domingo, 24 de novembro de 2013

A espécie humana


Renato Lessa
(Publicado em minha coluna "Sobrehumanos", na revista Ciência Hoje, em outubro de 2013)

A Espécie Humana é o título de um livro exemplar, lançado na França em 1957. Um livro daqueles que merecem ser lidos várias vezes em uma só vida. Seu autor, Robert Antelme, foi membro da Resistência Francesa e rescapé, sobrevivente da experiência dos campos de concentração. Entre 1944 e 1945, depois de ter sido preso pela Gestapo, Antelme migrou por vários campos nazistas, entre os quais Buchenwald, Auschwitz e Dachau. Não é pouco, é o mínimo que se pode dizer. O livro, cuja publicação no Brasil se anuncia para breve, é um dos melhores exemplares da assim chamada “literatura de testemunho”. Ainda que não comparável literária e filosoficamente a Primo Levi, compõe com este, e com Jean Améry, o que de melhor e mais pungente se escreveu a respeito.

Em comparação a Primo Levi, em particular, pode-se dizer ainda que a experiência de Robert Antelme foi menos terrível, embora ambos tenham frequentado o que houve de pior na loucura do nazismo, o “universo concentracionário”, para usar expressão cunhada por outro rescapé, David Rousset. Primo Levi, por ser judeu, viveu o horror do campo de extermínio; Antelme “limitou-se” a viver o do campo de concentração, circunstância que, de nenhum modo, o imunizou da ameaça da morte sempre iminente e daquilo que Levi denominou como “ofensa”, ou a destruição de um ser humano. A distinção entre ambos os campos não é filigrana: os campos de extermínio são lugares de morte certa, os de concentração, de morte provável, mas sem que tenham sido desenhados para tal finalidade. A morte no campo de concentração decorre da dureza do regime de internação ali praticado; no campo de extermínio decorre de sua própria finalidade, inscrita em seu atributo explícito.

A excelência do texto de Antelme resulta do fato de que contém mais do que uma narrativa de testemunho pessoal. Tal como na obra central de Primo Levi – É isto um homem? -, o que importa a Antelme é observar a condição humana em cenário extremo. Daí o título do livro, A Espécie Humana, uma observação antropológica a respeito do que pode acontecer aos humanos quando todos os traços civilizatórios são destruídos: língua, nomes, roupas, objetos, reconhecimento social, etc, tudo enfim que possa ser considerado marcador de identidade e de diferenciação.

Fora do marco estritamente fisiológico, o humano releva do que a espécie acrescenta ao mundo, transformando-o e o humanizando. Tais acréscimos são de ordem cultural. Na verdade, a adaptabilidade da espécie humana a virtualmente todo o planeta, resulta do fato de que em cada lugar que ocupa, constrói seu próprio nicho, uma segunda natureza que, acoplada à primeira, define seu próprio habitat. Tal habitat possui nome próprio: cultura. Nossa adaptação à diversidade dos habitats naturais não resulta tanto da especiação biológica, mas sobretudo da variada criação de circunstâncias culturais, por definição artificiais.

Livros como o de Antelme ensinam-nos a imaginar mundos nos quais o trabalho milenar da cultura é destruído, em nome da coisificação absoluta: um homem reduzido a portador de piolhos, a recipiente de um estômago vazio e a movimentos remanescentes – por tempo incerto - de sua existência meramente fisiológica. Mais do que o medo da morte, que exige certa abstração metafísica, posto que movido pela ideia de que a vida é um valor fundamental, o que conta no campo são os comandos do estômago. Na infernal hierarquia do campo, narrada por Antelme, o principal marcador é dado pela quantidade de comida usufruída pelos internos: kapos podem ser gordos, prisioneiros políticos, em geral, esquálidos. A diferença, ao fim e ao cabo, na métrica do campo, diz respeito ao que cada um pode comer. A destruição radical dos marcadores de dignidade transforma a espécie humana em um recipiente esvaziado de identidade e de comida.




