quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Filosofia Política: para quê?


Renato Lessa[1]


A “Política”, enquanto campo de conhecimento, mantém uma relação de identidade nominal com o objeto sobre o qual se debruça, qual seja, a política desprovida de aspas. Em termos diretos, trata-se, para o praticante da “Política”, de estudar a política, em uma convergência entre nome e coisa há muito estabelecida por Aristóteles, em duas de suas obras primas, a Política e a Ética a Nicômano, nas calendas gregas de tempos menos aziagos. Tal redundância confere à reflexão política – suspendamos agora as aspas – um lugar singular entre as disciplinas que, de uma forma canônica, compõem o conjunto das assim chamadas ciências sociais.

Com efeito, se nada proíbe a antropólogos e sociólogos o exercício de uma auto-observação profissional e sistemática a respeito de suas próprias disciplinas - materializadas em uma “Antropologia da Antropologia”, ou em uma “Sociologia da Sociologia” – é impossível afirmar que existam domínios, designados pelos termos “sociologia” e “antropologia”, que se imporiam como objetos obrigatórios a ser considerados pelas disciplinas que portam os mesmos nomes. Em suma, nestas áreas, nada há de semelhante à sentença que sustenta que “o objeto da ‘Política’ é a política”. Em termos mais diretos, nenhum antropólogo sustentará que a “Antropologia” define-se pelo estudo de algum objeto designado pelo termo antropologia, assim como seria assombroso encontrar sociólogo que defenda que a “Sociologia” o faça com relação a algo que se designe como sociologia. Já vi na vida coisas muito estranhas, mas não a tal ponto.

Ao considerar essas diferentes, digamos, disciplinas – Antropologia, Política e Sociologia – não tenho por meta estabelecer prioridades. Sei que as crenças profissionais dos praticantes destes campos incluem grande dose de etnocentrismo, vá lá, científico. Não sou praticante deste jogo, e reservo minha carga inevitável de etnocentrismo para outros assuntos. Meu argumento, neste pequeno ensaio, visa tão somente estabelecer distinções, e não hierarquias de relevância, com vistas a poder dizer duas ou três coisas a respeito das particularidades do conhecimento político.

Se algum juízo de vantagem puder ser afirmado, este parece favorecer antes a Antropologia e a Sociologia, e não a Política. A razão é simples. Por crer na identidade plena com seu objeto, a Política, enquanto campo reflexivo, dá como certa e indisputada a existência de objetos políticos que, por definição, caem sob sua jurisdição. Não é por outra razão que o “politólogo médio” tende a especializar-se no estudo das instituições políticas. Tal inclinação, menos do que natural, resulta de uma crença profissional: a de que politólogos estudam “objetos políticos”.

Nossos colegas antropólogos e sociólogos tendem a representar seus campos cognitivos mais como perspectivas de observação do que como domínios disciplinares, detentores de jurisdição preferencial sobre certos objetos. É mesmo o caso de ler – ou reler – a pequena obra prima de Peter Berger, Invitation to Sociology, sabiamente traduzida entre nós sob o título de Perspectivas Sociológicas (Petrópolis: Editora Vozes, 1976). Ali encontraremos, para além das razões da vocação específica do cientista social, a defesa da ideia de perspectiva, como parte inerente ao processo de conhecimento social. Isto significa dizer que qualquer objeto ou assunto pode, em princípio, ser enquadrado a partir de perspectivas sociológicas ou antropológicas, sem que os objetos desta, digamos, ação perspectivada sejam inerentemente “sociológicos” ou “antropológicos”. Que o diga o mais brilhante dos sociólogos portugueses contemporâneos, José Machado Pais, autor de pungente e inspirado estudo sociológico sobre a solidão, com base em observações de pet shops, lavanderias noturnas, bêbados, vagabundos, imigrantes e moribundos (ver Nos rastos da solidão: deambulações sociológicas, Porto: Ambar, 2006).

Os politólogos – e refiro-me aqui aos “politólogos médios” ou típicos, treinados nos laboratórios intensivos de institucionalismo e de mensuração – recusam tal ideia de perspectiva e aderem à crença de que há objetos políticos por natureza. Parlamentos, partidos, políticas públicas, eleições, entre outros, constituem seus objetos naturais. E não vai aqui qualquer juízo quanto à qualidade do que faz a “Política” – ou Ciência Política – orientada para estudos institucionais e muito menos quanto à relevância indisputada dos temas. Há excelentes trabalhos institucionalistas, de leitura recomendável e útil para o estudioso das ciências sociais e da história. O que aqui está em questão são as características do paradigma, e não a qualidade específica de pesquisas particulares. Um paradigma que, com frequência, reduz a riqueza e a variedade da vida social e da ação humana a “variáveis” estritamente políticas e institucionais e a cálculos estratégicos. Houve mesmo, por exemplo e para citar um paroxismo, quem interpretasse o desastre brasileiro de 1964, com a queda de João Goulart, como decorrente de uma crise no interior do parlamento.

A desvantagem do conhecimento político, no que diz respeito à naturalização de seus objetos, possui, no entanto, fortes compensações. A principal é a da natureza normativa – isto é, prescritiva ou propositiva – desta forma de conhecimento. Mesmo politólogos mais aderidos à cultura intelectual da positividade científica, e do respeito contrito à vida como ela é, não escapam do abismo da prescrição. Não há, por exemplo, especialista em sistemas eleitorais que não tenha o “seu”, aquele de sua predileção. Eu mesmo, quando frequentei este campo, andei a tecer loas ao sistema eleitoral praticado na República da Irlanda e na Câmara Alta da Tasmânia! Cheguei mesmo a argumentar das vantagens de sua adoção no Brasil. Tal grau de voluntarismo opinativo não será encontrado, por exemplo, entre etnólogos que se ocupam da análise de sistemas de parentesco em sociedades “tradicionais” ou “primitivas”, tal como se dizia antigamente. Não conheço nenhum especialista em sistemas de parentesco que tenha iniciado movimentos de reforma das relações de parentesco, nas sociedades por ele estudadas. Imaginem só, a bela proposta que disto resultaria: “sugiro alterar o fundamento matrilinear da sociedade Canela, com a correspondente adoção das regras patrilineares dos Mundukuru”. Seria uma bela peça de humor, mas, de certeza, péssima Antropologia.

Como explicar e – o que é mais interessante – justificar o componente normativo do conhecimento político? A resposta exige menção a outro traço distintivo da Política – como campo reflexivo – com relação às demais Ciências Sociais. Enquanto a Antropologia e a Sociologia são de extração recente, ou seja, começam a constituir-se a partir de meados do século XIX, a “Política” resulta de um movimento reflexivo contemporâneo à invenção da política como atividade humana. Em outros tempos, pensamento político e ação política foram, em sua origem, expressões culturais de um experimento – ocorrido entre os gregos durante o século V anterior à Era Comum – marcado pelo estabelecimento de uma distinção entre Physis – Natureza – e Nomos – regra ou lei. Tal distinção é crucial para o estabelecimento de um âmbito político, no qual a ação humana “faz diferença”, ao contrário dos desígnios da Natureza, sobre os quais tal ação não é “causa eficiente” ou motora.

A distinção foi posta inicialmente pela filosofia desenvolvida pelos sofistas, como depreendemos do que restou de pensadores tais como Protágoras, Górgias e Antifonte. Mas encontraremos a oposição, de forma inequívoca e direta, em Aristóteles, em vários aspectos um “inimigo” dos sofistas. É o que pode ser inferido de sua definição – posta na Ética a Nicômaco, uma obra-prima do engenho humano – da ideia de deliberação como atividade humana que incide sobre assuntos incertos e cujos efeitos são indeterminados. Não é acidental que o tema da deliberação tenha sido central para a democracia ateniense: ali tratava-se de decidir sobre assuntos que não são estabelecidos por forças naturais, mas pelo engenho humano da política.

Política, nesta chave originária, significa deliberar e decidir, de modo coletivo, a respeito de questões de interesse público. Impossível imaginar que deliberações possam dispensar reflexão a respeito do que se está a deliberar. Pois bem, é justamente tal reflexão, inerente ao exercício da deliberação, que se apresenta como constitutiva de um hábito de pensamento – a “Política” – cuja constituição é simultânea à invenção de seu objeto – a política. Como se pode ver, trata-se de matéria muito antiga e, por isso mesmo, sujeita a inúmeras ressignificações ao longo do tempo. Hoje o que retemos desta forma originária da política – como prática humana – é, na melhor das hipóteses, residual. Mas, por outro lado, há uma característica da “Política” que se mantém, e que é condição mesma para a sua consistência: a combinação entre realismo – ou seja, esforços cognitivos para considerar o que se passa na vida política – e alucinação – ou seja, a imagem de como o mundo poderia ou deveria ser. 

