quarta-feira, 23 de maio de 2012

Nomes próprios

(Versão ligeiramente aumentada de artigo publicado no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 20/05/2012, com o título de "Chamando as coisas pelo nome") Há coisa de algumas semanas, um personagem sombrio, egresso do esgoto da memória nacional, deu seu testemunho a respeito do que andou a fazer durante a vigência do regime de exceção, implantado no país nos idos de março de 1964. Ex-delegado de polícia, o personagem ganhou notoriedade pela força de suas revelações sobre torturas, assassinatos e ocultamento de corpos de militantes da resistência ao descalabro. O livro encontra-se nas boas casas do ramo, e deve ser lido por quem tem estômago forte e um mínimo de apego à memória histórica. Isso, independente do grau de veracidade das revelações. Se apenas, digamos, 10% do que diz correspondem à verdade, o efeito é estarrecedor. O saudoso deputado Ulysses Guimarães bem sabia do que estava a falar quando, nos animados anos de 1985/86, declinou seu ódio absoluto às ditaduras. Se vivo estivesse, e houvesse lido o relato do abjeto personagem, teria ali encontrado fartos motivos para sua aversão. Uma ojeriza que incidia sobre a experiência de um regime que fez do suplício e da eliminação física uma prática e uma ameaça correntes, além de meio de sustentação. Não é preciso aderir ao modismo das teorias a respeito da “bio-política” para reconhecer que regimes políticos são inteligíveis pelo que fazem – ou permitem que se faça – com os corpos físicos e biológicos de seus súditos. Regimes, por exemplo, cuja sustentação exige o suplício e o assassinato de oponentes têm tradicional acolhida conceitual na história do pensamento político: são regimes despóticos, tiranias e estados de exceção. A Comissão da Verdade, instalada há poucos dias pela presidente Dilma Roussef, tem diante de si um desafio e uma oportunidade decisivos para a fixação de uma narrativa a respeito de história recente do país, não limitada pelos efeitos de silêncio provenientes do antigo regime e de sua cultura renitente. Há duas ordens imediatas de objetivos, para a fixação de tal narrativa, de natureza incontornável: (i) elucidar, tanto quanto for possível, aos parentes, amigos e ao país o paradeiro dos desaparecidos e (ii) desfazer a funda assimetria instituída pelos termos da anistia, que tornou públicos os nomes e os atos dos presos políticos e ocultou os de seus algozes. O primeiro item parece ser auto evidente. O segundo exige consideração mais detida. A anistia concedida em 1979 abrangeu, além dos então presos políticos, possíveis perpetradores de “crimes conexos”. Pelo eufemismo, estavam cobertas as ações do aparelho de repressão à dissidência política. Dessa forma, torturadores, comandantes de centros de informação e de tortura, perpetradores de atentados, entre outros, ficavam a salvo de posteriores implicações penais. A assimetria reside no fato de que a anistia concedida ao primeiro grupo – opositores ao regime -, por razão lógica, só pode ser concedida aos que reconhecida e publicamente praticaram atos julgados, pelo regime vigente, como atentatórios à segurança nacional. É claro que isso não impede que a eventual descoberta posterior de ocorrência de ato dessa natureza tenha como implicação a aplicação da anistia. Mas o fato é que a viabilidade do usufruto da anistia por parte da esquerda exigia a ostensão personalizada dos beneficiados. Os perpetradores de “crimes conexos” foram agraciados por uma anistia generalizada, inespecífica e despersonalizada. Suas identificações não foram definidas como necessárias para o usufruto do perdão. Trata-se, é evidente, de assimetria forte e apenas mentes paranoicas podem supor que a possível reposição da simetria seja algo aparentado a “revanche”. Mas, além desses dois objetivos há um terceiro fator, uma valiosa oportunidade para avançarmos na elucidação da natureza do regime vigente no país entre 1964 e 1985. Em outros termos, mais do que o inestimável serviço de inscrever na memória nacional os nomes e os paradeiros dos desaparecidos e de seus verdugos – em seus respectivos nichos, é evidente -, trata-se de por à disposição dos brasileiros novos elementos para interpretar seu passado recente. O efeito principal poderá ser o da elucidação a respeito do que significa um regime de exceção e a fixação do fato de que os que ocuparam a sua direção devem ser chamados pelos nomes que merecem, segundo o bom e velho léxico do pensamento político: ditadores, e não “presidentes”, como se pudesse haver alguma analogia com os que ocuparam a direção do país por força de procedimentos legítimos. Independente do juízo que se possa fazer a respeito de Dilma Roussef como chefe de governo, seu gesto como chefe de Estado, ao criar e empossar a Comissão da Verdade, inscreve-se em um dos momentos nobres da história republicana. A qualidade da peça lida pela presidente e a condensação política presente no ritual – mais do que completo e generoso, a ponto de incluir um presidente indigno e impedido – parecem à altura do fato nada trivial de termos na chefia de Estado – e no comando supremo das Forças Armadas – alguém que sentiu em seu próprio corpo o que significa uma ditadura. O consenso reunido representa o reconhecimento desse aspecto crucial. O desconforto dos chefes militares na cerimônia, mostra, lamentavelmente, o quanto as forças sob seu comando têm dificuldade em se distinguir do que foi feito por alguns de seus antecessores. A cena beira o absurdo, pois afinal nada há no comportamento corrente dos militares brasileiros que autorize temor corporativo diante das atribuições da Comissão.