A condição do exílio

Renato Lessa
(Publicado em minha coluna "Sobrehumanos", na revista Ciência Hoje, em novembro de 2013)

Começo a coluna com uma nota explicativa:
No dia 7 de outubro passado, participei, como presidente da Biblioteca Nacional, da abertura da exposição “O exílio de língua alemã no Brasil, 1933-1945”. O evento teve lugar na Biblioteca Nacional Alemã, em Frankfurt, e foi concebido pelo Arquivo Alemão do Exílio – 1933-1945, daquela instituição. A curadoria coube às doutoras Sylvia Asmus e Marlene Eckl, pesquisadoras responsáveis pelo Arquivo. Minha participação exigiu a apresentação de uma pequena conferência, não registrada pela imprensa brasileira, razão pela qual retomo aqui os argumentos centrais que apresentei na ocasião.
Fim de nota.
As representações usuais a respeito da constituição da população brasileira sempre enfatizaram, entre nós, a importância dos fluxos migratórios. Desde os primeiros anos escolares, aprendemos a nos orgulhar do caráter compósito da população brasileira, que resulta, além dos fluxos migratórios europeus e da presença da população aborígene, da migração forçada de milhões de seres humanos, originários de diferentes regiões da África, para o território colonial que, no século XIX, viria a se tornar independente.
Com efeito, o termo “migração” soa um tanto cínico, quando pensamos na maior movimentação forçada de cerca de cinco milhões de seres humanos, ocorrida na Idade Moderna, que fez com que a história do Brasil como nação – antes e depois da Independência, em 1822, e mesmo até hoje - não possa ser contada e compreendida sem os fluxos populacionais africanos que recebeu.
Migrações são um tema nobre da demografia. Para diversas sociedades, suas estruturas populacionais são incompreensíveis se não se levam em conta impactos de fluxos tanto imigratórios como emigratórios. Por mais dramáticos que sejam, tais fenômenos são antes de tudo assunto de demografia.
Distinta é a condição do exílio. As migrações estão para a demografia, assim como os exílios estão para a reflexão político-cultural.
Nossa ênfase no tema das migrações ofusca o tema do exílio. Por mais dolorosa que seja, a ideia de migração carrega consigo um componente positivo e otimista: por definição, migra-se para melhor, para buscar uma forma de vida julgada mais promissora. Já o exílio, orienta-se pelo afastamento do pior, pelo caráter compulsório da desconexão com o lugar de origem e pelo imperativo de preservação da própria vida. O exílio é necessariamente amargo e doloroso; não traz em si atos de esperança, mas resulta de um desespero constitutivo.
Tornamo-nos um pouco mais acostumados à ideia de exílio, como parte de nossa experiência nacional, com o exílio de vários brasileiros, durante a ditatura imposta ao país, de 1964 a 1985. Cabe ressaltar que, pela segunda vez na história do país – e pela primeira em regime republicano –, um Chefe de Estado morreu em situação exílio. Refiro-me a João Goulart, deposto em 1964 e morto, em situação não esclarecida, doze anos depois.
Mais do que “emigrantes”, os falantes da língua alemã que deixam seus países durante o nazismo são exilados. O termo “emigrante” faz sentido para o léxico da demografia; a palavra exilado é eminentemente geo-política: ela, a um só tempo, indica deslocamento espacial e expulsão. A condição exilada é consequência de um desvínculo que é anterior ao ato, em si mesmo, de emigrar. A dissolução do nexo com a comunidade de origem precede, dessa forma, o ato final da separação.
Entre 16.000 e 19.000 exilados, de língua alemã, se dirigiram ao Brasil, entre 1933 e 1945. Trata-se, simplesmente, do maior fluxo de exilados recebido pelo país, em toda sua história. Em todos os domínios da vida intelectual, artística e cultural têm sido mais do que expressivos os efeitos da recepção da parte da cultura europeia, trazida pelo refugiados de língua alemã do nazismo e da Shoah.







Três argumentos em defesa da liberdade das biografias


Renato Lessa[1]
Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura

Nota: texto apresentado à audiência pública sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade que questiona o fundamento constitucional de artigos do Código Civil que restringem a liberdade de elaboração e circulação de biografias "não-autorizadas", ocorrida no Supremo Tribunal Federal, em 21/11/2013, como representante do Ministério da Cultura.

Introdução e propósitos
Os argumentos contrários a restrições com relação à escritura e circulação de biografias “não autorizadas” têm se valido de um valor estruturante da nossa forma civilizatória: o princípio da liberdade de  expressão. Com efeito, o princípio é pétreo: sua abolição implicaria o risco de dissolução daquilo que o grande teórico social alemão, Norbert Elias, definiu como o processo civilizador. Os argumentos mais restritivos, por sua vez, valem-se de cláusula em nada estranha ao mesmo processo: os princípios da privacidade e da proteção dos indivíduos inserem-se, de modo pleno, no mesmo catálogo de valores que conformaram a nossa forma de vida. Catálogo também composto pelo princípio da liberdade de  expressão.

