quinta-feira, 20 de agosto de 2015

A cidade e a biblioteca

(Texto de introdução ao catálogo "Rio de Janeiro 450 anos: uma história do futuro", alusivo à exposição de mesmo nome, aberta à visitação na Biblioteca Nacional, até novembro de 2015). 

A cidade do Rio de Janeiro completa, no ano de 2015, quatro séculos e meio. O que isto quer dizer? Pode a constatação contábil do depósito do tempo linear elucidar algo do significado da vida de uma cidade? Mais do que indagarmos a respeito do acúmulo de tempo e de coisas que configurou o presente, pode ser oportuno imaginar outra ordem de inquietação. Com efeito, quantas cidades incompletas se insinuaram e feneceram naquela, para os padrões locais, longa duração? Uma cidade incompleta pode bem ser uma urbe que não veio a existir, urdida e desejada, mas não fixada na experiência comum. Pode ser, ao contrário, – e o é com imensa frequência – uma cidade realmente existente, porém sem espírito; incipiente nos limites da sua materialidade: sem metafísica, filha da força dos fatos, da astúcia, do cimento armado, da velocidade e do vergalhão.

De que cidade, afinal, estamos a falar? Pergunta, para já não respondida, que se deseja fixar na experiência do espectador da exposição Rio de Janeiro 450 anos: uma história do futuro, registrada neste catálogo. Que ela acompanhe o leitor e o visitante que, ainda que tocados pela beleza e pela pungência do que aqui se verá, se dispuserem a refletir sobre o que somos, seremos e deixamos de ser.

Exibir imagens e registros do Rio de Janeiro, tal como o faz este catálogo, é algo que evoca a intuição do poeta T. S. Eliot, em uma de suas obras primas, o poema Burnt Norton: “Se todo tempo é eternamente presente/Todo tempo é eternamente passado/Todo tempo é irredimível./O que poderia ter sido é uma distração/Que permanece, perpétua possibilidade,/Num mundo apenas de especulação”. Quantos futuros possíveis estão contidos na experiência do presente? É impossível imaginar a história desta cidade sem o salto distraído no espaço vazio da especulação. Cidade de possibilidades suprimidas, de futuros precocemente desfeitos: não foi assim com sua Avenida Central, condenada a uma reedição do bota-abaixo que lhe deu origem, poucas décadas após sua inauguração, em 1906?

As imagens que aqui estão são o que são: fixam, sem dúvida, instantes pretéritos, pontos de partida do que veio-a-ser. Podem, no entanto, ser tomadas como objetos-de-tempo-e-lugar nos quais incontáveis protótipos do que não-veio-a-ser encontravam sua morada, na deslocada e pudica latência das coisas que não passam ao ato. Olhar e rever estas imagens não evoca simplesmente o passado deste aqui e agora; deste presente no qual mantemos os pés no chão e nossos olhos a exercer seu inquérito visual. Mais do que isso, trata-se de intuir e reinstituir a vigência imaginária de uma variedade de presentes passados, portadores de futuros possíveis que não vieram a ser.

Quem poderá dizer que a ausência de tais futuros, e a saudade do que não foram, não está aqui inscrita na matéria do que veio a ser, presente na composição do olho que agora os revê? O olho que vê é um órgão da tradição, tal como asseverou Franz Boas. Quanto dessa tradição, desse aprendizado tácito e irreflexivo de olhar as coisas, não deriva do sentimento de falta do que não veio a ser? Uma cidade, como uma vida, resulta também do que lhe foi extraído como possibilidade. É de admitir, ainda a presença invencível da estranha dialética – ou enigma, o que dá no mesmo - que faz com que efeitos propiciatórios emerjam dos próprios atos dizimação.

