de David Cameron e os “Lib-Dem” de Nicholas Clegg. E por aí a coisa vai.
Exemplos abundam, mas para nenhum deles cunhou-se um conceito, para fixá-los como espécie distinta na constelação dos sistemas políticos. Imaginem só alguém a descrever o aziago governo de Benjamin Netanyahu, com ares de elucidação, como “parlamentarismo de coalizão”. Uma reposta polida a tal gesto de iluminação poderia ser simplesmente: “Sim, e daí?”.
Entre nós, o léxico político dispõe da expressão “presidencialismo de coalizão” (PC), um tanto ubíqua na imprensa e na análise acadêmica conservadora. Mais do que descritiva, ela exerce um efeito de apaziguamento sobre os espíritos. É como se uma voz a acompanhasse, toda vez em que é formulada, a dizer: “meus filhos, é assim que as coisas são”. Nada, enfim, como a força de um nome inercialmente estabelecido para deflacionar o espanto, a indignação e a crítica.
Além do efeito normalizador exercido pelo seu nome próprio, o experimento PC, por singularmente brasileiro, teria, assim, algo em comum com as jabuticabas. Há evidente exagero ufanista na apreciação da singularidade, resultado de aplicação de velho truque nominalista: cunhar um nome singular para um experimento trivial – por exemplo, governos de coalizão – e produzir a crença de que tal experimento, pela aplicação do conceito, resulta em algo único e original.
Coalizões há por toda parte, o que não impede que particularidades locais sejam detectadas. O risco do exagero na afirmação da singularidade reside em uma espécie de patriotismo institucionalista, sustentado na crença de que os laboratórios nacionais desenvolveram drogas inovadoras para lidar com os dilemas da assim chamada “governabilidade”. A falta de boa sociologia política não ajuda em nada a pensar o quanto dessa droga releva do ambiente que ela pretende debelar.
Instalado no consulado tucano, precedido do ensaio do governo Sarney, o experimento PC, à partida, apresentava uma fisionomia bifronte: por um lado tratava-se de um modo de governar no qual, dada a inexistência de base parlamentar suficiente, o presidente eleito é levado a compor vasta e heterogênea coalizão para fazer valer seus projetos de governo, com as devidas erosões e adições aí implicadas; por outro, e de modo mais velado, o experimento PC repôs um velho mote da tradição política nacional: o de que a modernização, qualquer que seja o seu desenho, exige a composição como o “atraso”. O experimento PC combina, portanto, pragmatismo político com maldição sociológica. A fusão desses dois horizontes consagra a presença do arcaísmo como condição social e política perene. A exigência de “governabilidade” faz do comportamento predatório um sintoma de racionalidade.
O experimento PC, sob Lula, expandiu os padrões usuais, pela extensão e maior heterogeneidade da coalizão. Diante da variedade do que se convencionou chamar, não sem certo humor, de “base aliada”, os talentos e atributos do Presidente apareceram como recursos inestimáveis. O experimento deve, nesse sentido, muito ao personagem e à sua habilidade na negociação e na composição de posições inconciliáveis.
A passagem para o governo de Dilma Roussef torna mais aguda uma dimensão já presente no experimento PC. Trata-se de um arranjo – para além do pragmatismo e da sociologia – fundado em lógicas de chantagem. A habilidade na chantagem converteu-se, também, em marcador de racionalidade política. Presente em “etapas” anteriores do experimento, a força de tal componente nos dias que correm sugere nova definição: o experimento PC é um modo de governar segundo o qual uma oposição potencial - e por vezes real e desleal - faz parte da base do governo. Há, portanto, algum absurdo na coisa. A parceria com o partido do Dr. Temer - além da presença de hooligans políticos na base aliada – é hospedeira do risco de instabilidade política, a despeito de ter sido “construída” com finalidade oposta. Mesmo sendo artificiais, como nos ensinou o bom Hobbes, os animais políticos não podem contradizer suas naturezas. O experimento PC exige operadores diuturna e absolutamente fiéis a suas naturezas, o que exige esforços extraordinários de coordenação.
Para lidar com isso, o ex-presidente Lula parece assumir a macro-coordenação política do governo. A presidente, em apresentação vigorosa da expansão do Bolsa Família, reforça seu papel de macro-coordenadora da gestão do governo. Resta ver o que resultará dessa diversificação não usual de papéis, se complementaridade ou ainda maior confusão. É de se supor que as soluções produzidas no âmbito da macro-coordenação política tenham implicações sobre a estrutura da gestão. Ficará mais difícil saber quem governa quem.
De qualquer modo, o primeiro gesto do macro-coordenador político foi o da sutura do atrito com o PMBD, o principal ator do experimento PC. O PT, dirigido por operadores atônitos e com déficit reflexivo notório, arrisca-se à coadjuvância. Jamais sairá do governo, o que reduz seu capital de chantagem. As hostes do Dr. Temer estão muito mais à vontade nesse jogo.

