domingo, 27 de novembro de 2011

Difícil oposição

Renato Lessa
(Publicado no dia 27 de novembro de 2011, no Suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo)

Não parece ser fácil, nos dias que correm, exercer oposição no Brasil. O ex-PFL morre à míngua e o PSDB ocupa-se, tempo integral, de suas fraturas internas. A não ser que aceitemos a proposição de que as dificuldades da oposição são o simétrico oposto das virtudes do governo, há algo a examinar. Áulicos empedernidos, por certo, sempre podem brandir tanto a certeza genérica de que a excelência do governo é mortal para a oposição, quanto a certeza específica de que é este o caso em questão. Afinal, um país em marcha batida para seu aperfeiçoamento infrene e para a consolidação de sua excelência política e institucional, no fundo, dispensaria a própria operação da oposição.

Se recusarmos o embarque nessa teodiceia política, cabe-nos considerar e/ou desconsiderar outras hipóteses. Desde já, a oposição não poderá contar, em seu arsenal de lamúrias, com a desculpa rota de que seu exercício sofre algum tipo de restrição ou impedimento. Grassa no país irrestrito direito de organização e expressão. Neste particular, o STF, em boa hora, garantiu o direito de expressão dos que defendem a legalização da maconha. Não imagino que tal prerrogativa – o direito de expressão - possa ser negada aos próceres da oposição se e quando tiverem algo a dizer ao país. A violência policial corre solta, mas incide sobre as vítimas habituais. Não dá para imaginar José Serra ou Tasso Jereissati presos e encapuçados após dizerem ao país qual é o programa alternativo do PSDB para a sociedade brasileira.

Não só desfruta a oposição de um ambiente de irrestrita liberdade de organização e de expressão, como conta com boa vontade de veículos de imprensa que, imagino, não se furtariam em vocalizar teses da oposição a respeito de como deve ser o país. Mais apropriado seria considerar que, se supomos que o exercício da oposição implica, entre outras coisas, tornar menos fácil a vida dos governos, a verdadeira e diuturna oposição no Brasil corrente se faz em casa, no próprio âmago do governo. As dificuldades da oposição formal poderiam, com maior plausibilidade, ser interpretadas como afetadas por uma espécie de concorrência desleal: exerce hoje oposição o grupo ou partido que, estando na base do governo, faz valer o usufruto de seu quinhão por meio de sua capacidade de chantagem e retaliação. Futuros dicionários de ciência política não fariam mal em considerar tal variante, em um possível verbete intitulado “oposição”.

Em 2010, o PSDB realizou façanha de razoável monta. Seu candidato à Presidência da República, José Serra - em disputa contra a então candidata Dilma Roussef, apoiada na figura pública de maior popularidade em toda a história republicana brasileira – amealhou 43% dos votos válidos no segundo turno. Venceu nas regiões Sul e Centro Oeste e no estado de São Paulo. O partido foi ainda vitorioso em oito governos estaduais, incluindo São Paulo e Minas Gerais. É de se perguntar o que o PSDB tem dito aos 44 milhões de eleitores que sufragaram José Serra. Que versão alternativa de país o partido tem apresentado, para além da esgrima da política diária e da opção pela lavagem ética como bandeira maior? Se é possível falar em estelionato eleitoral quando um governo eleito viola de forma explícita expectativas que suscitou no eleitorado, é mesmo o caso de admitir uma variante específica para o caso de oposições absenteístas.

O fato é que o PIB político do país anda raquítico em termos do que poderíamos designar como cultura de oposição. Ao se fazer governo, a partir de 2003, o PT deixou vago o posto antes ocupado por uma oposição a um só tempo política, social e com tinturas programáticas. Sua passagem para o exercício do governo implicou a desativação de operadores importantes e que sustentavam o vigor da oposição exercida. Movimentos sociais e vida associativa inscrevem-se hoje em uma lógica que é muito mais governamental e estatal do que ligada ao que em tempos antigos se denominava como “sociedade civil”. A cultura de oposição do PT desapareceu e deu passagem a uma cultura de governo, com todos os riscos e possibilidades que isso representa. Em outros termos, o PT perdeu a montante – ímpeto oposicionista – e ganhou a jusante – simplesmente, o governo.

Nascido de um rompante de oposição ao governo Sarney, o PSDB, de fins do consulado celerado eleito em 1989 até 2002, constituiu-se como um partido assentado em uma cultura de governo. Foi sucedido por um governo que se apoiou em várias das inovações básicas introduzidas pelo consulado tucano, a elas acrescentando tanto aperfeiçoamentos como aloprações. Em seu DNA, o componente oposicionista – capaz de associar peso político, base social e consistência de programa – é menos evidente do que o esforço de conceber reformas e mudança “de dentro” do sistema de poder. Na rua, fica um tanto à míngua - como Alckmin a tomar o pior cafezinho do planeta, no Bar Amarelinho no Rio de Janeiro, em 2002 (tive nesse dia a certeza de que iria perder) -, sobretudo quando não consegue distinguir-se programaticamente do que se lhe sucedeu. Em termos sucintos, o PSDB perdeu a montante – o governo – e parece ter nada ganho a jusante – capacidade de, como oposição, oferecer ao país um desenho alternativo. Do jeito que está, o PSDB corre o risco de reduzir-se a um partido estadualizado e, como tal, vulnerável às assimetrias do federalismo à brasileira – que faz dos governadores “parceiros” compulsórios da presidente - e incapaz de honrar os 44 milhões de votos nacionais amealhados em 2010.