Trata-se aqui de repor o passado no futuro. Henri Bergson, que dedicou seus melhores esforços para lidar com os temas do tempo e da duração, bem autoriza a pretensão aqui anunciada. Em sua obra L’Énergie Spirituelle, de 1919,  sugeriu que sem a sobrevivência do passado no presente, não haveria a sensação psicológica da duração, mas tão somente “instantaneidade”. Há, contudo, modos distintos de duração. Pode-se, por exemplo, trazer o passado como forma de apresentação das circunstâncias que explicam o futuro. Não é o que aqui se sugere, mesmo porque nada é explicado, mas tão somente mostrado. Mais apropriado do que exigir que o passado explique o futuro, caberia interpelar a este último sobre os modos pelos quais lidou com o primeiro.

Em termos mais diretos, o que se sugere é que reflitamos sobre os efeitos do presente sobre o passado, e não nos limitemos à chave fácil de buscar a elucidação das coisas pela reconstituição linear da série temporal. O antes nem sempre explica o depois; é este que, se calhar, nos deve a apresentação das justificativas pelo que veio a ser. Trata-se de pensar o futuro, ao mesmo tempo, como decorrência do que ocorreu e daquilo que não veio a ocorrer. O sentimento de duração pode bem abrigar uma sombra, alucinatoriamente preenchida pelo que poderia ter sido.

Que lugar pode abrigar os materiais para esta especulação, para esta crono-ludo-terapia, senão uma biblioteca, ou melhor, a biblioteca da cidade, cujo passado é uma coleção de futuros possíveis? A decisão da Biblioteca Nacional em integrar o conjunto de iniciativas culturais em torno da efeméride dos 450 anos do Rio de Janeiro partiu do reconhecimento da interdependência histórica estabelecida com sua cidade de abrigo. Desde a sua criação em 1810, a Biblioteca Nacional acumula dois traços que lhe são indeléveis: instituição permanente do Estado e do povo brasileiros; instituição fixada na vida da cidade do Rio de Janeiro. É este último aspecto que, neste momento, deve ser ressaltado: como imaginar a história da Biblioteca Nacional, sem incorporar em suas identidades básicas a presença da cidade que a contém? Ao mesmo tempo, como pensar a cidade, sua memória e seus futuros possíveis, sem o que aqui se guarda? Tal ordem de questões esteve presente na escolha do recorte adotado: mostrar o Rio de Janeiro na – ou da - Biblioteca Nacional. E como os atos de mostrar nunca são inocentes, sobretudo quando lidam com o tempo, a exibição de fragmentos do que foi esta cidade trás consigo o convite a imaginar como poderia ter sido e como será.

Uma exposição a respeito da cidade não deixa de ser uma forma de intervenção. Esta se dá pela possibilidade de reflexão sobre a experiência de estar nesta cidade. Por mais locais que sejamos, compartilhamos um dos mitos brasileiros básicos, qual seja o de que o futuro arranca do presente de modo fáustico, sem qualquer dívida ou vínculo com o passado. Em nossa obsessão pelo futuro, somos imparáveis cronocidas. Não é difícil encontrar na história da cidade evidências compatíveis com tal inclinação: construímos, destruímos, apagamos, acrescentamos. A cidade, tal como a exposição o indica, é uma obra aberta, pela qual pulsões de vida e de destruição andam ao par. Nela nunca teremos a sensação das cidades prontas.

No entanto, uma cidade é sempre um abismo para dentro de si. Por mais que a ela se somem novas dimensões, é da natureza dos atos de suplementação acrescentar complexidade à vida, já que percorrem simultaneamente direções distintas e de complementaridade tensa. Com efeito, a principal intervenção contemporânea no desenho da cidade do Rio de Janeiro é orientada por uma perspectiva de restauração: com a demolição da Avenida Perimetral, devolvemos à cidade o direito de ver o mar; reintroduzimos os bondes no Centro da cidade. Parte da cidade se reinventa a partir de um desejo de recuperação do que se perdeu. Possibilidades dissipadas são recuperadas e, dessa forma, uma certa atração pelo passado – pela intuição de que em vários aspectos já estivemos em melhor situação – molda os desenhos de futuro. Somos seduzidos pelas escavações, pela sede de ver as entranhas de uma terra de idade remota, nas quais, se calhar, estão guardadas verdades e segredos dos quais nem os nomes sabemos. Olhar para as fendas do chão e sobre elas exercer as artes de um voyeurismo arqueológico. Aceder a um mundo de pedras justapostas por óleo de baleia e adivinhar os que por ali deambularam.

