quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Duas inversões nada republicanas

(Versão ampliada de coluna publicada na revista Ciência Hoje, Outubro de 2016)

Crises políticas, tal como a atravessada pelo país nos últimos tempos, produzem fortes efeitos de ofuscação. Tendem a ser feéricas e dotadas de tal fertilidade de facetas que acabam por confirmar uma bela intuição da lavra do escritor israelense Amós Oz, a de que o excesso de luz por vezes ofusca a verdade. Temos, por certo, que usar com pudor o termo “verdade”, substituindo-o, se calhar, pela mais comedida expressão “capacidade de observação”.
Com efeito, os hábitos correntes da análise política – acadêmica ou jornalística – com frequência vinculam o analista ao abismo da conjuntura e do momento imediato, como se ambos fossem cenários suficientes para a detecção da ordem de causalidade que os instituiu e da série de efeitos que deles pode ser deflagrada. O impacto do instante, não de raro revelado e conduzido por comportamentos e formas narrativas fixadas em enredos novelescos, gera, a um só tempo, aturdimento com o presente e expectativa com relação à próxima atração. Nossa percepção da passagem do tempo, por assim dizer, parece afetada tanto pela inoculação diária de espanto, quanto pela construção da expectativa do instante seguinte.
A divisão intelectual do trabalho presente no campo das Humanidades – tal como a inscrita nos demais – inibe a cooperação transdisciplinar, como bem sabemos. Em particular, a análise política ganharia  maior abrangência de perspectiva se incluísse em suas observações a dimensão do tempo histórico. Para além dos jogos imediatos e configuradores da trama momentânea da política, e da captura que exercem sobre nossas atenções e aflições, é importante lembrar que todo momento e toda conjuntura, ainda que possuam aspectos presentes que lhes são inerentes, constituem-se como pontos no tempo sobre os quais desabam efeitos provenientes do passado. Dito de outro modo, além da dimensão da espacialidade, por nós vivida como sensação não dotada de tempo, a experiência dos humanos é fortemente afetada pela presença do tempo e da duração. Nenhum momento, por mais dramático e encerrado em si mesmo, é vazio de história: não há, pois, evento desprovido de passado e de futuro. Este último é matéria de pura conjectura. Já o primeiro, trata-se de algo sobre o que podemos e devemos pensar, com base na memória e em conjuntos sistemáticos de perguntas.
Este longo exórdio pretende tão somente sugerir duas ordens de fatores, a meu juízo, constituintes da crise política vivida pelo país neste último ano. Temo que a “leitura” da crise, sem os marcadores que serão indicados, torne nosso exercício reflexivo refém de espantos e expectativas voláteis. Não se trata de deflagrar uma regressão ao infinito, mas de indicar duas tendências macro-políticas exponenciadas pela história política recente do país. Ambas podem ser designadas como formas de inversão que afetam o exercício da representação política no Brasil, a partir da década de 1980.
A primeira delas consiste na inversão das relações usuais entre campanhas eleitorais e exercício dos mandatos. A observação habitual da política baseia-se na suposição de que as campanhas são meios para a obtenção de mandatos – tanto executivos como legislativos. Pois bem, a inversão para a qual chamo a atenção tem a ver com o fato de que no processo eleitoral, tal como o vivemos desde a década de 1980, as campanhas ganham maior relevância em detrimento dos mandatos, e estes, por sua vez, apresentam-se como fator relevante e propiciatório para campanhas ulteriores.
A partir da década indicada, alguns fatores tornaram-se salientes: financiamento público da atividade partidária (Fundo Partidário), financiamento privado de campanhas (pessoas jurídicas e privadas) e forte financiamento ilegal das mesmas. O volume de recursos e a quantidade de “pessoal” envolvido - entre candidatos e “profissionais de apoio”-  configuram a presença de uma atividade econômica regular, mobilizada em bases permanentes, dado o calendário bienal das eleições brasileiras.  A sugestão que aqui deixo é a de que o fenômeno eleitoral brasileiro deve ser interpretado como “case” de Economia Política, e não mais como singela aplicação dos princípios representativos.
Outra ordem de inversão, também agravada a partir de década de 1980, mas com DNA proveniente dos tempos do regime militar, tem a ver com a progressiva construção de uma república fundada na representação dos representantes. Mais do que a distinção entre representantes e representados, como traço constitutivo da representação política, estabeleceu-se no Brasil um abismo entre os dois universos. As relações entre ambos são preenchidas por temporadas de captura de sufrágio, pelas quais partidos cartoriais, sem nexos regulares com o mundo extra parlamentar, buscam obter pela disputa eleitoral volume de votos suficiente para lhes garantir presença parlamentar e executiva. A representação, uma vez constituída, vincula-se a um modelo no qual o Poder Executivo exerce forte capacidade de atração. Um mandado parlamentar “bem sucedido” acaba por ser aquele no qual o representante se faz representar na esfera do Poder Executivo. O mecanismo configura, portanto, um modelo de representação dos representantes, em detrimento das expectativas tradicionais de que os representados constituem, afinal a base do sistema representativo.
Nas próximas duas colunas, tratarei de modo  mais particularizado de cada uma das inversões aqui indicadas. Fiquemos, por ora, com esta introdução.


 

sábado, 18 de junho de 2016

Introdução à lógica temerária


 Um dos últimos vazamentos de recente e copiosa delação premiada sustenta que o presidente interino teria estado envolvido em tenebrosa transação. O indigitado, além da costumeira afirmação de inocência, saiu-se com esta: se fosse verdadeira a acusação eu não poderia ocupar a presidência da república.