Temo suscitar entre os mais prudentes algum dissabor, ao sustentar que na oposição entre realismo e alucinação é a segunda faculdade do espírito humano que comanda a primeira, e não o contrário. Em outros termos, os gregos, quando deliberavam em suas assembleias, cuidavam de duas dimensões distintas, porém combinadas, da política. Ao mesmo tempo em que discutiam “o que fazer”, com as implicações práticas que disto decorrem, tratavam de deliberar a respeito do “por que” ou “para que” fazer, o que implicava incluir no campo da reflexão política questões absolutamente cruciais, hoje um tanto perdidas de vista, dados os hábitos mentais cientificistas que vigoram: que sociedade queremos? O  que é uma vida boa? O que é o justo? Como vemos, tais questões vinculam a “Política” ao campo maior da Filosofia, o que justifica dizer que o conhecimento politico é “filosofia política”. Esta tem sido, ao longo dos séculos, abrigo de esforços de entendimento daquilo que se passa no mundo da vida como ela é; esforços, contudo, orientados por crenças em desenhos de mundos possíveis e imaginados.

A filosofia política ocupa-se do campo do possível – ou de universos possíveis -  e este é, por definição, mais – muito mais – amplo do que o universo finito da nossa experiência prática. Em grande medida, são os efeitos deste infinito em nós que nos orientam para lidar com os dilemas da nossa inapelável finitude. Bem disse, certa altura, o cineasta e ensaísta alemão Alexander Kluge: para sermos realistas, devemos ser irrealistas. Disse-o no século XX. Muito antes dele, Jean-Jacques Rousseau falou-nos de uma igualdade originária e natural que, segundo ele próprio, jamais existiu, não existe e não existirá, mas que, a despeito disto, dela é imperativo ter uma noção precisa para melhor avaliarmos nossa condição presente.

É mesmo espantoso: ter uma noção precisa a respeito de algo que não existe, para que melhor compreendamos o que existe. Ninguém melhor do que Rousseau – em seu magnífico Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade humana, de  1754 - fixou a ideia de que sem a ajuda da alucinação, não há conhecimento possível do mundo. Ponto para Kluge e para Rousseau, mas nada melhor do que a precisão poética de Paul Valéry para tornar o argumento ainda mais aliciante: o que seria de nós sem o socorro do que não existe?





[1] . Professor Titular de Teoria Política do Departamento de Ciência Política da UFF; Pesquisador 1 A, do CNPq; Coordenador Acadêmico do Observatório dos Países de Língua Oficial Portuguesa – OPLOP/Uff – e do Laboratório de Estudos Hum(e)anos – L(E)H/Uff; Presidente do Instituto Ciência Hoje; Investigador Associado do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa e do Instituto de Filosofia da Linguagem, da Universidade Nova de Lisboa. Membro da Ordem Nacional do Mérito Científico (MCT/Brasil).