terça-feira, 17 de abril de 2012

O senador, a cáfila e os tribunais

Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás do jornal Estado de São Paulo, em 15/4/2012)
Se a identidade nacional de uma população for definida por suas práticas mais usuais, pode-se dizer que o brasileiro é, antes de tudo, um telespectador. A medida de exposição diária ao veículo supera a quantidade média de horas passadas pelas crianças brasileiras, a cada dia, nos bancos escolares. Se fosse eu um paranoico amador, diria que o conteúdo veiculado está a serviço do propósito de transformar os cidadãos do país em uma cáfila de oligofrênicos cívicos.
(Nota metodológica: por ignorar qual seja o coletivo de “oligofrênicos cívicos”, optei por “cáfila”, que me parece menos ofensivo do que “vara” e mais apropriado do que “alcatéia” ou “enxame”; espero não ser molestado pela Sociedade de Proteção dos Camelos)
Não sei se há propósito na coisa, mas isso é irrelevante. O que parece ser incontroverso é o fato de que no jorro televisivo, o espaço dedicado à informação política resume-se a poucos minutos dos jornais intercalados em meio ao que interessa – as novelas – e a alguns minutos a mais para os noctívagos, nos jornais do fim da noite. Da qualidade da informação, pouco há que falar: pouquíssimo texto, abundância de lugares comuns, imagens agressivas. Sobretudo denúncias, já que o animal telespectador que se quer fabricar deve ser um vingador vicário, adicto à droga inscrita na dose diária de escândalo que lhe é ministrada.
O civismo do personagem deve confinar-se na indignação instantânea, que fenece no próprio ato de expressão, imediatamente encoberta pelo turbilhão de imagens a respeito de assuntos diversos. Em plena “sociedade da informação”, são os ecos do padre Antonil, importante cronista colonial, que se insinuam, ao falar, no século XVIII, das crianças criadas nos engenhos de açúcar “como tabaréus, que nas conversações não saberão falar de outra coisa mais do que do cão, do cavalo, e do boi”.
Mas, mesmo supondo que as energias cognitivas médias do país estejam em estado de deflação - e que passemos grande parte de nossos trabalhos e dias a falar do “cão, do cavalo e do boi” – há coisas que não podem deixar de ser percebidas. Não há como imaginar que os brasileiros sejam, por natureza, menos inteligentes do que outros povos. Nesse sentido, é inacreditável pretender sustentar que o turbilhão que envolve o senador Demóstenes Torres é extrínseco ao enredo que o constituía, até o momento de sua caída em desgraça, como campeão da direita brasileira e virtual candidato à Presidência da República.
Seu ex-partido – o quase ex-DEM – é formado por experientes expoentes da política tradicional brasileira, que têm noção precisa a respeito do que deve ser a vocação da política. É pouco crível que ao menos parte dos elementos, digamos, biográficos do senador Demóstenes fosse desconhecida de seus pares mais importantes. A cultura política que paira sobre o estado do Goiás, e parece vincular em uma rede pluripartidária todo o espectro da representação política à um circuito criminoso, não é goiana, sua linguagem e sua gramática podem ser compreendidas em diversos cantos do país. E nesses cantos, entre próceres-operadores de outros partidos, há os que pertencem à agremiação que tinha no senador Demóstenes, destemido e implacável campeão.
Assim como Nelson Rodrigues definia os tarados como “homem normais pegos em flagrante”, os correligionários de Demóstenes Torres, no âmago de suas almas, devem concebê-lo como um “senador normal pego em flagrante”. Sua desgraça consiste exatamente no flagrante. É evidente que é um erro generalizar a proposição, mas será ingenuidade desconhecer a plausibilidade do mantra. O caso Demóstenes é expansivo: a mesma rede se apresenta a alguns insuspeitos e a outros nem tanto assim. A rede é viscosa e sua pregnância não reconhece distinções partidárias. O efeito da dispersão – ou da onipresença da relação entre alta criminalidade e alta política – apresenta-se em uma percepção pública, cada vez mais comum e consolidada, de que os agentes públicos apanhados em conversas estranhas são “homens normais pegos em flagrante”. O flagrante aparece como capricho; como azar e como descuido que revelam a normalidade das coisas.
Se o espectro do Direito Penal ronda a política, os tribunais, de modo necessário, convertem-se em arenas decisivas, não apenas para a sentença devida, mas para a elucidação do que está a se passar. Graças a inteligente e oportuna intervenção do Presidente do Partido dos Trabalhadores, aprendemos que o evento Demóstenes – e toda a infestação que o acompanha – possui, digamos, propriedades compensatórias com relação ao estrago de 2004. Com a palavra o STF, que, assim, cumpre tripla função: a que lhe é própria – a de julgar -; a de dirimir disputas políticas e a de explicar o país para os telespectadores. Do jeito que a coisas seguem, as sentenças do STF qualificam-se como itens bibliográficos obrigatórios para quem quer entender a normalidade do país.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Por que não uma república de ateus?