A vida é dura para os que subsistem fora da grande coalizão que governa a República. Mas pode ser ainda pior para quem não consegue dizer a que vem.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Entrevista ao jornal Folha de São Paulo, 30/10/2011

'Quem faz a faxina é a lógica mafiosa', diz cientista político

UIRÁ MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A CAXAMBU (MG)

A queda do ex-ministro Orlando Silva (Esporte) não tem relevância individual, mas se torna importante por evidenciar um padrão de ocupação do espaço público que funciona dentro de uma lógica mafiosa, afirma o cientista político Renato Lessa, 57.

Para Lessa, professor de teoria política da Universidade Federal Fluminense, o governo de coalizão brasileiro favorece o exercício da política na base da chantagem, e as demissões de ministros não alteram em nada o cenário.

Até porque, diz ele, quem faz a "faxina" não é a presidente Dilma Rousseff, mas a "própria insustentabilidade dessa lógica mafiosa".

Lessa participou nesta semana do 35ë encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em Caxambu (MG), onde conversou com a Folha. Veja abaixo a entrevista.

Rafael Andrade/Folhapress

Cientista político Renato Lessa
Folha - Durante debate sobre análise de conjuntura na Anpocs, o sr. disse que faria uma provocação e afirmou que o Brasil não tem conjuntura. Por quê?

Renato Lessa - É que nós sempre associamos a ideia de conjuntura a um tempo de curto prazo, volátil e marcado pela precipitação dos acontecimentos. Um tempo animado, no qual muitas coisas acontecem, coisas inauditas, imprevisíveis, surpreendentes.

Pense na Primavera Árabe ou na troca de prisioneiros palestinos por um soldado israelense, por exemplo. São momentos que têm a capacidade de reconfigurar todo o campo político daquela sociedade. A isso chamei de conjuntura ativa, um acontecimento com capacidade de provocar mudanças.

Agora, é claro que o Brasil tem uma conjuntura - porque conjuntura é um pedaço de tempo -, mas não uma que obedeça a esses requisitos. Olhando para um retrato 3 x 4 da política, o que aparece é a reiteração de padrões de longo e médio prazo.

Daí por que falei em conjuntura passiva. Não há na política brasileira sinais de inovação.

Essa ausência de conjuntura está ligada a este governo em particular ou o cenário já está desenhado há mais tempo?

Pensando bem, é um cenário que já se apresenta há algum tempo. Ocorre que tivemos um presidente que fabricava conjunturas. Lula foi o animador da República. Muito mais que um presidente de coalizão, era um presidente de animação. Ele ocupava o epicentro da política e produzia seu próprio acontecer na vida pública.

E agora?

Com o estilo Dilma, houve certa rotinização do exercício da Presidência. Há a constatação de que o país passa por uma experiência de invisibilidade da política e presença de uma grande coalizão que não é movida pela contribuição substantiva dos quadros dos partidos, mas determinada pela necessidade de acomodar aliados que supostamente vão votar com o governo.

Mas um governo dessa natureza é vulnerável à chantagem o tempo todo. Há uma lógica da sabotagem. As entranhas do governo são exibidas a partir de fogo amigo, a partir de lógicas que, tecnicamente falando, são mafiosas.

Nesse sentido, a queda do ex-ministro [do Esporte] Orlando Silva é previsível dentro desse padrão de política. Não há nada a comentar especificamente quanto à queda desse ministro, porque ela não tem relevância individual. Tem relevância apenas na medida em que nos ensina a perceber a reiteração de um certo padrão de ocupação do espaço público brasileiro.

Que o senhor considera mafioso?

Sim. Mas é bom deixar claro: estou usando o termo ªmafiosoº em sentido técnico. Não estou acusando ninguém de ladrão, de dom Corleone. Estou me referindo a esse sistema de divisão de butim e de informação que vaza quando algum acordo prévio não foi cumprido.

O interessante é que parece operar no governo uma espécie de cordão sanitário, como se fosse claro o que é poroso à predação e o que não pode ser. A gestão do desenvolvimento social e a da economia, por exemplo. É como se houvesse dois círculos: aquilo que o governo precisa para governar e aquilo que precisa para compor a base de apoio. Há certa noção do que não deve ser vulnerável a essa cultura da coalizão.

Isso o sr. atribui ao perfil da presidente Dilma?

O estilo Dilma é "low profile", mas ela sabe exatamente como o governo se compõe. Por sua experiência, ela sabe como a salsicha é feita. Na medida em que as entranhas do governo são expostas, essa cozinha mal cheirosa é exposta, ela tem a atitude: "isso não vai dar certo". É como se, já na primeira denúncia, ela soubesse como vai acabar. E ela espera o fim da fita.