domingo, 3 de fevereiro de 2013

1513-2013: uma aproximação ao Experimento Maquiavel

O tema da complexidade parece ser, hoje, apanágio das assim chamadas ciências exatas. De fato, complexos são os sistemas orgânicos e, por sua vez, os inorgânicos nada lhes ficam a dever. Tanto uns como outros são avessos à explicação monocausal e, com alguma frequência, manifestam-se de forma caótica, desafiando a velha crença da modernidade de que a estabilidade das causas é garantia da estabilidade dos efeitos. Há exatos quinhentos anos, na cidade de Florença, Nicolau Maquiavel, homem público e intelectual, concluiu um livro com o título de O Príncipe. Não é exagero dizer que antes dos filósofos naturais – nome que na altura se atribuía ao que hoje definimos como cientistas – terem dado conta da complexidade presente nos fenômenos naturais, o livro introduziu na cultura ocidental o que poderíamos designar como o fato da complexidade, como constitutivo das relações entre os humanos. O pequeno livro foi dedicado ao “Magnífico Lorenzo de Medice”, governante fiorentino e membro da família mais poderosa da cidade. A dedicatória pode sugerir a olhos precipitados um vínculo temático e estilístico entre a obra – ou o “pequeno volume”, tal como o designava Maquiavel – com o estilo literário e político então conhecido como “espelho de príncipes”. O estilo tinha como traço central a enumeração, com frequência por parte de um autor protegido ou patrocinado para tal fim, das qualidades necessárias para o governo de um príncipe virtuoso. Quando não tendia para a bajulação aberta, o estilo, procurava fixar uma coleção de bons preceitos diante dos quais o governante deveria se espelhar. Já na dedicatória a Lorenzo, Maquiavel indica a natureza distinta de seu empreendimento. Embora dedicado a um príncipe, a obra parte de uma curiosa e inovadora premissa. Como o que desculpando-se pela ousadia de dirigir-se a um príncipe como Lorenzo, Maquiavel – que se apresenta como “homem de baixa e ínfima condição”- sustenta que “para conhecer a natureza dos príncipes é preciso ser povo”, assim como “para bem conhecer a natureza dos povos, é preciso ser príncipe”. A natureza do governo, portanto aparece não como fundada na consulta principesca de um catálogo de preceitos morais e religiosos, mas emerge da interação sempre complexa e um tanto imprevisível entre os “grandes” e os “pequenos”. Se a natureza de um povo é constituída pela direção política à qual se submete, o significado do governo do príncipe é melhor revelado pela observação que sobre ele fazem seus súditos, ou suas vítimas. Não sendo, pois, um “espelho de príncipes”, do que trata, afinal, este livro, um dos mais importantes da cultura ocidental moderna? O tema fundamental de O Príncipe é o da complexidade da política e, por extensão, da história. É isto que corre como pano de fundo para o tratamento de diferentes regimes políticos – os principados –, que têm em comum, ao contrário das repúblicas, a presença de sistemas monocráticos e de concentração de soberania. Em obra iniciada em 1513 e concluída em 1517, os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel ocupou-se das repúblicas, tema de grande ancestralidade. A complexidade dos principados não deriva tanto da diversidade de suas formas: há, por certo, os hereditários, os tomados por conquista, os novos, os eclesiásticos, todos eles com características próprias, desafios aos governantes e expectativas dos súditos. Mas, pode-se dizer que há um suporte de complexidade básica que subjaz à variedade das formas políticas, e ele diz respeito do lugar ocupado pela política nos assuntos humanos. Se este é o foco, Maquiavel não pode, por outro lado, ser tomado como um “pensador político”, no sentido de um “especialista” em política. Sua sensibilidade para fenômenos de natureza política foi envolvido por um conjunto amplo de questões e formas de conhecimento, tais como a antropologia – ou um exame da condição humana -, a história, a cosmologia e a filosofia. Para começar, a própria ideia de política – que comparece ao texto não como termo, mais como problema – deve ser clarificada. Os padrões estabelecidos pela Antiguidade – presentes na democracia ateniense e na república romana – fizeram da ideia de política algo que pode ser definido com uma prática de deliberação pública a respeito de assuntos de interesse comum. Se fossemos representar tal prática em termos gráficos, uma linha horizontal seria suficiente. É essa representação que decorre da própria noção grega de isonomia política – ou de equivalência dos cidadãos na vida pública -, presente, como ideal nas repúblicas. A política no experimento de Maquiavel aproxima-se de mais da linha vertical do que da horizontalidade dos antigos. Aqui, trata-se de mostrar que política, na abertura da modernidade, supõe exercício de dominação de um soberano sobre seus súditos, ou dos grandes sobre os pequenos. A nostalgia deliberativa da democracia grega e da república romana cede lugar a um experimento que tem no exercício da dominação um princípio de vertebração da sociedade, sem o qual ela colapsa. Em outros termos, o que torna a sociedade possível é o exercício da soberania: há ordem ali onde se faz clara a determinação de quem manda e de quem obedece. É este o sentido da política: instituir na vida social um fundamento implicado no próprio exercício do poder. O valor e a necessidade desse fundamento podem ser dados pela antropologia de Maquiavel, apoiada, por sua vez, em uma cosmologia precisa. Os homens habitam, tal como no sistema aristotélico-ptolomaico, o domínio sublunar, distinto do padrão cosmológico do mundo supralunar. Este, de acordo com Aristóteles, é constituído por movimentos naturais, perpétuos e necessários. Perfeição e necessidade são seus atributos centrais, e o conceito de “movimento natural”, egresso da física aristotélica, é fulcral: trata-se do trajeto de um corpo na direção de seu lugar natural. Pois bem, o cosmo aristotélico, em seu estrato supralunar, é o espaço por excelência dos movimentos naturais. “Movimentos violentos”, por oposição, são aqueles que dirigem corpos a lugares não-naturais – ou lugares que não são seus por natureza -, o que pressupõe a mediação de um agente que introduz no mundo um princípio de desordem e indeterminação. O cosmo de Maquiavel, tal como ensinado em seu tempo pelos aristotélicos da cidade de Padua, possui tal fisionomia. O mundo sublunar, mesmo que marcado por regularidades físicas, é o lugar natural dos movimentos não-naturais, pela simples razão de que é apenas nesse estrato inferior que podemos encontrar os humanos. A cosmologia dá, assim, passagem à antropologia, e vemo-nos diante da representação maquiaveliana da condição – ou natureza – humana. Não são auspiciosas as imagens que disto se seguem. Não é que os humanos sejam maus por natureza, mas são erráticos nas suas paixões, desejam com frequência melhorar sua condição, são capazes de gestos de grandeza, mas podem odiar, invejar e abrigar ambições descabidas; no limite, são letais. Em uma palavra, não há na natureza humana um substrato mínimo de estabilidade; os humanos devem ser contidos de fora para dentro, até mesmo para que aprendam a conter-se de dentro para fora. Não há em Maquiavel intenção condenatória: para ele essa antropologia é um fato da espécie e manifesta-se por toda parte e por todos os tempos. Se quisermos é este mesmo um princípio de estabilidade: a instabilidade permanente do comportamento humano. Os humanos não cabem dentro de si. Espinosa e Freud bem entenderam, cada um em seu tempo, as implicações da antropologia de Maquiavel: para o primeiro a potência da multidão excede sempre as formas institucionais que a procuram conter; para o segundo, por mais que a civilização exerça sobre nós sua disciplina, a energia pulsional segue vigente e igualmente excessiva. Pois bem, a política é o remédio para a condição humana sempre instável e falível. Tal instabilidade, contudo, tem como um de seus princípios o fato de que tudo que é valioso para os humanos é objeto de inveja e disputa. Tal princípio não pode deixar de afetar a própria política, tornando-a, desta forma, igualmente instável. O próprio lugar do príncipe está, por definição, sempre em disputa; o príncipe não é, além disso, uma exceção antropológica. Ou seja, o princípio de instabilidade é responsável pela introdução continuada de instabilidade. A política é tudo, menos estabilidade consolidada. Falar de política implica pôr-se no universo existencial da incerteza. Este é o mantra da “ciência política” maquiaveliana. Nada mais distante de Maquiavel – e de sua obra mais célebre – do que a pretensão de que foi o fundador de uma ciência, capaz de tornar os fenômenos políticos explicáveis e previsíveis. Basta levar em conta o papel que Maquiavel atribuiu à fortuna – ou o conjunto de fatores fora de nosso alcance, proporcionados pelo acaso – nos assuntos humanos. Para ele, nada menos do que a metade de nossas ações é pautada pela fortuna. Isso vale tanto para o cidadão comum – que se agarra às rotinas do hábito como subterfúgio ao assédio do acaso – como para o príncipe, acossado sempre por inimigos e por amigos invejosos e inconfiáveis. Para o príncipe não há como escorar-se no hábito. O que se lhe impõe, na perspectiva de conservar e ampliar seu domínio, é a ação; uma ação que, diante do imponderável – da imprevisibilidade – da fortuna, exige uma qualidade específica, sem a qual tudo colapsa, a virtù. Não se trata aqui da virtude pregada aos príncipes pelos “espelhos de príncipes”. Não há catálogo de virtudes morais e de preceitos religiosos que nos ensine a lidar como a política tal como ela é, é o que Maquiavel está a dizer. É a capacidade de extrair da fortuna – da indeterminação da vida e da volatilidade da política – um curso de ação positivo. Em linguagem corrente, trata-se de fazer do acaso uma estrutura de oportunidades para novas opções e para a sobrevida e ampliação da capacidade de exercer poder. Quem detém essa capacidade, tão essencial para a política? Ninguém por direito divino ou de casta. A capacidade política – um dos sentidos da ideia de virtù – é sociologicamente cega: ou seja, não há em Maquiavel nada que a defina como monopólio de aristocratas; um condottiere de extração popular bem pode detê-la. Por fim, Maquiavel estabelece premissas importantes para o conhecimento da política. Com efeito, Francis Bacon, um dos heróis da ciência moderna, nele reconhecerá uma inovação teórica fundamental, a de proceder segundo princípios indutivos, tomando por base os exemplos históricos. A política – assim como a história – é vulnerável às artes do acaso, mas pode ser conhecida, em alguma medida. Assim como a natureza se abre à observação do naturalista, os exemplos históricos constituem a “natureza” do historiador Maquiavel. Aprender com os exemplos, com o que fizeram – para o bem ou para o mal – ao longo do tempo soberanos e diversos potentados, verificar as condições nas quais decisões foram tomadas, seus efeitos, etc... Tudo isso forma um grande catálogo de exemplos aplicáveis diante de situações semelhantes. Empreendimento imenso, ilimitado e inacabável. Mais do que isso, sempre vulnerável à imperita coleta de exemplos e à infeliz interpretação. Tudo isso agravado pelo fato de que o conhecimento político é uma exigência da ação política; ele tem o tempo da própria ação, o que lhe imprime imensa falibilidade. Para entender a política é fundamental ler o livro da História. Mas ao lê-lo não há qualquer garantia de infalibilidade. A ciência da política é uma tentativa de conhecimento sistemático daquilo que não se dá a conhecer sistematicamente. É esse o legado de Maquiavel e a sua utopia para o conhecimento humano. Renato Lessa (Publicado no suplemento SobreCultura, da revista Ciência Hoje, em sua versão online - CHOnline -, em 31 de janeiro de 2013)