Uma cidade aberta em exumação, que a exige como passo necessário para o futuro. Adoramos o futuro, por certo, mas quando pensamos no que somos como sujeitos desta urbe, escavamos, abrimos buracos e dirigimos ao centro da terra perguntas cruciais que todos nos fazemos: quem somos? Quem, ou o que, fez com que sejamos o que somos? O que fazer com isso?

Uma cidade que, apesar de cronocida e devoradora precoce dos seus artifícios, exige a vigência do passado como sua plataforma de lançamento para o futuro. Em breve, saberemos praticar as artes do desaterro, teremos mares e lagoas de volta, veremos saltar aos nossos olhos o Saco de São Diogo, a Praia do Alferes, a Ponta do Calabouço. Quem sabe, acharemos o corpo de Dana de Teffé, um dos maiores mistérios da história da cidade e preocupação do grande imortal carioca Carlos Heitor Cony[1]. Porque não imaginar, ainda, a arte da remontagem de morros arrasados?

Cidade voltada para o centro da terra. Outras exigem o ar e as altitudes. Há, ainda, as fixadas em desertos, em pura matéria inorgânica. Aqui, não deixamos de ser cativos de uma vocação telúrica, de um desejo de extração orgânica do sentido entranhado em camadas tectônicas. Cavamos túneis, mexemos com a terra, arrasamos morros, soterramos o mar. Cidade de terra movediça, inimiga da imobilidade, da permanência. Quando descobrimos nossos vestígios soterrados, tornamo-nos doces e rememoriados. Sobrevém-nos a tristeza e o enternecimento típicos dos que se lembram de suas infâncias.


Escavar mais, descobrir mundos que por aqui circularam, orientar a escuta para a incontável coleção dos possíveis, fixada nos instantâneos aqui selecionados, para tentar responder às perguntas com as quais abrimos este texto. Especular sobre o que seremos e sobre o que poderíamos ter sido. Quanto da intuição exercida no modo gramatical do futuro do presente depende do exercício imaginário aberto pelo modo gramatical do futuro do pretérito? A experiência com o mundo é feita de matéria de memória – expressão que é título de um belo livro de Carlos Heitor Cony, já aqui  evocado. Memória do que aconteceu; memória daquilo a que não foi dado acontecer.

Quantas cidades, enfim, existem nesta cidade? Quantas arqueologias nela são possíveis? Não dá para ter contagem, nem sequer aproximada, dessas cidades. Sabemo-las existentes, contudo, pelos sinais finamente guardados na grande biblioteca do Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional.

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A exposição Rio 450 anos: uma história do futuro contou com a curadoria e coordenação do poeta e acadêmico Marco Lucchesi. Curadoria compartilhada com o trabalho dedicado das responsáveis pelas chefias das Divisões de Coleções Especiais da Biblioteca Nacional, a saber: Maria José Fernandes, Acervo Especial; Maria Dulce de Faria, Cartografia; Léia Pereira e Monica Carneiro, Iconografia; Vera Faillace, Manuscritos; Ana Virgínia Pinheiro, Obras Raras; Elizete Higino, Música e Carla Chianello Ramos, Periódicos.