É tão fácil como tentador opor essas duas ordens de princípios, uma à outra, como se representassem formas civilizatórias distintas. Na verdade, ambas decorrem de mesma matriz: a fixação no século XVII, a partir da obra de pensadores tais como John Locke, de direitos subjetivos, ou seja, direitos que decorrem não de circunstâncias particulares, mas de um modo próprio de conceber a natureza humana como constituída pelo direito natural - e portanto não circunstancial - à liberdade, incluído neste termo tanto vontades de expressão como desejos de proteção.

Liberdade de expressão e direito à privacidade são horizontes normativos. Como tal, são marcados por um inevitável grau de generalidade. As circunstâncias da vida e as formas do direito positivo definirão, com contornos mais precisos, o que ambas podem significar na vida prática e no horizonte das experiências históricas e sociais dos seres humanos. O desafio prático, inerente ao caráter genérico mencionado, consiste em grande medida em regular conflitos possíveis entre ações humanas que se apresentam como fundadas em cada um desse princípios em particular.

O tema das biografias, se tratado exclusivamente à luz da oposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade, parece pretender retirar desses valores corolários automáticos, de aplicação indisputada. O filósofo liberal contemporâneo Isaiah Berlin, certa feita, declarou que não há garantia de que os bons valores e princípios sejam automaticamente compatíveis. Há que trabalhar com criatividade para que aquelas orientações normativas decantem na experiência social.

A defesa da liberdade para as biografias, posição que tenho a honra de apresentar no âmbito da Suprema Corte de meu país, não pode, por certo, dispensar a âncora normativa do princípio da liberdade de expressão. O que pretendo aqui fazer é acrescentar a tal patrimônio valorativo considerações de natureza distinta, porém convergente, que, a meu juízo, podem fortalecer a posição já manifesta pela Exma. Sra. Ministra da Cultura, Marta Suplicy.

Gostaria de proceder por meio da apresentação de três argumentos, a saber: um argumento formal; um argumento histórico; e um argumento antropológico e hermenêutico. O objetivo de cada um dos argumentos é o de indicar o quanto a alternativa de estabelecer restrições à inquirição biográfica contraria traços básicos de nossa forma civilizatória.