Leve-me a seu líder

Finda a amarga experiência do segundo turno nas eleições paulistanas, do ano passado, as hostes tucanas foram contempladas com a hipótese de fazer de José Serra, ainda não refeito das dores e das marcas do pugilato eleitoral, presidente nacional do PSDB. Além do espantoso tirocínio que consistiria fazer do mais notável dos derrotados da sigla seu dirigente maior, a hipótese ostentava algo que poderia ser designado pela expressão “perversidade compensatória”, ou “compensação perversa”. Nada como o ânimo dos derrotados para dar força e vertebração a um partido que vem perdendo capacidade de vocalização e direção política dos que se opõem – ou não se entusiasmam – com os hábitos e as artes do governo federal. (Claro está, que a hipótese não era para valer, e consistiu mais em um curioso gesto de desagravo, em cuja composição não estavam ausentes motivações de agravo, para dizê-lo de modo contido). Vida que segue, alguns meses mais tarde, na abertura de 2013, o PSDB volta a por o tema da presidência da sigla, a ser renovada depois da temporada de cumprimento de tabela exercida pelo senador Sergio Guerra, um dos mais importantes quadros tucanos (sem ironia). Desta feita, ao que parece, pretende-se tratar do assunto à vera, sem perversões ou compensações de derrotas heróicas. Ao contrário, trata-se de entronizar um vitorioso contumaz, ao menos nos limites do estado no qual detém domicílio eleitoral: falo, é evidente e pela ordem, de Aécio Neves e de Minas Gerais. É bem verdade que Aécio Neves só concorreu a barbadas mineiras e não teve diante de si a oportunidade de colecionar derrotas em eleições críticas. De qualquer modo, a hipótese Aécio Neves parece fazer mais sentido, na perspectiva de tornar a sigla algo mais do que tem sido nas três últimas eleições presidenciais. Enquanto isso, José Serra pode usufruir do único elogio que seus companheiros parecem ser capazes de a ele dirigir: “não acreditamos que possa sair do PSDB; Serra é PSDB”, e coisa e tal. Com relação a Serra, a perversão talvez não pare por aí, pois há quem sustente sua exportação para o Rio de Janeiro, terra, como se sabe, na qual os tucanos arriscam-se à extinção. Há, é evidente, comicidade na coisa, mas há, ao mesmo tempo, imensa gravidade. Pode uma democracia subsistir sem oposição? Ou melhor, qual a qualidade de uma democracia na qual a oposição de fato é exercida por parte de operadores inseridos na própria coalizão governante, por meio da chantagem e da guerrilha parlamentar? Posta a questão de, digamos, metafísica política, é o caso de dizer: o cargo de líder da oposição no Brasil está vago. O PSDB como maior partido de oposição – segundo critérios ortodoxos (se adotarmos os heterodoxos a palma cabe ao PMDB) – deve ao país não apenas a definição e a ostensão de quem o lidera, mas – o que é mais decisivo – a apresentação de sua versão de país. A série de três derrotas sucessivas, por paradoxal que possa parecer, abrigou a expressão eleitoral do que poderia ser descrito como uma minoria numericamente forte, hoje deserdada e sem direção política. Um prócer internacional que vier ao Brasil e buscar uma conversa com o “líder da oposição” terá dificuldades em preencher a expectativa. Correrá o risco de acabar no gabinete do deputado Eduardo Cunha, esteio das virtudes republicanas nacionais. Como disse, o cargo oficial está vago e, mais do que isso, desconhece-se a versão alternativa de país a ser apresentada por tal sujeito vazio, ou não-existente. Trata-se, pois, de inventar um líder e de, como candidamente disse o Senador Sergio Guerra, definir um “discurso”. Ressalvada a seriedade das preocupações de Sergio Guerra, a meta da definição de um “discurso” soa demasiadamente “cortoplazista” e colada no ciclo eleitoral. O olho na urna é inevitável, pois trata-se de alinhar para a corrida de 2014, mas parece haver lacunas mais graves no campo tucano do que a “falta de discurso”. A aposta errada nas virtudes corrosivas do desastre do mensalão, que seria capaz de produzir estragos por seus efeitos naturais, sem a necessária suplementação de uma estratégia de política positiva, associada ao pudor em fazer a defesa da parte que cabe ao PSDB no processo de constituição do Brasil contemporâneo, reduziram o partido à expressão de atos individuais de política moralista e vestálica. Muito pouco para a complexidade do país. Mais do que afinar discurso, o que se exige é a composição da própria partitura, ou seja, a apresentação aos cidadãos brasileiros de uma versão alternativa de país, distinta da que está em curso. Isso, se a política e o país forem minimamente levados a sério. Se não, como de hábito, encomende-se um discurso a algum profissional do ramo, faça-se de um esperto apresentador de TV candidato tucano a governador do Rio de Janeiro e, em caso de vitória nacional tucana em 2014, chame-se o PMDB para compor o governo. Se for esse o pacote, não faltará quem diga: melhor deixar como está. Renato Lessa (Publicado em 13 de janeiro de 2013, no suplemento Aliás do jornal O Estado de São Paulo)

Desventuras do país legal

Em meio à descoberta generalizada da existência da curiosa ciência da dosimetria, os brasileiros foram informados do mais recente contributo do Poder Judiciário para o insano problema da superlotação carcerária. Um conhecido empresário goiano, de alcunha Cachoeira, apesar de condenado em ação penal referente a um pormenor heterodoxo vinculado a seu imparável empreendedorismo, foi agraciado com regime de prisão aberta, em função da tal dosimetria. Certamente contribuíram para a moderação penal a reputação ilibada e a baixa periculosidade do personagem. Em função da superlotação carcerária, a pena, que o obrigaria a passar as noites em estabelecimento prisional, foi transformada em prisão domiciliar. Peço que não me tomem como um, digamos, “barbosista” nestes assuntos, mas, dada a qualidade domiciliar do apenado, o termo “prisão domiciliar” soa como escárnio. É possível que o personagem retorne à hospedagem pública compulsória, por efeito de algum recurso ou de outra ação penal, já que, ao que parece, seu empreendedorismo é tentacular. Mas não deixa de ser notável a perspectiva do pleno regresso ao conforto do lar, como desfecho possível de longa carreira de serviços prestados à atividade de ganhar dinheiro, sem apego a formalidades. Um dos aspectos mais notáveis do ambiente no qual a notícia foi divulgada foi o do relativo apagamento da memória coletiva das aventuras e desventuras do personagem. O termo “Cachoeira”, hoje secundário nas coberturas jornalísticas, refere-se prioritariamente às escaramuças em torno da Comissão Parlamentar de Inquérito, que o ostenta como forma de designação. O enredo político-empresarial-penal condensado biograficamente no personagem saiu de cena; já não está nas primeiras páginas e, por vezes, desapareceu na cobertura diária. A quase invisibilidade dá mesmo o que pensar. Antes de tudo, efeito da concorrência desleal do drama da ação penal 470. O julgamento do “mensalão” exerceu sobre nossa capacidade de observação do país um efeito de ofuscação, pelo qual a fisionomia de outros aspectos, também dramáticos, ficou encoberta pelo excesso de luz. Ao que parece, o país deve ser monotemático e sequencial na reflexão sobre suas agruras: um drama de cada vez, até que o subsequente o soterre e ocupe o frenesi da cobertura jornalística. Há, pois, um inegável efeito de camuflagem na coisa, o que não significa supor que a ela – a coisa – seja urdida por alguma inteligência maligna e onipotente. A invisibilidade do evento matricial decorre ainda do que se passa no âmbito da Comissão Parlamentar de Inquérito. Ali trata-se menos de inquérito do que de um experimento aberto de combate político, no qual retaliações e proteções abundam na inacreditável conclusão do relator. A Comissão, ademais, reforça a tradição de que a arena de conflito entre governo e oposição não é má hospedeira da chicana de especialistas em Direito Penal. Muito teríamos a ganhar, em termos analíticos, se buscássemos associar em uma mesma interpretação os eventos da ação penal 470 ao procedimento penal imposto ao empresário goiano. Juntos compõem uma fábula maior, delineada pelo tema da ilimitação. Dois macro processos marcam a fisionomia do Brasil contemporâneo: (i) uma expansão acelerada do mundo público, aqui compreendido como universo que inclui não apenas a complexidade e crescimento do Estado, mas também aquilo que os politólogos denominam como “mercado político”, um termo, na verdade excelente; (ii) uma expansão igualmente acelerada das oportunidades econômicas, aqui entendidas como universo de ações voltadas para a maximização crescente da acumulação de patrimônio. É inegável que tais processos, mais do que concomitantes, são convergentes e complementares. Nunca foi tão verdadeiro o juízo de que a ativação econômica afeta a estrutura das oportunidades políticas. Pelo primeiro processo, à complexidade e crescimento do Estado, soma-se a expansão da atividade política, favorecida após 1985 pelo colapso da fancaria de 1964, visível da afirmação de um amplo multipartidarismo, da consolidação de um eleitorado gigantesco e do princípio da bienalidade eleitoral. Olhos cândidos verão nesse processo uma comovente consolidação dos princípios da representação política. Infelizmente não se pode descartar o travo amargo da suspeita de que a expansão da política abriga de modo parasitário a expansão de negócios de captura, de intermediação e de aberta predação. Pelo segundo processo, a atividade de “ganhar dinheiro” ganha foros de princípios de primeira filosofia, ou de “variável independente”, como sustentam poetas dedicados ao estudo da política. Tal expansão, a partir de certa escala, implica o aproveitamento de oportunidades de acumulação abertas por decisões governamentais, tanto de alienação do patrimônio público como via programas de “aceleração do crescimento”. O capitalismo político brasileiro resulta da associação desses dois princípios. Ambos fazem da ilimitação da acumulação – política e/ou patrimonial – um verdadeiro ideal regulatório. Em termos mais diretos, maximização de poder e maximização de dinheiro – associadas ou independentes – mantêm no Brasil relações incertas com o âmbito da legalidade. A ação penal 470 – para além dos dramas pessoais que ela envolve – lida com os efeitos da ilimitação no âmbito da política. A ação penal que condenou o empresário de Goiás lida com os efeitos da ilimitação no domínio da atividade econômica. Em ambos os casos, trata-se de considerar a seguinte disjuntiva: princípios de legalidade devem se sobrepor aos apetites políticos e econômicos, ou a vitalidade e a espontaneidade dos empreendedores – políticos e econômicos – deve criar sua própria esfera jurídica e moral. Renato Lessa (Publicado em 27 de novembro de 2012, no suplemento Aliás do jornal O Estado de São Paulo)