Rio de Janeiro, junho de 2015



                                                                                     



[1]. Dana Fitscherova, judia tcheca, foi casada com o Embaixador Manuel de Teffé, de quem adquiriu o sobrenome que lhe daria triste fama. Em 1961 desapareceu, em meio a uma viagem entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Nunca mais se soube dela, viva ou morta. Foi um dos casos mais rumorosos da crônica criminal carioca dos anos 1960

Brasil: matéria de crítica, interpretação e fabricação de mundos
(Sumário de conferência a ser proferida na Academia Brasileira de Letras, no dia 25/8/2015, às 17:30, com entrada franca) 
Uma das vertentes mais instigantes da filosofia do século passado foi desenvolvida por Nelson Goodman, inspirado em intuições e argumentos de gênios tais como Ernst Cassirer e Ludwig Wittgenstein. A mais célebre tese de
Goodman sustenta que somos – os humanos – fabricantes de mundos, através da invenção e manipulação de símbolos. A forma de vida dos humanos radica, de modo inapelável, em sua incessante faina de elaboração simbólica. Não se trata, apenas, de inventar mundos imaginários. A própria vida prática, com suas implicações materiais, decorre de atos de fabricação de mundos.
A intuição de Goodman vale tanto para as biografias individuais, quando para experiências coletivas. Quero crer que possa ser, mesmo, aplicada a histórias nacionais.
Na conferência, pretendo revisitar alguns dos mais imaginativos esforços de interpretação do Brasil, indicando os efeitos de “invenção de mundos” presentes em cada um dos atos interpretativos. O objeto interpretado não resiste a sua interpretação. É, antes, um efeito da própria ação cognitiva que procura explicá-lo. Essa intangibilidade dos objetos, em sua solidão objetiva e exterior, é, de modo inevitável, assaltada pelas artes da elaboração simbólica. Delas resultam formas de ação no mundo, por meio das quais a imaginação se faz decantar, tanto na configuração das coisas como na do olho e do espírito que as percebem. A um só tempo, no sentido e no sentimento do mundo, em chave drummondiana.
A intenção é a de considerar obras tão díspares quanto ímpares, criadas por autores tais como Sylvio Romero (Brasil Social), Gilberto Freyre (Interpretação do Brasil), Sergio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil), Mario de Andrade (O movimento modernista), Oliveira Vianna (Instituições Políticas Brasileiras), Raymundo Faoro (Os Donos do Poder), Álvaro Vieira Pinto (Ideologia do Desenvolvimento) e Darcy Ribeiro (O Povo Brasileiro).
O que fazer com conjunto tão heteróclito?
Menos do que descrever com minúcias as visões ali apresentadas, importa detectar a perspectiva épica presente nos esforços de interpretação da experiência do Brasil como país. A série, sem dúvida, poderia ser estendida; há lacunas imperdoáveis, mas não parece haver presenças injustificadas. A ideia de “perspectiva épica” decorre de uma fina expressão, do filósofo politico norte-americano Sheldon Wolin, crítico da infestação positivista e cientificista que assolou os estudos políticos acadêmicos, a partir dos anos 1950. Wolin chamava a atenção para a importância de uma teoria política épica, como reserva de sentido para a investigação dos objetos políticos postos no mundo.
A suposição, a ser desenvolvida na conferência, é a de que a história intelectual brasileira – em particular em seu nicho dedicado à crítica social – encerra em si mesma episódios de natureza épica, a partir dos quais imagens de país e paradigmas de ação política e social são introduzidas na vida ordinária. Os grandes paradigmas de interpretação são aqueles que dão forma à experiência da vida.
Este último ponto é importante: não se trata de  esforços de imaginação que nos indiquem o caminho para as nuvens, para fora do mundo. Ao contrário, eles trazem-nos para o mundo: são modos de suplementação da experiência. Como tal, são instituidores de sentidos dotados de implicações de natureza prática. Parte não desprezível da resposta à pergunta clássica de Jean-Jacques Rousseau – o que faz de um povo um povo? – está contida nos atos simbólicos de invenção de experiências compartilhadas. A outra parte tem a ver com o acaso, mas este, por definição, está fora da linguagem e desaba sobre nós com a força invencível daquilo que não se faz antecipar pela imaginação.