quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Um homem sem crenças?


Renato Lessa
Para Manuel

Conheci Manuel Villaverde Cabral no século passado, nos idos de 1998, na altura de uma viagem que fez ao Brasil. Havíamos antes trocado mensagens sobre a possibilidade de participação do finado Iuperj – então sob minha direcção – no consórcio do ISSP, no qual Manuel sempre foi um dos grandes animadores e entusiastas. Fundamentalista dos inquéritos, a Manuel interessava a presença de uma instituição de pesquisa brasileira naquela rede internacional e vislumbrava possibilidades inéditas de comparação, pela escala e pela diversidade do país em questão. Do meu lado, embora não partícipe pessoal da obsessão pelos inquéritos, a coisa parecia-me interessante, já que ensejava a possibilidade de colaboração institucional entre o Iuperj e o ICS.
Nada muito auspicioso para o início de uma amizade, essa aproximação entre o aficcionado por inquéritos e o filósofo político céptico e nefelibata, para quem os números parecem ser uma maldição legada à filosofia, e ao pensamento em geral, pela esotérica seita dos pitagóricos... Mas, qual o quê, a polimatia inacreditável do personagem e a ausência em sua verve de nada que não possa dar ensejo a conversas intermináveis e não-triviais acabaram por dissolver a ameaça de falhanço na interação. Caso confirmado, tal falhanço teria feito a minha vida menos interessante, nos anos que se seguiram à visita do Dr. Villaverde ao Brasil.

Apanhei-o em um hotel no Leme e, após um almoço que prenunciou os exageros pantagruélicos dos anos que viriam, andamos a dar voltas pelo Rio, a culminar com uma incursão à estrada que atravessa a favela da Rocinha, ao pé do bairro de São Conrado. Dos riscos aos quais nossos fígados e artérias haviam sido submetidos, na primeira de uma larga série de refeições excessivas, passamos, pois, ao risco ordinário da deambulação por sítio pouco ortodoxo. Ao fim da jornada, já podíamos nos considerar como amigos (e sobreviventes...). Pouco sabíamos um do outro – na verdade, até que já sabíamos bastante -, mas havíamos instalado em nós mesmos um poderoso software no qual as aventuras e experiências dos anos subseqüentes viriam a se fixar.
Conheci, portanto, Manuel há cerca de doze anos. Não foi necessário muito tempo para que nos tornássemos amigos de infância. Como se eu tivesse vindo ao mundo na freguesia de Rosto do Cão, na Ilha de São Miguel, ou Manuel no bairro carioca da Muda (local no qual os veículos à tração animal “mudavam” os burros que os puxavam, na direcção da Floresta da Tijuca). O facto é que a hipótese apresentada, e jamais verificada, por Michael Curtiss ao final de Casablanca - a do “início de uma bela amizade” entre Richard Blaine e o Cap. Renault - foi plenamente confirmada no nosso caso.
A amizade com Manuel nutriu-se, para além do que desenvolvemos entre nós, de uma outra amizade, das maiores que ele teve, por toda sua vida. Falo de alguém que aqui de certeza estaria, e que segue a freqüentar nossas conversas e memórias. Falo de Fernando Gil, a quem, pouco depois de nos conhecermos, ainda em 1998, Manuel apresentou-me em Maputo. Tornamo-nos, em pouco tempo, - Fernando e eu - muito próximos e afins, em uma amizade como o quê instalada na imensurável amizade que unia Manuel a Fernando. O horizonte circular da amizade entre Manuel e Fernando acabou por circunscrever  minha própria amizade com o segundo e a frequentar a que mantenho, como uma espécie de património afectivo precioso, com o primeiro. Quando juntos fomos a Aspe-en-Osse, nos Pirineus Atlánticos, nos despedir de Fernando, em março de 2006, tal superposição de panos afectivos, longe de ser dissolvida,  condensou-se na amizade singular e inegociável que me traz a esta homenagem.
Faço a nota aqui, nem tanto por apego biográfico, mas para introduzir o meu argumento a respeito do que dizer a Manuel – e aos amigos e colegas que aqui estão – na circunstância desta homenagem e para, de certo modo, trazer um pouco, à esta ocasião a presença do Fernando. Além do que, em fórmula mais directa, meu próprio argumento muito devém dessa experiência de amizades intercaladas.