A refundação tucana

Entre as muitas atividades do espírito humano, tocadas pelo condão da fantasia e da imaginação, a hermenêutica eleitoral ocupa lugar de destaque. Embora haja quem julgue ser possível uma ciência das eleições, capaz de estabelecer a grande explicação que pulveriza interpretações imperitas, a coisa segue sujeita a imparável jogo opiniático. Diga-se de passagem que são tantas as dimensões associadas ao processo e ao resultado eleitorais, que, a depender do lugar no qual fincamos a ponta seca de nossos compassos, isto é das nossas crenças, apostas e hábitos cognitivos, a geometria que daí decorre é forçosamente variada. A pluralidade das interpretações, contudo, não deve ser vista em chave negativa. Se, por um lado, ela é incapaz de asseverar com objetividade o sentido do que, de fato, se passou, por outro ajuda a elucidar algo a respeito da natureza dos intérpretes. Em outros termos, por mais estapafúrdia que seja uma intepretação, ela pode ser esclarecedora a respeito do seu sujeito, ainda que seus predicados sejam pífios. Todo este arrazoado veio-me à mente ao ouvir e ver – e peço já desculpas pela abrupta passagem à vida como ela é – o ex-deputado José Aníbal, do PSDB, em programa hiper-noturno, a debater com o deputado Candido Vacarezza, do PT, no domingo do segundo turno das eleições municipais. Vale a pena proceder a uma etnografia breve do evento. Vacarezza mal cabia em si. Afetava um estado de graça tão pleno, que nele cabiam até mesmo manifestações de prudência e humildade e, o que é extraordinário, o reconhecimento da importância da oposição. Mas, se o caso é falar dos tucanos, observemos o ex-deputado José Aníbal e o que, na altura, trouxe aos telespectadores. Nada menos que que uma visão triunfal do desempenho tucano, foi o que José Aníbal proporcionou como exórdio de sua interpretação do ato eleitoral. Segundo sua peculiar hermenêutica, houve vitórias tucanas por todo o Brasil: Manaus, Belém, Teresina, Sorocaba e coisa e tal. Alegria incontida e semblante de vencedor, José Aníbal estava rejuvenescido por seu júbilo. Um espectador desavisado o tomaria como o grande vencedor do dia. Em meio à estupefação generalizada entre os jornalistas, diante de tanta euforia, o condutor do debate lembrou a derrota em São Paulo. Derrota prontamente reconhecida, por certo, mas com ares que não era com ele. A hermenêutica de Vacarezza, sem surpresa, fixava-se no ato premonitório da escolha de Lula para a sucessão paulistana e no desempenho do candidato Fernando Haddad. José Aníbal proporcionou o melhor da noite, pois, instado a reconhecer que houve uma eleição na capital paulista e de que nela as coisas não se saíram exatamente bem para suas hostes, procedeu a uma anatomia da derrota. Ao fazê-lo, surpreendeu, pois admitiu o que todos sabiam. Curiosa circunstância, na qual um efeito-surpresa decorre quando alguém diz o que todos já sabem. José Aníbal foi preterido na sucessão paulista, em virtude da razia imposta ao tucanato paulista pela candidatura de José Serra. O “making of” geral da salsicha permanece desconhecido, mas o preço a pagar pelo atropelo parece evidente. Para José Aníbal, a derrota de Serra é algo tão distante quanto as primárias do estado de Wyoming. Não só distante, mas marcado com as tintas do inevitável. É exatamente aqui que ocorre o efeito surpresa da admissão do que todos sabiam: como eleger um candidato apoiado pelo prefeito Kassab? Como eleger um candidato, cuja investidura desorganiza, pelo verticalismo da imposição do nome, uma das máquinas partidárias estaduais mais fortes do país? As palavras duras emitidas ao prefeito, em particular, não encontram paralelo na avaliação petista, pautada pela possibilidade futura de aproximação com o PSD. José Aníbal, com clareza límpida, tocou em dois mistérios municipais da desrazão tucana. Ambos, por sua vez, associados à mãe de todos os mistérios: José Serra obteve, há pouco menos de dois anos, 40 milhões de votos contra a candidata de um dos presidentes mais populares da história do país. Em qualquer país razoavelmente democrático, isso o qualificaria para liderar a oposição, com imensa legitimidade. O que se passou é sabido: José Serra e seu partido jamais apresentaram ao país sua versão a respeito do que o Brasil poderia ser, como alternativa ao que vem sendo sob Dilma Roussef. É razoável supor que as dezenas de milhões de eleitores que sufragaram Serra possuíam a expectativa de dispor de uma versão distinta de país. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que ocorreu uma variante curiosa da tradicional prática do estelionato eleitoral. Prática comum entre vitoriosos: lembremo-nos da eleição, pelo PMDB, de mais de metade da Câmara de Deputados, em 1986, graças ao prestígio o Plano Cruzado. Logo a seguir ao pleito, o Plano foi desconstruído. Tratou-se de um caso clássico de estelionato, já que fundado na enganosa premissa de que os efeitos imediatos do Plano Cruzado seriam seus efeitos permanentes. Vida que segue, outras formas de estelionato se apresentaram na política brasileira. Todas elas caracterizadas pela traição, por parte dos vitoriosos, de seus incautos eleitores. Mas, o que dizer de derrotados que deserdam seus apoiantes? O não impacto do julgamento da ação penal 470, nas últimas eleições, bem mostra o erro e a desorientação tucanos ao supor e insistir que a agenda moral é suficiente para fixar uma agenda alternativa para o país. Agora é, a seguir José Aníbal, refundar o partido a partir de Belém, Manaus e Teresina. José Serra, pelas artes de algum polimorfo perverso, periga de ganhar a presidência nacional do PSDB. Dilma Roussef tem razões para sorrir, quando pensa em 2014. Renato Lessa (Publicado em 30 de outubro de 2012, no suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo)