A difícil oposição

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás, do Estado de São Paulo, em 1/5/2011)

Um dos grandes presidentes da Casa dos Representantes (House of Representatives) - a Câmara de Deputados dos EUA -, o lendário Tip O’Neill, a certa altura disse que “toda política é local”. Por mais que possa mobilizar temas e interesses de ordem mais geral, a dinâmica da política releva do localismo e do imediato. O’Neill, típico New Dealer Democrat de ótima cepa, passou 50 de seus 82 anos de vida como parlamentar, 34 dos quais em Washington, tendo presidido a Casa por dez anos, de 1977 a 1987. Insistia no caráter local da política, não tanto por paroquialismo, mas pela defesa de uma concepção de representação que vinculava os representantes aos representados.
Há outro sentido possível para a expressão. Da mesma forma que os temas da, digamos, grande política vinculam-se a cenários locais, estes, por alguma operação metonímica, podem dar passagem ao vislumbre do geral. Supor que localismo é apenas localismo significa opção deflacionada para o uso de nossas – já precárias por constituição própria – capacidades cognitivas. O localismo pode ser pensado, sem prejuízo da atenção a fenômenos particulares, como ponto de observação do cenário mais amplo da política e seu espaço de decantação.
Supor, por exemplo, que o drama dos tucanos em São Paulo tem como fundo divergências entre vereadores do partido e o governador do estado é levar a hipótese do localismo às raias do paroxismo. Mais do que isso, significa supor que o PSDB, que, a despeito da pretensão de reconfigurar o país, sempre foi caracterizado como de extração paulista, padece da maldição de encerrar os seus trabalhos por força de uma crise paulista.
Dissolve-se hoje, a olhos vistos, o PSDB, assim como o agonizante DEM, herdeiro do finado PFL. Há quem culpe o prefeito de São Paulo, pelo gesto oportunista de “fundar” um partido novo. Não tenho mandato e nem ânimo para defendê-lo, mas mais espantosa do que a esperta iniciativa é a magnitude do estrago da aventura sobre legendas partidárias ditas “consolidadas”. O quadro, digamos, doutrinário do partido do Dr. Kassab, como sabido, é indigente, mesmo para padrões nacionais. Trata-se de legenda que se apresenta como não sendo nem de esquerda, nem de direita e nem de centro. O corolário tático da estimulante renovação nos programas partidários é a disposição para apoiar o governo federal, os governos estaduais e, é claro, os governos municipais.
É uma tentação destacar o lado ubuesco da iniciativa, mas esse reembaralhamento oportunista não diz ele algo a respeito da vida partidária brasileira em geral?
O veterano O’Neill preocupava-se com o nexo entre representantes e representados. Padecia, portanto, de uma concepção de política que, ainda que asssentada no mundo parlamentar, supunha que a vertebração dos partidos tem a ver com o que fazem fora do âmbito legislativo. Concepção fora de moda, a crer nos analistas e estudiosos brasileiros que dizem que o que importa é saber como os parlamentares votam em plenário, no exercício de seus mandatos. Ainda segundo essa concepção autárquica do mandato e da representação, aprendemos que os partidos brasileiros são altamente disciplinados em seu comportamento parlamentar. Nada de errado com eles: os governistas tendem sempre a votar com o governo e os oposicionistas com a oposição. O bom Aristóteles sabia o que estava a dizer quando afirmava que juízos tautológicos são sempre verdadeiros.
As dificuldades da oposição são enormes. Há quem as atribua às excelências do governo Lula, o que teria reduzido as margens de crítica. Tese não raro vociferada por áulicos obsecados pela ostensão de índices de desempenho. Alguns desses índices são mesmo notáveis, o que, é evidente, estabelece limites ao discurso responsável e torna um tanto ridículo o catastrofismo. Mas, como desconheço governo infalível, sempre há margem para oposição, se esta – é evidente – tem algo a dizer; se oferece ao país uma alternativa fiável e distinta. É inacreditável que um partido capaz de conquistar cerca de 40% dos votos nacionais em 2010, contra uma candidata apoiada por um governo de altíssima popularidade, tenha perdido o mapa de acesso a tal patrimônio. Perceber essa conquista como derrota é sinal inequívoco de pouco apego ao pensamento.
As artes do “presidencialismo de coalizão”, por outro lado, ultrapassam seus efeitos imediatos de garantir “base aliada” numerosa e segura. Sua extensão esteriliza a política, porque sustentada na convicção de que a saúde da democracia depende da disposição dos parlamentares em apoiar o governo. Não vai daqui a defesa kamikase da superioridade dos governos de minoria. Mas reduzir a representação nacional a fundamento de – desculpem – “governabilidade” é, como dizia Zé Trindade, de amargar. A vida fora desse grande nexo é inóspita, sobretudo para nostálgicos.
E é de nostalgia que se trata, quando emergem sonhos de fusão entre PSDB e DEM. A oficialização da atração preferencial pela direita, por parte dos próceres tucanos, vale como desistência expressa do projeto de seus fundadores. A indigência intelectual e o oportunismo privam o país de um requisito fundamental para a democracia, uma oposição capaz de articular um ponto de vista alternativo. Por bons que sejam os governos, há sempre alternativa melhor. Falta ao país quem, a sério, diga isso.