Longe de ser um dogmático, Manuel pode ser definido como um truth seeker. Em outros termos, a experiência com a verdade está, a meu juízo, fixada em sua trajetória intelectual. O mais, são epifenômenos: livros, artigos, marcadores de produção científica, posições, honrarias... Tudo isso conta, por certo, mas temos aí um sujeito para o qual a experiência com a verdade adquiriu uma dimensão ética, para além das aventuras da cognição. Uma experiência que atravessa as múltiplas facetas desse intelectual nada ordinário e um tanto cubista: o historiador, o sociólogo político, o militante, o intelectual público, o institutional builder, o portador de uma cultura estética oceânica (artes plásticas, literatura, música, etc)...
O tema da verdade apareceu – e permaneceu – como um elemento permanente em nossas trocas intelectuais. Não falo da verdade no sentido da velha metafísica, mas em cariz deflacionado e, por assim dizer, imediato e presente em indagações do seguinte tipo: sob que condições podemos dizer que conhecemos algo e que possuímos justificativas e protocolos sustentáveis para tal? Em que condições podemos dizer o que é o caso? O que acontece connosco quando dizemos que sabemos algo?
De minha parte, apresentei-me ao “debate” com Manuel munido dos argumentos colhidos na tradição do cepticismo filosófico, condensados, penso, na engenhosa ideia desenvolvida por Nelson Goodman de que nossas proposições sobre o mundo estão, antes de tudo, inscriptas em quadros de referências que tornam possíveis tais proposições. A pretensão de inscripção ontológica directa dessas proposições diz da vocação irremediavelmente alucinatória da cognição dos humanos.
Não sendo Manuel um empirista rústico – longe disso -, não foi difícil perceber a sua atenção para com o permanente abismo epistemológico, intercalado entre (i) correlações, mesmo as que se apresentam como mais significativas, e (ii) juízos de causalidade. Um abismo tanto maior quanto mais se trata de investigar o inaudito, o incomum, ou mesmo, por vezes, eventos cujas distribuições de freqüência aparecem como caóticas. Enfim, a percepção do abismo indica que há algo nesse sujeito que pode abrigar alguma dúvida céptica, ao par de uma recusa à misologia da suspensão preguiçosa do juízo.
Mas foram as questões provenientes da minha aproximação com a reflexão aberta por Fernando Gil que terminaram por frequentar as tertúlias, digamos, meta-teóricas com Manuel. É nesse preciso sentido, que as interacções que antes mencionei acabaram por se superpor. Três temas da singular reflexão filosófica de Fernando Gil são – ou deveriam ser - de interesse compulsório para os que se ocupam de questões que andam à volta com o enigma da verdade: crença, evidência e convicção. São temas que estiveram sempre presentes na obra de Fernando, e que se encontram precipitados em seu último trabalho de fôlego, La Conviction, editado em 2000. 
Um dos pontos aos quais Manuel e eu sempre retornamos em nossa troca assistemática diz respeito ao tema da crença, um dos temas gilianos mais permanentes. Nunca fui capaz de convencê-lo a respeito da centralidade ocupada pelas crenças nas operações mais básicas do assim chamado homo sapiens. Manuel, a propósito, define-se como um sujeito sem crenças, e eis aí mesmo, creio, o lugar no qual se fixa a sua crença mãe – a sua Ür-Glaube -, a de que não possui crenças. Em outras palavras, Manuel crê que não possui – ou não sustenta – crenças. Hegel, em uma certa altura, disse que só uma obra de arte pode refutar uma obra de arte. Em direcção semelhante pode-se asseverar que só uma crença pode cancelar as demais crenças. No caso de Manuel, o fenômeno adquire fisionomia mais grave: é o próprio sujeito que se apresenta como portador de uma crença de que está imune a todas as crenças.