O paralelogramo universitário

Começo com um truísmo: há muitas formas possíveis de interpretar a ação humana, categoria maior à qual, por princípio, se vincula tudo aquilo que fazemos. Se a máxima para tudo vale, vale também para a greve que se abateu sobre as universidades federais brasileiras, desde maio passado, ainda que haja pretensões à exceção na matéria. Há ângulos e ênfases interpretativos que se impõem como a força de evidências: a expansão descoordenada e voluntarista da universidade pública federal nos últimos anos não acompanhada da criação de bases logísticas mínimas para suportá-la, o que faz da queixa pela precariedade de laboratórios, bibliotecas e “condições de trabalho” algo plausível. Da mesma forma, comparações dos salários dos professores universitários federais com escalas salariais de outras carreiras do serviço público soam perturbadoras: ao fim de suas carreiras, mesmo os professores mais titulados e qualificados têm vencimentos comparáveis aos do início de carreiras para as quais pouca qualificação é exigida. Tudo isso faz sentido, mas não faz todo o sentido, se é que haja algo que faça todo o sentido. Em diversas universidades, em diversos departamentos, laboratórios e programas de pós-graduação, condições de trabalho vêm sendo aperfeiçoadas e melhoradas, por esforço individual e coletivo de professores e pela existência de programas públicos de financiamento à atividade de pesquisa, por meio de agências federais e estaduais. Tal quadro está longe de generalizado, mas o fato da universidade federal e pública no Brasil ser a responsável por proporção considerável da produção de conhecimento científico no país, com algumas marcas de reconhecimento internacional, é sinal de que algo não andou de todo mal, ainda que possa – e que deva - melhorar muito. A própria queixa salarial, com sua materialidade irrecorrível, não pode desconhecer marcadores de prestígio e possibilidades de crescimento e realização pessoal, vinculados ao pertencimento a uma carreira que tem forte inscrição nas dimensões simbólica e intelectual. Não se trata de desconhecer o peso da desagradável materialidade da vida, mas é inegável que a possibilidade de estar em uma “carreira” na qual benefícios imateriais constituem um aspecto no mínimo forte não é exatamente algo desprezível. De qualquer forma, a progressiva desconstrução da identidade intelectual dos professores universitários, em prol de uma identidade de “trabalhadores do setor público”, foi, por assim dizer, uma conquista da direção da política sindical para o setor, definida nas últimas décadas. Trata-se de uma ressignificação do papel desse corpo profissional, cada vez mais refratário em fazer de seus marcadores específicos parte de uma estratégia de valorização corporativa. Ao contrário, a cultura sindical, por ranço que associa trabalho intelectual a parasitismo e a privilégio, valoriza uma cultura obreirista de chão de fábrica e de “unidade de todos os trabalhadores” contra os malefícios do capital. Não deixa de ser perturbadora a constatação de que o sindicalismo dos professores universitários federais seja ligado a uma central sindical controlada por partidos que, além de fartamente minoritários no cenário eleitoral e por qualquer critério de representatividade mais rigoroso, são possuídos pela crença de que a universidade é um aparelho de reprodução do capital e de bestificação das massas. É duro associar a sofisticação exigida, e por muitas vezes atingida, pela universidade em suas práticas usuais – ensino, pesquisa e extensão – com os enunciados toscos e sectários das “análises de conjuntura” que informam decisões, digamos, da categoria. Mas, digamos que a ordem das queixas configure uma razão razoável de desconforto e de motivação para o protesto. Desde já, devo dizer que me alinho entro os que pensam que sim: há razoabilidade nessas queixas e elas devem ser levadas em conta. No entanto, há um abismo entre a razoabilidade das queixas e os efeitos supostos que delas devem derivar. O nexo é, no mínimo, precipitado: da suposta consistência das queixas (A) não se seguem consequências óbvias (B). Entre (A) e (B) opera um fator crucial que exerce sobre as condições originais um juízo interpretativo, que por sua vez é efeito de uma cultura específica – de uma forma de ver o mundo – que se arvora em detentora do monopólio da passagem. É sobre tal cultura que deve incidir nossa inspeção, pois ela preexiste e subsiste a (A) e (B). Há vários indícios dessa cultura. Um deles é a ideia da greve como “forma de vida”. A greve desloca-se, assim, do âmbito dos meios para se transformar, ela mesma, em espaço dotado de finalidade intrínseca. É no espaço e no exercício da greve que a “classe” forma sua identidade coletiva, na luta permanente contra a “hegemonia do capital”. Tal associação entre mobilização permanente e identidade coletiva dos professores transparece na proposta de carreira que o sindicato nacional dos docentes enviou ao governo, na qual a participação sindical e associativa aparece como inerente à condição de “professores federais”, com implicações para a avaliação dos mesmos para fins de progressão na carreira. A cultura da mobilização ininterrupta está a serviço de um ideal de “estado de exceção permanente”, segundo expressão da moda. Rotinas básicas são suspensas, em função da instauração de uma dualidade de poderes, que opõe o “movimento” à rotina e às arenas institucionais da universidade. O “comando de greve” e as assembleias ocupam o poder de fato, materializado na pretensão de obter capacidade negativa e geral de interromper a rotina universitária. Tal desrotinização não afeta apenas aulas e outras atividades universitárias, mas se abate sobre centenas de milhares de estudantes, cujas rotinas e quadros de expectativas são alterados e, por vezes, suprimidos. A própria qualidade do espaço universitário, como lugar de socialização de jovens estudantes, acaba por sofrer efeitos de degradação, por força de uma “desinstalação” da universidade que chegou a três meses. Tal cultura de exceção sobrevive aos espasmos do “movimento” e constitui parte da cultura permanente da instituição, afetando suas práticas internas, seus valores e correlações políticas internas. Mas, o aspecto mais saliente da cultura à qual aludo pode ser encontrado nas propostas do sindicato nacional dos docentes (Andes) ao governo. Ali materializa-se o ideal de um ajuste de contas contra segmentos da universidade associados aos avanços do país no âmbito da ciência e tecnologia. Professores titulares, bolsistas de produtividades, coordenadores de grandes projetos de pesquisa e de cursos de pós-graduação são percebidos como uma casta de privilegiados. Tal ajuste de contas dar-se-ia por meio de reestruturação radical da carreira docente, na qual seriam eliminadas as marcas de progressão tradicionais – auxiliares, assistentes, adjuntos, associados e titulares -, em prol de uma carreira única de “professor federal”, em 13 níveis, com avenida aberta de progressão do nível 1 ao 13, por tempo de trabalho. O ingresso de todos dar-se-ia na posição 1, para a qual se exigiria tão somente o nível de graduação, e a progressão seria função da sobrevida do docente em seguida ao ato de seu ingresso. Este aspecto faz da greve algo de fato sui generis: o próprio sindicato nacional abriu mão de todos os outros itens da pauta de reivindicações - salários, condições de trabalho - , para se fixar na alteração da carreira. Apesar da aparência de endurecimento, o governo cedeu no fundamental ao “movimento”: o ingresso na classe de professor titular deixa de ser exclusivamente decorrente de concurso público específico e passa a ser feito por progressão interna. Abre-se, pois, espaço para um curioso experimento: todos os professores passam a ter o direito estatutário de alcançar a classe de professor titular, o ápice da carreira. A representação visual da quimera é não menos curiosa: uma universidade cujo desenho ideal tem a forma de um paralelogramo: todos os que estão na base poderão estar no topo. Qualquer arranjo – trapézio ou pirâmide – no qual o topo seja menor do que a base e que reconheça distinções aparece como “aristocrático”. Todos, afinal, somos trabalhadores, no chão de fábrica das salas de aula e dos sindicatos, a bradar que a luta continua. Por fim, algumas das finalidades declaradas do “movimento” emancipatório tornam-se pura retórica: com efeito, como garantir relevância social e auto-sustentabilidade do ideal civilizatório da universidade pública, se o espaço da universidade se transforma em campo de prova de uma vaga cultura de mobilização permanente e negativa e que se manifesta por meio da interrupção de suas funções públicas? Renato Lessa (Publicado em 11 de setembro de 2012, no suplemento Aliás do jornal O Estado de São Paulo)

A musa da pilhagem

O finado Dr. Marx, em um de seus mais inspirados momentos, descreveu e analisou, na célebre oitava seção do primeiro livro de seu O Capital, o que denominou como o processo de “acumulação primitiva de capital.” Páginas luminosas; não faria mal as ler quinzenalmente. Com efeito, qualquer que seja o juízo que se faça, hoje, a respeito das benesses ou desgraças do capitalismo, o bom senso recomenda reconhecer que a coisa começou pessimamente. Estivessem vigentes, naquela altura, os institutos jurídicos que hoje vigoram nos países por assim dizer democráticos – e capitalistas -, o capitalismo não teria nascido do modo pelo qual nasceu. Ou, simplesmente, não teria nascido, posto que barrado algures, em algum STF. O cenário da acumulação primitiva, tal como hoje é fartamente sabido, exibiu intensa associação entre maximização de ganhos, uso da violência e destituição de uma série de vítimas sociais. O atributo “primitivo” não se deve tanto ao fato óbvio de que isso se deu nos primórdios do capitalismo. O termo pode revelar, ainda, uma forte dissociação entre apetite maximizador e aquilo que, graças a Norbert Elias, podemos designar como “processo civilizador”. Tal dissociação esteve presente tanto nos primórdios do capitalismo europeu quanto na contemporânea pujança do capitalismo à brasileira. Somos, por cá e em grande medida, contemporâneos dessa dissociação; os operadores da modernidade são, vez por outra, agentes do primitivismo. O emblemático personagem que ora reside em presídio vizinho a Brasília, e que dá nome a uma CPI, é um operador exemplar desse apetite infrene dos pioneiros do capital. O drama que protagoniza tem como enredo central o trânsito de dinheiro obtido em circuitos ilegais para o âmbito da, digamos, economia legal. Quer por sua materialização em bens e serviços – por exemplo, mansões e serviços de decoração – ou por sua transformação em “investimento produtivo”, configura-se o circuito de uma acumulação que, mais do que “primitiva”, aproxima-se do que Max Weber, em dia iluminado, denominou como “capitalismo de pilhagem”. Tal processo de acumulação, no entanto, não se limita à lavagem de dinheiro, ou ao trânsito de numerário ilegal acumulado para o âmbito da economia legal. Parte considerável, ao que tudo indica, tem como origem recursos públicos, o que não deve surpreender. Se voltarmos ao Dr. Marx, devemos recordar que à toda infraestrutura corresponde uma superestrutura política e jurídica. Em contextos nos quais o estado de direito está implantado de modo mais consistente, tal relação não faz lá muito sentido, mas nesta parte do mundo temo que ainda faça. Faz, ao menos, para os circuitos ilegais. A economia ilegal não prescinde de seus operadores não-econômicos, incrustados nos assim chamados poderes da República. Vejam só, no Rio de Janeiro, para as eleições deste ano, cerca de 600 policiais e bombeiros inscreveram-se como candidatos a vereador. É forte, para dizer o mínimo, a presença de policiais e bombeiros entre milicianos que infestam as periferias cariocas, e a maioria desses candidatos tem vínculos com áreas tomadas por milícias. O que é isto, senão a tentativa de captura de espaços legais, por parte dos circuitos de pilhagem? O significado sociológico do mandado senatorial de um dos campeões da direita brasileira, posto a serviço do personagem que habita o presídio da Papuda, não tem sentido distinto. A glamorosa companheira desse notável operador do capitalismo de pilhagem brasileiro deu significativa contribuição ao quadro aqui composto. A tentativa malograda de intimidação de um juiz, com base em ameaça de chantagem, revela um modo preciso de operação, fundado na hipótese – felizmente falsificável – de o que conta na vida, para valer, são as ofertas que não podem ser recusadas. Essa lógica tem, necessariamente, implicações penais. Ou seja, seus operadores e agentes são, em termos técnicos rigorosos, “criminosos”. Mas não nos iludamos, há mais coisas entre o céu e a terra do que o código penal: há sociologia na coisa; sociologia pesada. O bom barão de Montesquieu, nos idos do século XVIII, falava da atividade de ganhar dinheiro como “paixão calma”, proporcionada pelo “doce comércio”. Com ela, as interações humanas progressivamente deixariam de ser belicosas. Uma doce complementaridade somada à percepção de que precisamos uns dos outros deveria, segundo o barão, orientar nossos interesses privados. Nada de semelhante parece estar presente no campo das relações entre, digamos, a atividade de ganhar dinheiro – ou de acumular – e o âmbito da legalidade no Brasil. As relações são, no mínimo, incertas. A musa da pilhagem, na tentativa de chantagem ao juiz, é o avesso da “paixão calma”. Ao contrário, ela pretende ensinar ao país que ganhar dinheiro exige agressividade e pouca – se alguma – atenção a formalidades. É curioso como, entre nós, “empresários agressivos” passam por personagens virtuosos. A meu juízo, trata-se da única ocupação à qual o atributo “agressivo” soa como adjetivo elogioso. Assim não dá. Renato Lessa (Publicado em 31 de julho de 2012, no suplemento Aliás do jornal O Estado de São Paulo)