É uma maneira aparentemente alheia ao processo, ela não atua, não demite o ministro, não faz um escândalo midiático exibindo um rigorismo heroico, mas uma paciência na qual espera algumas semanas, num "timing" quase repetido e ao fim do qual acontece o inevitável.

Ou seja, a própria lógica das interações chantagistas é capaz de executar o serviço. A faxina não é a presidente quem faz. Quem faz a faxina da República é a própria insustentabilidade dessa lógica mafiosa.

A presidente espera a conclusão do processo e, quando acaba, ela segue o barco. O problema não é curado, ela apenas resolve o episódio. É uma posição curiosa: deixa que o corpo feneça, mas o ambiente da doença não é alvo prioritário.

Mas se não há novidade nessa demissão em particular, o fato de terem havido seis em tão pouco tempo de governo não constitui um fato novo, inaudito?

Sim, mas é uma novidade atenuada pela reposição. A margem de manobra para fazer dessa novidade uma verdadeira novidade é muito reduzida, porque não altera a cultura e o ambiente que produzem ministros vulneráveis a acusações tais que sua permanência se torna impossível.

As demissões não alteram o cenário. Não alteram o fato de que é um governo de ampla coalizão, com partidos divididos em amplas facções.

Mas esse não é um problema da coalizão em si, certo?

Não, é da natureza da versão que o presidencialismo de coalizão adotou a partir da redemocratização. Isso introduz um viés conservador na política que é quase invencível. A mecânica da coalizão exerce sobre a política o efeito conservador. O âmbito da inovação política é muito pequeno, porque é uma política que em grande medida tem que estar a serviço da manutenção da coalizão, uma coalizão que se repõe.

O principal objetivo da coalizão não é viabilizar governo com determinados programas, é permanecer enquanto coalizão, tem um interesse própria na autoconservação. É essa prioridade da autoconservação que produz esse efeito conservador na política.

O ponto que eu acho importante é que há uma operação da política o tempo todo na gestão dessa coalizão. Não é fácil manter uma coalizão dessa, e tanto que ela dá mostra de que, apesar de ter enorme maioria na base, não é confiável.

O governo, no fim, faz em grande medida um esforço de autogoverno, de governar a si mesmo.

Qual seria a saída?

Não sei nem sei se há saída, se depende de um truque genial de invenção institucional. Isso tem a ver também com dinâmicas sociais e culturais de longo prazo. Tem a ver com despolitização social grande, com persistência de partidos políticos que são agência de captura de sufrágio, e não instituições de socialização e politização...

A política sugere a imagem de uma coisa descolada, autárquica, mais autarquia e menos representação.

A oposição colabora para esse cenário?

É muito difícil fazer oposição a esse modelo político.

O PT fez ao FHC, e o modelo era o mesmo.

Mas fundamentalmente porque havia um partido político que ainda não era parte sistêmica da cultura da grande coalizão. Partido cuja energia oposicionista estava sustentada na crença de que era um partido da sociedade, que fazia um bom assalto democrático ao governo oligarquizado. Era um ator político que também era um ator social. Não existe mais isso.

Tirando esse fato que você bem lembrou, é um ambiente ruim, porque a grande coalizão é porosa, é como se ela fosse ilimitada. Não se põe o problema da coalizão mínima necessária para vencer. Ela é expansiva.

O exemplo é o PSD, que é um dreno na oposição. Sujeitos políticos entram num partido que não é nem de centro nem de esquerda nem de direita e deixam de ser a ponta visível de uma oposição conservadora de direita a um governo determinado.

Tem que haver uma oposição conservadora, temos que ter o espectro todo representado. O sistema da grande coalizão absorve e deixa pouco espaço para quem fica de fora.

E José Serra, que...

Esse é um caso curioso. Serra foi de certo modo vitorioso, porque tem uma expressão eleitoral com quase 40 milhões de votos. Isso não é pouca coisa, é um capital político extraordinário.

Mas o que a oposição faz com esse capital político? Como o interpreta? É como se fosse algo instantâneo que se esvai no momento seguinte à eleição.

Há uma oposição que não está à altura de seu próprio sucesso eleitoral. A oposição tem que ser capaz de formular objeções substantivas à política em curso no país.

É patético que a oposição se limite a ler um recorte de jornal no púlpito do Senado. O ator político precisa interpretar, sugerir, exercer inteligência sobre essas coisas.

Nesses dez primeiros meses de governo Dilma, o sr. identifica alguma agenda que lhe seja própria?

O que estou chamando de conjuntura passiva tem a ver com esse âmbito pequeno da política, mas não significa dizer que outras coisas não estejam ocorrendo fora desse retrato 3 x 4.

Há uma gestão da política macroeconômica, uma política voltada para a redução dos juros. Há uma orientação específica, uma concepção sobre como o país deve tocar sua própria vida econômica diante de uma crise internacional.

Aí há realmente escolhas importantes. Escolhas políticas, estratégicas. Aí sente-se que há um governo, uma direção, não é uma loucura, uma aventura.