Auto-engano? Mauvaise conscience? Inautenticidade? Suspeito que nenhuma dessas opções é capaz de descrever a dialética manuelina a respeito das crenças. Suspeito, ainda, que tal atitude é, por maioria de razão, condição para exercer sobre as crenças uma inspecção crítica permanente. Algo que só se torna possível pela presença e pela operação de uma crença inegociável em um ethos de integridade intelectual. A crença na ausência de crenças faz, pois, sistema com o tema da experiência com a verdade. Mas, não sendo exactamente um Ulrich, Manuel-sem-crenças possui imensas qualidades. Uma delas é fazer do meu falhanço em “vencê-lo” quanto ao tema da crença uma das razões para não desistir de mim.
Leitor inveterado de Sebald e Luhman, a perspectiva manuelina de observação da vida social tem muito do ângulo de uma história natural[2]. Falo de uma atenção aos processos não-intencionais que circunscrevem os domínios nos quais acreditamos ecercer livre arbítrio e, mesmo, escolha caprichosa. Esse sociólogo, por assim dizer, naturalista, ao contrário do que se pode supor não é imune ao encantamento diante do que se faz no terreno imediato da acção humana. É o acréscimo inaudito de sentido, inscripto na circunstância imediata – seja ele um fragmento do Pierrot Lunaire, de Schoenberg, ou uma consigna política soixante huitarde – que, desconfio, o encanta. E isso apesar de não abrir mão da crença de que experimentos singulares são precipitações de tendências e processos gigantescos. Esta, sim, é uma crença villaverdiana inegociável.
Encerro com o tema da experiência com a verdade. Há aqui um argumento de Fernando Gil que tem estado a rondar as conversas com Manuel, e que faz com que se nos avizihem os tópicos da evidência e da convicção . Há três modos básicos, por meios dos quais, experiências com a verdade são possíveis: a prova, a demonstração e a argumentação. Por não ser um dogmático, Manuel, creio, afasta-se do modo da demonstração como forma de validação. Um modo que, como sabemos, exige nada menos do que verdades universais a montante e corolários necessários a jusante. Não sendo essa a experiência com a verdade que o anima, Manuel apega-se a argumentações e provas, tomando-as como complementares e necessariamente vinculadas.
As experiências com a verdade, fundadas nos modos mencionados, dizem respeito à uma relação entre o sujeito que sabe e algo estabelecido em seu exterior: há sempre algo distinto de si que deve ser demonstrado, provado e argumentado. No entanto, há uma experiência com a verdade distinta, de caráter privado e, mesmo, solipsista inscripta em outro modo possível de fixação da verdade, o da evidência. Um modo que produz efeitos de conhecimento anteriores à operação dos modos já apresentados, e que reside na relação, um tanto abscôndia, do sujeito com seu próprio saber.
Que Rousseau sustente – e nos convença - que a condição originária dos humanos seja marcada pela mais completa igualdade natural, ou que Hobbes também o faça, a respeito da necessidade do medo da morte violenta como suporte do liame social, isso tudo diz respeito a uma forma de validação fundada na argumentação (ainda que,por vezes, tenham – sobretudo Hobbes – pretensões à demonstração).
Mas, de qualquer forma, como eles sabem isso? Se não vale o recurso à história, execrado por ambos como fonte de erros, absurdos e desorientação, a quem – ou ao quê – apelar como potência de elucidação? À razão, por certo, mas há algo de especial nessa “experiência” com tal potência. Uma experiência que não advém do mundo “exterior”, mas de domínios introspectivos e, mais do que isso, solipsistas. A filosofia política tem se afirmado como um saber fundado em crenças que encontram na evidência – e não no trio antes mencionado (prova, argumentação, demonstração) – a sua sustentação por assim dizer originária.
Há, de certeza, aqui uma aproximação possível com o tema freudiano da onipotência do pensamento, tomado de empréstimo a Fraser e desenvolvido por Freud em Totem e Tabu. Falo, em particular, da passagem alucinatória que faz com que processos psíquicos internos sejam tomados pelo sujeito como antecipações do desenho do mundo exterior e “real”. A psicologia faz-se ontologia, pela acção desse salto onipotente. Olho para Hobbes e Rousseau e vejo praticantes da onipotência do pensamento. Há, asseguram-me meus amigos psicanalistas, tratamento clínico para tal afeccção, digamos, patológica. Mas, eu pergunto, quanto filósofos políticos e inventores de mundos, em geral, foram ceifados pelo sucesso desse tipo de clínica?