Nada de novo no padrão de reação indignada e na afirmação de inocência. Esse é o modelo que tem sido seguido por todos os citados. O que é de notar como fato inovador é o extraordinário uso da inferência lógica, na resposta interino-presidencial. Vejamos: em linguagem natural, o denunciado declara que caso fosse verdadeira a sua desonestidade, isso teria como implicação a impossibilidade do mesmo vir a ocupar a presidência. O que se segue, portanto, é o seguinte: se eu estou a ocupar a presidência, logo sou honesto.

O que equivale à seguinte inferência lógica:

1.     Se p é não honesto, logo p não pode vir a ser q (presidente);
2.     p é q (presidente);
3.     logo, p é honesto.

Um brilho de inferência. Digno de prêmio (ig)nobel, na categoria “falácias.”


Trata-se do truque de estabelecer o fundamento de uma inferência com base na conclusão do que ela mesma quer provar. Algo que os antigos céticos definiam como “dialelo”, ou raciocínio circular. Em outros termos, coisa para enrolar a malta. A inferência em questão bem vale, enfim, como introdução à lógica temerária. Tempos difíceis.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

A biblioteca e seu mito de origem

A biblioteca e seu mito e origem
(versão integral de texto publicado no jornal O Globo, em 17/6/2016)

O principal programa ativo de cooperação cultural entre Portugal e Brasil foi lançado no Rio de Janeiro, no início de maio de 2016. Trata-se da Biblioteca Digital Luso-Brasileira, produto de um acordo de cooperação firmado em 2014 pelas Bibliotecas Nacionais de Portugal e do Brasil. A nova biblioteca revestiu-se à partida de forte dimensão simbólica: a origem da Biblioteca Nacional brasileira decorre, afinal, da magnífica Real Biblioteca portuguesa, trazida por ocasião da transferência do Estado português para cá, entre 1808 e 1821. É como se a Biblioteca brasileira retornasse a Portugal e, ao mesmo tempo, Portugal retomasse a transferência de seus acervos bibliográficos para o Brasil.
A Biblioteca Digital Luso-Brasileira, contudo, faz mais do que fundir as duas parceiras. Cada uma das duas instituições coordena em seus países redes importantes de acervos digitais, o RNOD (Registo Nacional de Objectos Digitais), em Portugal, e a Rede Memória Virtual Brasileira. Ambas as redes reúnem cerca de 60 instituições culturais: bibliotecas, arquivos e museus. A elas somam-se, ainda, a Torre do Tombo, em Portugal, e o Projeto Resgate Barão do Rio Branco (https://www.youtube.com/watch?v=AuCs5Nr5fBk), projeto sediado na Biblioteca Nacional brasileira voltado para a recolha de acervos digitais a respeito do Brasil em bases internacionais.
Nos últimos três anos, a Biblioteca Nacional brasileira, além de cuidar da infindável faina da recuperação patrimonial, por meio de obras e restauros e de exposições de seus acervos, tratou de expandir suas atividades digitais. Iniciada há dez anos, na gestão de Muniz Sodré, a BN Digital hoje abrange um conjunto significativo de acervos compartilhados, tais como a Brasiliana Fotográfica Digital, desenvolvida em parceria com o Instituto Moreira Salles, a World Digital Library, na qual participa do Comitê Executivo, ao lado das BNs da França, Alemanha, China e Qatar, além da Library of Congress (EUA) e da Biblioteca de Alexandria e o projeto e curso de uma Brasiliana Iconográfica Digital, em associação com a Pinacoteca de São Paulo, o Instituto Itaú Cultural e o Instituto Moreira Salles.
A retaguarda dessa política tem sido garantida pela qualidade dos acervos especiais da BN - Obras Raras, Música, Iconografia, Manuscritos, Cartografia – e das coleções de Obras Gerais e de Periódicos e Publicações Seriadas, além dos laboratórios de digitalização, preservação e restauro. A gestão desse conjunto, já há tempos, é reconhecida como modelar, a despeito da reiteração do mantra de que a instituição vive em permanente estado terminal.
Pôr a Biblioteca Nacional ao alcance dos brasileiros – e do público internacional – foi uma cláusula pétrea seguida pela direção da Biblioteca nesses últimos três anos. O direito à livre expressão cultural deve ser acompanhado de igual prerrogativa no que se refere à recepção e suplementação culturais. Com frequência, tendemos a associar política cultural à expressão cultural, fundada por vezes em marcadores identitários sempre rebarbativos e idênticos a si mesmos. Há que, contudo, suplementar tal expressão, tanto por meio da troca cultural como do acesso à cultura erudita e literária. Pôr a Biblioteca Nacional na vida dos brasileiros é, antes de tudo um ato de resistência à recessão cultural que nos acompanha, presente nos indicadores vergonhosos de leitura e de alfabetização plena.
A Biblioteca Nacional não pertence a governos, por definição temporários. Sua sustentabilidade ao longo do tempo exige, por certo, atenção governamental. Mas requer sobretudo que se leve a sério o fato de que é uma instituição permanente do Estado brasileiro. Não pode, pois, ficar a depender de políticas de governo e, sobretudo, vulnerável à indiferença burocrática crônica.
Este é um país que, por acidente feliz, recebeu em 1808 uma grande biblioteca europeia e decidiu mantê-la em 1825, como item do Estado nacional que então se criava. Retenhamos esse belo mito de origem. Mitos tanto podem servir para fixar tradições, quanto para obrigar a pensar se estamos à altura daquilo que proporcionam. Que o laço reestabelecido com a Biblioteca Nacional portuguesa dê força e sobrevida à percepção do quanto nossa integridade civilizatória e força reflexiva dependem de instituições como a Biblioteca Nacional do povo brasileiro.

Renato Lessa
Presidente da Biblioteca Nacional

(Abril de 2013/Maio de 2016)