1. Argumento formal: o que são “biografias”?
À primeira vista, a pergunta soa como bizarra. Afinal, todos sabemos o que estamos a ler quando lemos uma biografia: uma biografia, para defini-la em termos minimalistas, é um gênero de escritura devotado à tarefa de contar uma vida. Assim definidas, “biografias” configuram um gênero distinto das demais formas de expressão escrita. Não obstante, outro recorte é possível. Além de pensar biografias como gênero próprio, é possível e necessário imaginar o exercício biográfico como recurso cognitivo, não limitado ao gênero estrito das biografias.
Por razões que ficarão mais claras no correr da apresentação do argumento seguinte, as principais linhagens narrativas no campo das ciências humanas – particularmente no da história – valem-se de recursos biográficos, mesmo em obras não classificáveis como biografias. O clássico livro do historiador italiano Carlo Ginzburg, por exemplo, intitulado O queijo e os vermes dificilmente pode ser considerado uma “biografia”, mas sua estrutura narrativa e metodológica repousa na caracterização biográfica do moleiro Menocchio, um dissidente/herege, que viveu no Friuli no final do século XVI, cuja estrutura mental ajuda a compreender o imaginário social e simbólico de fins da Idade Média italiana.  Ou seja, a inquirição biográfica, como recurso cognitivo, tornou-se ferramenta essencial para investigações no campo das ciências humanas. A razão principal é de fácil enunciação: as ciências humanas ocupam-se da ação humana e esta, de modo necessário, materializa-se em decisões, atitudes, crenças, iniciativas, etc..., que mobilizam indivíduos reais, cujas vidas tornam-se, assim, relevantes para a construção de hipóteses de sentido.
Desse modo, a decisão a respeito de como tratar as biografias, do ponto de vista do direito positivo, poderá ter efeitos não apenas sobre um gênero específico e isolado, mas sobre toda uma tradição de inquirição a respeito do que somos em termos civilizacionais.
A despeito da existência de teorias da história e da sociedade que deflacionam o papel dos sujeitos individuais, o melhor da historiografia sempre procurou associar o entendimento de variáveis de longa duração à atenção ao âmbito nervoso e imprevisível da ação humana individual.
2. Argumento histórico: ação humana, sujeitos, indivíduos
A inquirição e a curiosidade biográficas estão fortemente inscritas na nossa forma civilizatória. Tal inclinação não se deve, apenas, a apetites bisbilhoteiros, mas ao reconhecimento dos efeitos de uma grande mutação ocorrida no início da modernidade. A partir de fins da Idade Média, deixamos de nos representar como rebanho cujo destino fora fixado por potências inescrutáveis. Essa visão a respeito da inescrutabilidade dos comandos que dirigem os humanos é muito antiga. O filósofo contemporâneo, Alasdair MacIntyre, em livro luminoso (Justiça de quem? Qual racionalidade?), escreveu capítulo brilhante a respeito da psicologia da ação dos heróis homéricos, para revelar um cenário no qual a ação humana era regulada pelo que tinha que ser feito, independente do escrutínio individual do agente. Entre os romanos, houve interesse nas biografias exemplares, como bem atestam os casos de Plutarco (Varões Ilustres) e Suetônio (Os Doze Cesares). Para a Idade Média, dissidentes à parte, a psicologia da ação humana constituiu-se como capítulo da teologia. Em suma, dos antigos e dos medievais, com magníficas exceções, herdamos uma teoria sobre o mundo social e histórico na qual a agência humana pouco conta, salvo quando se trata de pensar o mal e o desvio.
A Modernidade, ao desfazer-se de tal herança, tem como um de seus capítulos propiciatórios o desenho de Adão, apresentado pelo humanista Pico della Mirandola, no século XV, em sua Oração da Dignidade: um ser posto no mundo por Deus, sem qualquer finalidade pré-estabelecida, para que possa livremente estabelecer as suas próprias. Pico, ao lado de outros humanistas italianos e, mais tarde, suplementado pela obra de Michel de Montaigne, preparou a sensibilidade cognitiva da época para uma representação da história humana como protagonizada por uma variedade incontável de ações individuais, a despeito da força inercial das tradições. Por conseguinte, para a epistéme moderna, fazer biografias constitui um exercício de elucidação da experiência dos humanos. O suporte filosófico dessa nova atitude será progressivamente fixado, a partir do século XVII, em um trajeto iniciado tanto pela tradição filosófica racionalista como por seus rivais empiristas. O tema do sujeito apresenta-se por toda parte. No campo da pintura, a proliferação de retratos e auto retratos reforça tal impressão.
Ressalta o retrato de Federico de Montefeltro, feito por Piero della Francesca, no qual, o nobre, de perfil, é representado em destaque com relação à paisagem física e social sobre a qual tem jurisdição. Não sendo uma biografia, em sentido estrito, a manifestação pictórica procura representar uma vida.
O legado da centralidade do sujeito individual, posta pelos modernos, reside no fato de que, desde então, não mais deixamos de falar em indivíduos quando pensamos a história, ainda que procuremos acrescentar dimensões estruturais e de longa duração.