O interessante é que o solipsismo contitutivo da faina dos filósofos políticos pretende configurar o mundo público. Nesse sentido preciso, filósofos políticos são inventores de mundos e não praticantes de protocolos de descrição. Com versões do ceticismo moderno, via Wittgenstein e Goodman, aprendemos que os humanos ordinários são praticantes de ways of world making, através da utilização de símbolos (aqui, também, Ernst Cassirer). Ainda que tal experiência com a elaboração e manipulação simbólicas seja eminentemente social, há nela uma dimensão de solidão e introspecção, presente no salto, expresso pela linguagem, da atribuição de sentido ao mundo.
Tal salto, tal como de forma sagaz assinalou Bertrand Russel, é marcado pelo solipisismo originário da atribuição de sentido, que foge a regras semânticas e denotativas usuais. Os que produzem espanto quando falam do mundo, acrescentam a este significados cuja origem se encontra na evidência e na intuição e não na experiência ordinária.
 É essa passagem da evidência para a experiência – a passagem ao acto própria da filosofia política - que faz da invenção política um antídoto permanente à repetição e às inércias sociais. Há, por certo, muita sociologia à volta das ideias. Afinal, temos as ideias que as nossas circunstâncias permitiram que tivéssemos, o que inclui a ideia de que nossas ideias independem das circunstâncias. Isso, concedo, aprendi com o adorável sociólogo naturalista, apegado a sua autonomia como sujeito ao mesmo tempo em que praticante de uma recusa em conceder ao livre arbítrio protagonismo na fabricação da vida social.
Mas, se há sociologia à volta das idéias, há algo que ultrapassa o campo de possibilidades estabelecido pelas determinações de ordem mais geral. Para o sujeito portador de idéias, e por elas é possuído, a experiência da intuição e da evidência abiga a dimensão abissal da alucinação, da contrafacção, da negação de desenhos rotineiros de mundos, da elaboração simbólica heterodoxa, da inevanção, da falibiliadade, do medo, da esperança e da loucura. São essas algumas das questões que eu gostaria de insistir com Manuel nos próximos setenta anos de nossa presença no planeta.
Para além disso, cabe o registro de uma dupla convergencia, no que nos têm movido intelectual e civicamente:
1.     Uma insatisfação progressiva para com as linguagens que definem a democracia de uma forma minimalista e identificada com arranjos institucionais permanentes e bem definidos. O espinosismo de Manuel encontra, aqui, afinidade plena com meu anti-institucionalismo. A democracia é, antes de tudo, um processo social que interpela, com suas potências nem sempre sistemáticas, a vida pública e institucional.
2.     A adesão a uma forma de observação da política que incorpora a história, a sociologia e a tradição das humanidade; que insiste na afirmação da força do longo prazo e recusa o cortoplazismo e a obsessão pela sincronia, que assolam a ciência política contemporânea. Uma demarcação, por fim, para com o duplo movimento de ruptura que marcou a ciência política contemporânea: (i) com a tradição das humanidades, na década de 50 do século passado – via revolução behavioristas – e (ii) com a tradição das ciências sociais – via a hegemonia ideológica do neo-institucionalismo e da “teoria” da escolha racional. Pela primeira ruptura, reinventa-se a “análise política” como exercício intelectual asséptico e isento de valores. Pela segunda, a crença na autonomia e na autarquização das intituições dispensa a considração de dimensões sociais e históricas “externas” ao mundo político.
A insatisfação e a adesão, aqui mencionadas, convergem na afirmação da necessidade do intelectual público, mais do que do académico, stricto sensu. Não se trata de anti-academicismo juvenil, mas de inscrever a vocação da ciência na perspectiva de um sujeito para o qual a experiência com a verdade realiza-se nos planos da acção e do risco.

Jerusalem-Lisboa, setembro de 2010



[1]. Professor Titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense e Investigador Associado do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa.
[2]. Penso, aqui, no livro seminal de W. Sebald, Luftkrieg und Literatur (Guerra Aérea e Literatura), que recebeu de Anthea Bell – tradutora “oficial” de Sebald para o inglês – o feliz título de A Natural History of Destruction. O próprio Sebald aprovou a transfiguração, já que a expressão é por ele utilizada no corpo do livro.