O Fator Kassab

Há cerca de seis anos, em 2006, o então prefeito de São Paulo, José Serra, renunciou ao mandato, conquistado nas eleições de 2004, para ingressar na corrida eleitoral ao governo paulista. Salto bem sucedido, posto que lograria derrotar Marta Suplicy, qualificando-se, assim, à condição que, como sabemos, propiciaria mais à frente a reedição do ato de renúncia. Com José Serra, pela compulsão à repetição, aprendemos que renunciar é humano. Por unilaterais e caprichosas, renúncias são ocasiões ímpares para pensar a respeito do peso dos contrafactuais na história humana. Não tivesse José Serra renunciado, e se reeleito fosse à prefeitura de São Paulo em 2008, estaríamos hoje a falar de Gilberto Kassab, com a magnitude que o desagradável princípio de realidade nos impõe? É certo que as ações humanas, se procurarmos estabelecer suas causas, podem ser submetidas ao abismo das regressões ao infinito,. Detectada o que julgamos ser a causa de algo, sempre é possível indagar sobre causas dessa causa, e assim por diante – ou melhor, para trás –, até retrocedermos a um momento inaugural, seja ele o da moldagem de Adão ou da eclosão do bóson de Higgs. De todo o modo, ainda que isso seja verdadeiro, é inegável que na genealogia do animal político Kassab o efeito de causalidade exercido pela primeira renúncia de José Serra tem forte relevância. Vá lá que o ato procriador praticado pelos pais do atual prefeito de São Paulo tenha sido uma condição necessária para que viesse a ter existência biológica. Contudo, parece ser indisputável o fato de que o ato de renúncia de Serra produziu um efeito político preciso, qual seja o da entronização de Kassab ao, digamos, primeiro time da elite política nacional. Suponho que não seja exagero imaginar que o ocupante do posto de prefeito da cidade de São Paulo, a mais importante cidade do hemisfério sul, não possa ser descrito de maneira diferente. Determinar a causa eficiente do fenômeno não traz consigo a suposição de que havia intencionalidade na coisa: os efeitos procedem das causas, mas só adquirem fisionomia própria pelo que a elas acrescentam. Se a entronização de Kassab no campo político nacional derivou de um ato inicial, movido por considerações de oportunidade política de curto prazo, é importante não desvalorizar, para fins de interpretação, o que o personagem acrescentou de si ao presente que recebeu. O personagem eminentemente local transformou-se em pouco tempo em um operador relevante no cenário nacional. Já não conta mais como prefeito: o que faz e o que se diz do que faz em São Paulo está aquém de seu peso específico no plano nacional. Para avaliar tal peso, as medidas são outras: um partido com mais de meia centena de deputados federais - o que representa 10% da Câmara de Deputados - e dois senadores. A importância do kassabismo extrapola, contudo, a contabilidade parlamentar. O empreendimento do prefeito de São Paulo exibe de modo aberto a lógica do presidencialismo de coalizão, por meio de um truque de rara destreza: transformar meia centena de deputados obscuros, condenados às agruras das legendas de oposição, às quais em sua maioria pertenciam, em um conjunto disponível para trocas generalizadas. A sigla partidária, marca fantasia da organização, afirma-se negativamente, no que diz respeito à ideologias: não é de esquerda, de direita ou de centro. Quer isto dizer que se sente à vontade em qualquer ambiente. Ao modelo, em si mesmo generoso, do presidencialismo de coalizão, o partido do Dr; Kassab ´propicia o acréscimo de potenciais cinquenta novos clientes, manobra extensiva aos municipalismos e aos “estadualismos” de coalizão. Curiosamente, o Dr. Kassab é o que vai de mais genuíno e auto-evidente pela vida política nacional; Com ele não há riscos de decepção: qualquer domicílio o receberá de portas abertas, sem possibilidade de dano a seus, digamos, valores e princípios. O partido kassabista é sobretudo um experimento aberto de hiper-realismo político, em um grau que talvez nenhum dos partidos “relevantes” brasileiros esteja disposto a assumir. Mesmo o PMDB, mãe de todos os realismos, não dispensa, una y otra vez, menções a seus heróis e mitos de origem. Com os kassabistas, nada disso: eles expõem com clareza ofuscante os fundamentos correntes da política brasileira. É, pois, um empreendimento que elimina toda suspeita a respeito da opacidade das palavras. Para o kassabismo, as palavras são o que elas são, não escondem, iludem, parafraseiam ou aludem. Pretendem dizer o que a coisa é. Enfim, temos a tão desejada instalação da verdade na política. Kassab indica o vice na chapa de Serra, arqui-inimigo do petismo, e apoia Patrus Ananias, herói petista, em Belo Horizonte. A senadora Katia Abreu (PSD/PA), livre dos ares moribundos do ex-PFL, manifesta simpatia pela reeleição de Dilma Roussef. E por aí vamos: tudo é permitido, tudo é divino e maravilhoso. Pensando bem, Kassab é mesmo um herói do presidencialismo de coalizão. Na verdade, um pequeno prestidigitador, a exibir o fato grave de que a existência de partidos “relevantes” e “coesos”, bem como a sua criação, nada tem a ver com o que se passa no plano da vida social. Política sem princípios e sem lastro social: há quem diga que se trata de uma “democracia consolidada”. Renato Lessa (Publicado em 10 de julho de 2012, no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo)