A visibilidade do abjeto

Renato Lessa
(Publicado em minha coluna Sobrehumanos, na Revista Ciência Hoje, em maio de 2011)

Um dos dilemas mais fortes liberalismo diz respeito a como lidar com a intolerância e com seu adepto, o intolerante. O tema da tolerância é antigo e impôs-se no debate moderno com guerras de religião, que assolaram a Europa a partir do século XVI. Guerras cujo fundamento consistia na associação entre religião e razão de Estado e cujo efeito, de modo invariável, implicava a eliminação – física e/ou cultural - de minorias religiosas, consideradas como de lealdade duvidosa ao Estado ao qual petenciam. O clima dessas guerras foi admiravelmente reconstituído por Heinrich Mann no livro A Juventude de Henrique IV (1938), uma das bases para o filme de Patrice Chéreou, A Rainha Margot (1994). O livro e, com foco maior, o filme reencenam o clima do massacre de São Bartolomeu, ocorrido em Paris a 24/8/1572, que deu a partida para a eliminação física de 100.000 huguenotes, por parte dos governantes católicos na França.
A vasta reação à intolerência religiosa pode ser encontrada em obras de diversos pensadores, a partir do próprio século XVI: Michel de Montaigne, Jean Bodin, ambos naquele século, e Pierre Bayle e John Locke, no século seguinte, entre vários autores. Bayle não só defendeu a tolerância, como afirmou a possibilidade de que ateus sejam pessoas virtuosas, sendo a religião apenas algo de natureza privada e íntima. John Locke, em sua célebre Carta sobre a Tolerância (1689), combateu o princípio da coação externa em matéria religiosa e propugnou por uma idéia de poder público garantidor da liberdade individual. O tema se fez, ainda, presente no século seguinte, tal como pode ser percebido nas obras de David Hume e Voltaire.
Mas a questão da tolerância não diz respeito exclusivo a questões de natureza religiosa. O filósofo inglês John Stuart Mill, no século XIX, em seu clássico Sobre a Liberdade, afirmou que uma sociedade decente, para além de obedecer a regra da maioria em suas decisões políticas fundamentais, caracteriza-se pela proteção legal das minorias. Maiorias e minorias são conjuntos políticos erráticos, cuja flutuação não pode afetar liberdades individuais essenciais e permanentes: pensar, escrever, falar, crer e aderir a valores. Os que aderem a tal concepção de tolerância perguntam-se com frequência: como tolerar o intolerante?
A resposta não é simples. A opção por não tolerá-lo implica, ao final, a vitória do intolerante que, independentemente do que defende, milita contra a sustentabilidade da própria tolerância. Tolerá-lo, por outro lado significa reconhecer a legitimidade de quem ataca os princípios básicos da tolerância.
Há pouco lidamos com esse dilema, em termos práticos, diante da manifestação, em entrevista televisiva, de posições abjetas e intolerantes por parte de um obscuro parlamentar brasileiro, notabilizado pela defesa da tortura e dos assassinatos perpetrados pelo regime de 1964. Na entrevista, posições racistas e homofóbicas foram apresentadas de modo aberto, mas sem qualquer surpresa. Há, é evidente, uma dimensão penal nisso tudo, mas tal ângulo não parece ser o único a ser considerado.
O ângulo punitivo e penal visa calar o deputado e fazê-lo responsável perante a lei. Mas o mais grave não é o que fez, mas sim a disposição de 120.646 eleitores em escolhê-lo seu representante, no estado do Rio de Janeiro. Prendê-lo e calá-lo de nada adianta. Varreremos para baixo do tapete parte da nossa própria sujeira. Demonizando-o, purificamo-nos. Democracia pressupõe visibilidade, o que implica a ostensão do abjeto. A oposição ao abjeto exige saber onde ele está e qual a extensão da infecção moral que promove. Não se trata de punir o deputado, mas de reduzir, pela política e não pela polícia, o âmbito de sua sustentação.