Renato Lessa
(Texto publicado no Suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 4/3/2012, com o título de "Coalizão dos céus?")

Um de meus queridos irmãos, aos seis anos de idade, sonhou que o pai havia se mudado para a casa do vizinho, logo a seguir incendiada, sem sobreviventes. Se todos os sonhos tivessem tal índice de opacidade, a psicanálise teria se tornado uma profissão inviável e a Interpretação dos Sonhos, de Freud, uma obra de ficção indecifrável. Afinal, tratou-se de um sonho que portava consigo mesmo a própria interpretação. Pois bem, vida que segue, a recentíssima nomeação do senador Crivella, prócer da liga evangélica, para o estratégico posto de Ministro da Pesca, possui complexidade assemelhada a do sonho de meu irmão. Assim como há fatos que contém sua própria metamorfose em piada, a nomeação clerical também traz consigo sua própria interpretação, de declinação tediosa.

Assim como o país não prescinde de um governo que “funcione”, o governo precisa de uma “base” segura para enfrentar a oposição e cumprir seu programa. Duas suposições – além da premissa-mãe de que o país vive em estado permanente de oligofrenia cívica - são apresentadas como se auto-evidentes fossem, a de que governos são “mecanismos” que dispõem de um “funcionamento regular”, e não resultado de escolhas e materializações de valores, e a de que há no país uma oposição política e parlamentar aguerrida, a ameaçar programas de governo, sem os quais o país colapsa. A pesca sob a égide evangélica é, pois, um esteio do bom governo e da normalidade nacional; feitas as contas, o governo pode “funcionar”. Não se contabiliza, contudo, no fabricar das salsichas, danos produzidos pelo próprio processo de obtenção de sustentabilidade sobre a efetividade e a qualidade do governo. A assim dita base aliada, em estado de irredenção latente, quando não em rebelião aberta, exige tanto precioso tempo para “articulação”, quanto emprego ininterrupto de escolhas auto-interpretadas.