Biografias, nesse sentido, dão a ver suas “vítimas”, mas também o contexto no qual atuam. As melhores operam nessa chave. Restrições, portanto, não apenas escondem ou camuflam a ação individual. Elas criam barreiras ao entendimento de épocas e de tendências. Um exemplo pátrio e recente pode ajudar a estabelecer a força desse argumento: a excelente biografia do ex-Presidente da República João Goulart, realizada pelo historiador Jorge Ferreira. Um exercício que, ao mesmo tempo em que ilumina momentos cruciais da história recente do país, redime e exibe o papel e a atuação de um grande brasileiro, retirando-o do gueto preconceituoso no qual o atiraram, analistas de distintas persuasões, tanto à direita como à esquerda.
3. Argumento antropológico e hermenêutico: o princípio da variedade e a centralidade da interpretação
Este argumento tem parte com o anterior. O tema da variedade humana, posto pelos modernos, em sua vertente cética ensina-nos que nenhum de nós possui elementos de elucidação verdadeira a respeito da história em geral e nossas vidas em particular. Nossos enunciados são prováveis e inapelavelmente interpretativos. Os humanos são animais que interpretam.
Na verdade, a origem deste argumento é mais antiga. Encontramos em Aristóteles, na Política, a ideia dos humanos como “animais que falam”. Mais adiante, na Ética a Nicômaco, encontramos que os humanos, por falarem, são animais que “deliberam”. E sobre o quê exatamente deliberamos? Sobre assuntos sobre os quais não sabemos, não temos respostas. Sobre eles nada dizem a natureza, o acaso e os deuses. Somos nós, em nossa precária condição cognitiva, que somos obrigados a lidar com temas que não admitem solução automática. Os recursos para tal são os da argumentação e da interpretação. É o que há.
O postulado da variedade humana, acolhido pelos modernos, recepciona, assim, o tema da inevitabilidade da interpretação. Não há verdades universais e auto-evidentes. O que pode compensar tal orfandade é a capacidade humana de emissão de juízos, sustentados em versões de mundo, em interpretações. É esta a base antropológica do princípio da liberdade de expressão. Longe de ser um capricho de filósofos políticos, o princípio decorre da dispersão desta imagem: os humanos interpretam o mundo por meio de incontáveis jogos de linguagem.
Nada mais natural que sejamos “vítimas” potenciais – ou algozes – de tais artes de interpretação. Jacob Buckhardt interpretará, no século XIX, o Renascimento, por meio do recurso biográfico sobre a vida dos tiranos. Antes dele, Boswell escrevera a biografia do século XVIII inglês, ao contar-nos a vida do Dr. Johnson. A liberdade desses exercícios ajudou a configurar o mundo no qual vivemos.
Restrições ao exercício e à inquirição biográfica são, pois, impedimentos não apenas à liberdade de expressão, mas ao seu fundamento antropológico, contido na ideia de que os humanos são animais que interpretam. Restrinja-se tal liberdade, e uma forma de vida terá seu curso alterado.
Conclusões
O que tememos nas biografias? Mais do que a revelação de aspectos factuais desairosos, ou de sua vulnerabilidade a profissionais da mentira, há que reconhecer que o que mais amedronta são os efeitos da interpretação. Em outros termos, o medo da interpretação procura socorrer-se no direito positivo para fixar impedimentos, propiciar recursos dissuasores e possibilidades de retaliação. Descontado aquilo que, de um modo óbvio, pode ser isolado e neutralizado pelo direito positivo – mentira, difamação, calúnia, etc... -, parece caber ao grande resíduo inimputável em termos legais – as artes da interpretação - a prerrogativa de exercer efeitos de amedrontamento. O menos que se pode dizer é que tal sentimento é genuíno: praticamos intepretações sobre os outros, tanto quanto tememos interpretações dos outros sobre nós mesmos. De minha parte devo dizer, que não ficaria incólume se alguém me comunicasse que está a escrever minha biografia. Há, portanto, sobretudo para os vivos, o que poderíamos designar como uma legítima agonia do biografado.
Mas, temo que aqui o Direito seja de pouca valia. O sonho hegeliano que nos fez crer que todos os dilemas particularistas da sociedade civil têm sua solução necessária e universal no plano do Direito não mais subsiste. Da mesma forma, aprendemos a abrigar hoje a ideia de que o espaço público, para além do Direito, é configurado pela esfera da moralidade. Seria um progresso se uma ética das biografias, compartilhada por autores e editores, aos poucos se consolidasse e cuidasse daquilo que não é claro e distinto do ponto de vista do Direito.

O Ministério da Cultura, por vocação institucional e orientação política própria, lida diuturnamente com o grande tema da invenção cultural, em todas as suas formas. Sua missão é cuidar deste patrimônio e definir políticas para sua expansão. O principal recurso simbólico para exercer tal missão é o compromisso com a liberdade de criação, em todas as suas formas. Que o Presidente da Biblioteca Nacional tenha sido indicado pelo Ministério da Cultura, para falar nesta ocasião, isto não constitui um acaso. A maior casa dos livros do país proporciona um excelente ponto de partida para a defesa da liberdade do espírito criador.

Brasília, 21 de novembro de 2013.




[1]. Professor Titular de Teoria e Filosofia Política da Universidade Federal Fluminense; Investigador Associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Pesquisador 1 A do CNPq e Membro da Ordem do Mérito Científico (MCTi/Brasil). Desde abril de 2013 preside a Fundação Biblioteca Nacional.