Catástrofes

Renato Lessa
(Publicado em minha coluna Sobrehumanos, na Revista Ciência Hoje, março de 2011)

Mais do que sobre bases materiais, civilizações sustentam-se sobre crenças básicas. Nenhuma sociedade, por certo, subsiste se as chamadas dimensões objetivas – sejam elas demográficas, econômicas ou políticas – não constituírem um fundamento material, dotado de um mínimo grau de permanência. Afinal, produzir, trocar e guerrear parecem ser invariantes a todas as formas sociais conhecidas. Mas o que determina o sentido das experiências civilizatórias é o conjunto de crenças que fixa seus sentidos e horizontes. Os humanos, tal como afirmava o filósofo Ernst Cassirer são fazedores e utilizadores de símbolos, mais do que de utensílios ou ferramentas. Na mesma direção, outro filósofo contemporâneo – Nelson Goodman – asseverava que somos fabricadores de mundos e que a matéria para essa atividade imparável é nossa capacidade de simbolizar. Em suma, fabricamos mundos por meio da linguagem. A forma da nossa civilização e os artefatos que a compõem resultam dessa fertilidade simbólica.

Os atenienses, do século V, antes da Era Comum, inventaram uma forma política inovadora, à qual deram o nome de “democracia”. Tal novidade fundava-se em uma crença: a de que todos os homens adultos e nascidos na cidade eram “iguais”, a despeito de suas diferenças sociais e funcionais. De qualquer modo, hoje lembramo-nos dos atenienses menos pelas técnicas agrícolas que utilizavam e mais por sua arte, por sua literatura e, sobretudo, por sua filosofia política

A forma civilizatória que, na modernidade, se expandiu pelo planeta, tendo o ocidente europeu como epicentro, sustentou-se também em um conjunto de crenças. A mais importante talvez tenha sido a de que cada um de nós é portador de uma consciência individual, sede de algo que designamos como razão e que conduz nossas capacidades cognitivas. Muito se escreveu, é verdade, contra isso. Mas por mais atacada que seja a crença na razão, parece ser indisputada a nossa crença de possuímos uma identidade pessoal e de que por meio da introspecção somos capazes de simular algum distanciamento com relação ao mundo.

Duas outras crenças foram fundamentais para a modernidade: a crença na regularidade da natureza e na capacidade da ciência de explicá-la de modo adequado, assim como de produzir desdobramentos tecnológicos que conferem aos humanos maestria crescente sobre o mundo natural. Isso significa dizer que lidamos mal com catástrofes naturais, sobretudo quando associadas a efeitos deletérios do “progresso” científico e tecnológico. Na altura do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, Voltaire não teve dúvidas em encontrar o culpado: o próprio “autor” da natureza foi indigitado. Para Voltaire, a natureza estava “errada”: nada justificava a tsunami que varreu quase toda a capital do então império português. Por fim, coube a um déspota esclarecido – o Marquês de Pombal (adepto do partido da razão) – a reconstrução exemplar da baixa lisboeta. De certa forma, a razão venceu o terremoto.

Quase três séculos depois, a catástrofe japonesa não dá azo nem à culpabilidade dos fenômenos naturais, nem à fé cega no progresso tecnológico. A associação entre tsunami e desastre nas centrais nucleares japonesas mostra como duas das crenças básicas de nossa forma civilizatória – regularidade/controle da natureza e progresso tecnológico crescente e virtuoso – merecem inspeção atenta. Pelo jeito, além de enterrar os mortos e cuidar dos sobreviventes, há que lidar com a interpelação posta pela catástrofe a algumas das bases da presença humana no planeta.