Observadores técnicos da montagem de governos de coalizão dispõem-se sempre a apaziguar os espíritos. Sustentam que isto tudo é normal; que do Togo à Dinamarca, em não sei quantas séries históricas, ocorreram governos de coalizão, nos quais a partilha do poder é condição para sossego legislativo por parte dos governantes. Tudo, portanto, é normal, e sempre há casos piores. Italo Svevo, em um pequeno e delicioso conto, descreveu diálogo havido entre infelizes usuários de um bonde que circulava próximo a Seveso, no norte da Italia, com atrasos e interrupções inacreditáveis. Quando o bonde, por fim, aparecia, sempre em ocasião e em horário caprichosos, os passageiros comentavam entre si a respeito de notícias ainda piores sobre atrasos do expresso da Sibéria ou da linha marítima Genova-Nova Iorque, com lapsos muito maiores. No fundo, era uma felicidade viajar no bonde de Seveso.

A arte da comparação, com frequência, dá azo à inveja, mas não raro proporciona também paz de espírito. O filósofo Hans Blumenberg, certa feita, usou em belo livro a expressão “espectador incólume”, inspirada em comentário de Michel de Montaigne que admitia não ser impossível usufruir de certa sensação de alívio na posição de espectador de uma calamidade: ao mesmo tempo que o sofrimento das vítimas produz empatia, de forma quase imediata faz sobrevir alívio por não ter estado na mesma condição. Diante do naufrágio alheio, pena e sentimentos sinceros pelo infortúnio e alívio pelo desfrute de incolumidade.

Michel de Montaigne vem bem a calhar. Coevo do massacre de São Bartolomeu, no qual a monarquia católica francesa massacra em 1572, dezenas de milhares de huguenotes, Montaigne foi um dos primeiros a indicar o horror da religião de Estado. Outros, como Paolo Sarpi e Pierre Bayle, serão no século XVII, ainda mais radicais: uma república de ateus é não só viável, mas pode ser uma condição necessária para a proteção contra a intolerância religiosa. Trata-se de uma tese que pode chocar o leitor, pela aparente ausência de espiritualidade, mas pode ser interpretada de modo inverso: a garantia de incolumidade diante do que creio só pode ser dada se sou protegido da intolerância promovida por outras crenças. Só pode fornecer tal garantia um Estado indiferente a todas as crenças e, neste sentido, desespiritualizado.

A unção ministerial do senador Crivella, para além do que possui de auto-evidente, é portadora de presságios ainda mais preocupantes do que o usual. Se associada a episódios recorrentes da ação da liga evangélica na política nacional, sugere ameaça à república laica. Em iniciativa recente o líder da Frente Parlamentar Evangélica, propôs decreto legislativo para proporcionar “tratamento psicológico” a homossessuxais. É o caso de perguntar: é razoável que crenças particulares constituam base para legislação e políticas públicas? Se o clero católico, por exemplo, não admite o uso de preservativos e insiste na tese de que a vida sexual é um estorvo necessário à procriação, que diga isso do púlpito das suas igrejas, mas não transforme a doutrina em política pública, o que seria próprio de um estado teocrático.

As denominações tradicionais têm, a bem da verdade, entendido isto e têm-se mantido no limite do cuidado espiritual de seus adeptos. É o mercado religioso emergente, heterodoxo não apenas em matéria de doutrina religiosa mas sobretudo nos domínios penal e tributário, que vem se mostrando mais agressivo do que católicos e protestantes tradicionais, em pelo menos duas direções claras: no apetite patrimonial e na maximização de poder político e social. A república tem sido tolerante diante dessa pós-secularização perversa, alimentada pelo alarmante déficit educacional e cultural das classes populares, pelo qual ela é a principal responsável. O controle das almas dá passagem à captura do voto, ao acesso a concessões públicas e à expansão patrimonial, política e financeira. O volume e a dimensão dessa calamidade em curso confere a seus operadores ares de respeitabilidade e imprescindibilidade. O pior de tudo é que a moeda de troca à fidelidade política da liga evangélica excede o prêmio habitual: pode estar em jogo um dos pilares da república democrática, o princípio da laicidade.