Localismo e estado de natureza

O lendário deputado norte-americano Tip O’Neill, presidente da Casa dos Representantes – a Câmara de Deputados dos EUA – de 1977 a 1987, certa feita pontificou que “toda politica é local”. Democrata da velha e boa cepa rooseveltiana, hoje, para os padrões da política praticada ao norte do Rio Grande, O’Neill seria considerado um esquerdista ferrenho. Sua frase célebre admite distintas interpretações. Em comentário a uma biografia recente de O’Neill, o ex-governador de Nova Iorque, Mario Cuomo, definiu a frase all politics is local como um motto do velho prócer democrata, falecido em 1994. A frase seria portadora da ideia forte de que o exercício da representação política exige vínculo com os representados e escuta para suas expectativas e apreensões. Em outros termos, o sistema representativo, fundado na necessária distinção entre representantes e representados, só faz sentido se houver vínculos entre ambos, não limitados aos jogos de captura de sufrágio. Não é, contudo, essa a única maneira possível de entender a sentença de O’Neill. Em registro um tanto cínico, localismo pode significar tão somente precipitação e dissolução da política na pequena guerrilha, na esperteza da pequena área, na adoção de uma subespécie de maquiavelismo de fancaria. Precipitação que acaba por implicar uma continuada ressignificação da política, pela qual a lógica de curto prazo e o apetite infrene apresentam-se como devoradoras de patrimônios políticos e simbólicos duramente construídos. Localismo, nessa chave, não indica apenas escala de intervenção. Tomado em termos geográficos, o localismo é inevitável e não constitui, em si mesmo, como problema. Afinal, há problemas e conflitos que são locais. Há, contudo, outra dimensão aqui envolvida, que pode ou não coincidir com o localismo geográfico. Trata-se da prática de uma cultura política fundada em um ativismo personalizado, pela qual voluntarismo e genialidade autoatribuída aparecem como o ápice da virtude política. Claro está que a vigência de tal padrão exige a crença na existência de sujeitos extraordinários, com recursos pessoais incomuns de clarividência e senso de oportunidade. Duas intervenções políticas recentes, ambas sob a forma de visita, do ex-presidente Lula podem ser associadas ao predomínio da pior versão possível do axioma de O’Neill: as visitas ao escritório do ex-ministro Jobim, da qual quase não mais lembramos, e à residência de Paulo Maluf. Em ambas, o caráter de intervenção personalizada e caprichosa, ao contrário de esgotar seus efeitos locais, produz consequências de ordem mais geral. Na visita ao ex-ministro Jobim, e na semana seguinte à introdução do tema da verdade, em chave maior, no debate público brasileiro – pela implantação da Comissão da Verdade -, o mesmo tema escorre pelo ralo, com a diversidade de versões a respeito do que ali se disse e das motivações dos dois interlocutores envolvidos (o ex-presidente e o ministro Gilmar Mendes). Diante da indeterminação da verdade, recomenda-se a incredulidade e a despresunção generalizada de inocência. Desconfio, contudo, que o ministro Gilmar não tenha se sentido infeliz com os efeitos públicos do evento. Na visita ao deputado Paulo Maluf, independentemente do resultado líquido do encontro, sua marca, digamos, doutrinária é da lavra do ex-prócer arenista: foi sua doutrina – um tanto surrada, é claro – que parece ter dado sentido doutrinário à coisa, fixada no límpido enunciado: “Não existe mais direita e esquerda”. Temo que o efeito da sentença sobre as mentes dos observadores comuns – ressalvo aqui os áulicos e os técnicos – seja semelhante ao da apresentação a estudantes de geometria do conceito de triângulo equilátero. Dir-se á, tanto diante da sentença malufista, quanto do conceito geométrico, a mesma coisa: “isto é evidente”; “assim como um triângulo equilátero possui três lados iguais, não há diferença alguma entre direita e esquerda”. Em outros termos, a frase malufista, tal como a demonstração do triângulo, traz consigo, com toda força, seu próprio efeito de verdade. O que é grave em tudo isso é que não há passagem possível da geometria para a política; na geometria demonstra-se, na política usam-se argumentos. Quando um argumento político ganha foros de evidência geométrica, para além da inautenticidade aí implicada, é de vitória sobre formulações rivais que se trata. Em termos mais diretos, a teoria malufista passa por verdadeira, dada a supressão de alguma possível teoria rival. A natureza dessa supressão merece atenção. Suspeito de que se trate de um esforço consistente e cumulativo de auto-supressão de possíveis versões alternativas ao cinismo da indistinção. Por auto-supressão entendo a adoção de um padrão político típico de um estado de natureza ou, se quisermos, de um grau-zero da política, no qual todos se igualam no pior e de modo necessário. A rendição a tal realismo é devoradora, no campo da cultura política, de expectativas e de patrimônios de difícil construção e consolidação, mas de facílima dissipação. Disso sabe bem Paulo Maluf, com razões de sobra para estar feliz. Renato Lessa (Publicado em 26 de junho de 2012, no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo)

Verdade e formas políticas

Há poucas semanas, o país, se concedido direito à metonímia, abrigou um experimento que, sem exagero, é portador de motivos para orgulho. Refiro-me à instalação em palácio da Comissão da Verdade. Ainda que seus resultados práticos sejam incertos, e pertençam antes aos domínios das mais diferentes e opostas expectativas, o evento que marcou seu lançamento abrigou ares de condensação republicana. Isso não apenas pelo cuidado de ali incluir chefes de governo que, em graus diferentes, ocuparam seus postos por força de procedimentos legítimos, mas por sugerir que o tema da verdade – de alguma verdade, ao menos – pode ter lugar na vida pública. A própria presidente, de modo eloquente e incomum na história da República, demonstrou o que podem significar a ideia e a figura de Chefe de Estado. Apesar de incertos os efeitos futuros, houve desde já um efeito imediato, qual seja o de inserir o tema da verdade em casulo distinto do de seu lugar natural. A elucidação do que ocorreu com mortos, desaparecidos e torturados, além de conferir materialidade retrospectiva à experiência do estado de exceção, amplia o conjunto de informações disponíveis a respeito da história recente do país. Mesmo que inúmeras interpretações e atribuições de sentido possam ser construídas, acena-se com a possibilidade de uma “narrativa básica”, tal como o fizeram os primeiros historiadores do Holocausto; o grande Raul Hilberg, antes de todos. Assim, e por um átimo, o tema da verdade insinuou-se de modo invulgar em nossas reflexões a respeito do país. Bastou, contudo, uma conversa mal ajambrada e mal explicada no escritório do ex-ministro Nelson Jobim, para que o tema fosse devolvido a seu estado habitual, o da indeterminação e do disfarce. Para dizê-lo de outro modo: os dias que sucederam à instalação da Comissão da Verdade foram, como quê, dias de certa suspensão da experiência ordinária da política; o mencionado encontro a três, e as versões desencontradas e incompatíveis entre si dali emanadas, constituiu-se, por oposição, como experiência de des-suspensão ou, se quisermos, de desabamento e de gravitação natural. Céticos, penso, antes de descartar o tema da verdade, com a falta de hesitação típica de dogmáticos pós-modernos, têm por esta dama – a verdade – sincero respeito, além de considerável pudor. Isso a ponto de recusar inscrever o termo “verdadeiro” em qualquer predicado, atribuído a qualquer aparência. Céticos, sobretudo, não são necessariamente parvos: não saber onde está a verdade não impede a presença de uma sensibilidade para com o implausível. Juízos de plausibilidade são suficientes para que nos movamos no mundo e configuremos nossas orientações e escolhas. Há, por certo, no episódio um abismo insondável: qual dos três protagonistas “diz a verdade”? Questão grave, diante da qual muitos não hesitarão de apresentar respostas definitivas, todas movidas por inclinações afetivas e biliares. Como, então, lidar com o abismo da indeterminação da verdade, nesse caso? Sugiro, no que segue, uma série de procedimentos aproximativos. Antes de tudo, parece ser sábio adotar algo que poderia ser designado como uma des-presunção de inocência dos envolvidos. Se, do ponto de vista penal, o procedimento é inaceitável, do ponto de vista cognitivo a coisa pode ser útil: se há suporte para supor que ex-presidente Lula quis “melar” o julgamento do mensalão, pela abordagem ao ministro Gilmar Mendes, há idêntica plausibilidade em supor que este quis “melar” a defesa, ao pôr a boca no trombone, e evitar o tratamento apropriado e institucional da suposta ofensa. Portanto, a abordagem do ocorrido poderia iniciar pela consideração de aspectos internos e inerentes. Há no âmago do evento uma série de implausibilidades: a casualidade do encontro, a amnésia do ex-ministro Jobim, a indeterminação da fonte para a matéria-denúncia, a participação do ministro Gilmar apenas como confirmador do trabalho dos repórteres, etc... Uma abordagem externalista poderia partir de uma premissa simples: uma conversa dessa natureza não poderia ocorrer. Isso tanto por razões de ordem, digamos, republicanas, mas, sobretudo pelo déficit de confiança, ao que parece, envolvido na interação. As hipóteses são todas abjetas: se a narrativa do ministro Gilmar Mendes corresponde à verdade, algo de grande gravidade terá ocorrido; se for inverídica, algo de gravidade grande se passou. De um ponto de vista consequencialista, ao que parece o episódio foi vencido por quem pretende garantir forte carga dramática ao julgamento prestes a ser feito, e em neutralizar juízes neófitos, supostamente gratos por suas investiduras. Não é recomendável ver na reação do ministro Gilmar nada mais do que manifestação de ultraje pessoal e institucional. O pano de fundo disso tudo parece ser uma experiência de república na qual o direito penal vale como recurso de inteligibilidade. Diante da indeterminação da verdade, e do esforço militante de fazê-la cada vez mais inapreensível e irrelevante, o desejo infrene de prender os inimigos vale como único recurso de fixação de sentido. Ao que parece, após uma breve incursão do espírito, estômago e fígado repõem suas pretensões a sedes fisiológicas da consciência política nacional. Renato Lessa (Publicado em 29 de maio de 2012, no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo)