sexta-feira, 11 de maio de 2018


Sem Lula, esquerda ou se une ou estará fora do 2o turno, diz Lessa
'Neutralização da esquerda' começa com impeachment e acaba com prisão, diz professor
9.abr.2018 às 2h00
Patrícia Campos Mello SÃO PAULO

A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fecha o ciclo de neutralização da esquerda no Brasil.
"Esse processo começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e termina com o impeachment preventivo de Lula", diz Renato Lessa, professor de filosofia política da PUC do Rio e investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Para Lessa, se os pré-candidatos da esquerda não compuserem uma frente, há o sério risco de a eleição de 2018 ser disputada entre um candidato de centro- direita e outro de extrema direita.
"Sei que vai predominar a discussão sobre a cabeça de chapa, mas essa visão de curto prazo vai ter que ceder lugar a uma conversa estratégica, ou teremos a perspectiva real de 35% da opinião política não ter expressão nas eleições de 2018, o que é ruim para a democracia".

Folha - Qual é o significado da prisão do ex-presidente Lula? 
Renato Lessa - Trata-se de algo gravíssimo, de conseqüências imprevisíveis. E é um processo que se completa. Cada vez mais perde materialidade o fato inicial que teria levado ao impeachment de Dilma Rousseff, as pedaladas, que eram práticas triviais, embora juridicamente condenáveis, nos governos anteriores.
No contexto de perda de maioria parlamentar de Dilma, isso levou ao impeachment. No entanto, achava-se que esse processo se esgotaria com o impeachment e a virada de governo, a substituição pelo poder do outro grupo. Mas essa manobra para trocar o grupo no poder se completa é com a prisão de Lula.
Pensando historicamente: o governo de Getúlio em 1945 termina não porque Getúlio era um ditador. Ele tinha deixado de ser um ditador, os militares que o apoiaram enquanto ditador o depõem quando ele começa a democratizar o regime. O governo João Goulart acaba do jeito que acabou. E não o governo Lula, mas Lula como personagem político que poderia voltar também sai de cena. É algo para se pensar: como terminam os governos de extração popular no Brasil?
O que se produziu nos últimos dois ou três anos foi um processo de neutralização de um segmento importante da política brasileira, a esquerda.
Folha: Em que sentido a esquerda está neutralizada hoje?
Renato LessaHouve um deslocamento do governo de uma maneira heterodoxa e depois a neutralização política do provável sucessor, Lula. 
São dois impeachments. Esse processo começou com o impeachment da presidente Dilma Rousseff e termina com o impeachment preventivo de Lula. Quebrou o vínculo da esquerda com sua base eleitoral, popular, tirando o principal líder de cena, Lula.
Um aspecto importante desse processo é o eixo Curitiba-Porto Alegre, com um grau impressionante de coordenação. Ao mesmo tempo, do lado do Supremo Tribunal Federal, uma negação de habeas corpus por 6 a 5. É inusitada a mudança da pauta não tratar do caso genérico em primeiro lugar para depois tratar dos casos particulares. Se fosse outra pauta, o resultado era outro, Lula não seria preso, o jogo continuaria.

É um processo obscuro, que produz conseqüências graves. O país está sendo governado pelo sindicato dos deputados. Os representantes se representam no governo, não representam ninguém por trás deles.
Essa ideia de que justiça se faz com a punição, esses comentários panglossianos de que com a prisão de Lula está garantido o Estado de Direito. É a hegemonia do discurso da limpeza, de prender todo mundo. O brasileiro quer ter um preso para chamar de seu. Ficamos com essa concepção de justiça. Pode continuar com fome, desigualdade, pessoas seis horas por dia no ônibus para trabalhar. Tudo pode. Mas tem que haver lisura.

Folha: Quão eficiente foi a manobra de neutralização da esquerda?
Renato Lessa: Idealmente, configurada a impossibilidade prática da candidatura de Lula e, para mim, já está configurada, é preciso trabalhar com o modelo que os uruguaios têm há bastante tempo, uma Frente Ampla de recomposição da democracia.
Folha: Mas o PT aceitaria uma Frente Ampla sem ocupar a cabeça da chapa?
Renato Lessa: Por isso comecei o raciocínio dizendo idealmente. Seria interessante que o Ciro Gomes conversasse com o Fernando Haddad, a Manuela D'Ávila, e alguém um pouco mais para o centro. A criação de uma frente ampla voltada para a recuperação do ambiente democrático e sinalizando pautas de igualdade social. E Lula deveria deixar uma mensagem de convergência.

Os candidatos desse campo terão de convergir para que algum deles chegue com chance de vitória no segundo turno. Há o risco real de haver um segundo turno entre a centro direita e o inominável, a extrema direita. Na prática, sei que vai predominar a discussão sobre quem vai estar na cabeça de chapa, mas, em algum momento, essa visão de curto prazo vai ter que ceder lugar para uma conversa estratégica, ou então teremos a perspectiva real de 35% da opinião política não ter expressão nas eleições de 2018, o que é ruim para a democracia.
Folha: A prisão do Lula sinaliza que todos os políticos podem ser presos, ou há duas velocidades e duas medidas?
Renato Lessa: Mesmo que continuem a prender políticos, vão ser dois pesos e duas medidas, porque não vão conseguir prender, do outro lado, alguém com a estatura do Lula. Não existe um equivalente que desmonte o campo da centro direita brasileira, que represente um desafio brutal como a neutralização do Lula significa para o campo da esquerda.

Mesmo que a Lava Jato continue, ela vai pegar personagens periféricos, ou governadores como Sergio Cabral, que destruiu o próprio estado. O Aécio Neves não corresponde ao Lula em termos de estatura na organização e ele foi protegido. O próprio presidente Temer, até certo ponto, não é processado porque tem o sindicato dos deputados que garante a sua proteção. E mesmo que vier a perder o foro, sem mandato, o seu processo vai começar na primeira instância e sendo o presidente um especialista jurídico, vai transitar em julgado daqui 50 anos, mesmo se mantiverem a decisão de segunda instância.
Folha: Como fica a esquerda com Lula fora do jogo?
Renato Lessa: A esquerda tem um desafio enorme. Os nomes estão postos "“ Ciro Gomes, talvez Fernando Haddad e, com menor expressão eleitoral, mas com expressão política, a Manuela Dávila. Guilherme Boulos, pelo PSOL, vai numa linha completamente autonomista. O PSOL tem a perspectiva de colher os despojos, não de cooperar numa frente comum.
Faria sentido esses três nomes conversarem e incluírem elementos de centro mais progressistas. Não sei se todos os tucanos estão satisfeitos
com o que está acontecendo, talvez também o campo da Rede. É necessária uma conversa para a recomposição de um campo de centro- esquerda reformista moderno, capaz de dar segurança para a economia, mas, ao mesmo tempo, repor a perspectiva social.
Uma das questões é a dificuldade de encontrar o candidato de centro. Toda vez que se cita o candidato que seria de centro, em qualquer país do mundo, ele seria considerado de direita. Geraldo Alckmin (PSDB) não é de centro, tem valores conservadores. Não é um xingamento, e só uma topografia. Rodrigo Maia (DEM) também.
Folha: Qual é o impacto da comoção em torno da prisão do Lula? Qual é a força e durabilidade desse movimento?
Renato Lessa: Ela vai permanecer durante algum tempo. Mas vai depender muito de como a prisão vai ser feita, quanto tempo Lula vai ficar preso e qual é a capacidade que ele vai ter de falar da prisão, sua relação com o mundo aqui fora. A prisão produz efeitos, mas eles vão aos poucos se incorporando na rotina das pessoas, a menos que ele tenha um operador político aí ativando isso de alguma maneira.
O país hoje tem uma extrema direita aberta, com visibilidade, que representa o resíduo de boçalidade presente no Brasil, mas entrou no sistema político e tem um candidato competitivo. Não acredito que esse candidato vá perder votos porque o Lula vai sair. Esse candidato expressa demônios que estavam no fundo da garrafa e foram destampados a partir do processo de impeachment. Algo que mesmo os líderes do impeachment não imaginavam que pudesse acontecer. Os caciques do PMDB e PSDB não imaginavam que essa subcultura protofascista se disseminasse tanto.
Enquanto isso, não há discussão de uma agenda que precisaria ser discutida na eleição. Ninguém pode negar que a questão da Previdência precisa ser discutida, embora eu discorde da forma como o governo Temer fez isso. Uma boa hora para discutir é uma campanha eleitoral, com conteúdo, não só com marketing político.
Essa discussão não foi levada ao cidadão, tentou se passar essa agenda através de uma mudança heterodoxa no ciclo político. Apesar de dizerem que Temer mantinha ótimo trânsito com o Parlamento, a mãe de todas as reformas, da Previdência, não vingou, a reforma trabalhista é uma medida provisória que vai vencer daqui a pouco. A única reforma que passou foi o teto de gastos, que fica prejudicado se a da previdência não passar.

RAIO-X
Formação

- graduado em ciências sociais pela Universidade Federal Fluminense (1976)
- mestre (1987) e doutor (1992) em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio (IUPERJ)

Cargos

- professor associado de filosofia política na PUC-Rio
- investigador associado da Universidade de Lisboa
- ex-presidente da Fundação Biblioteca Nacional (2013-2016) - ex-diretor-presidente do Instituto Ciência Hoje (2003-2013)

Sem Lula, esquerda ou se une ou estará fora do 2o turno, diz Lessa 09-04-2018 INTERNET 7 de 7
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Boulos na Roda Viva
(Renato Lessa)
Muito boa a entrevista de Guilherme Boulos, ao programa Roda Viva da última segunda-feira (7/5). Boulos sobrou, diante de uma bancada não muito iluminada. Sua performance poderia ser melhor, se fosse entrevistado por gente mais qualificada. No geral, enfrentou perguntas toscas, confusas e patéticas, que não chegaram a testá-lo e a exigir esforço de reflexão mais complexo. Boulos, por certo, não tem culpa na matéria e saiu intacto, tendo passado de forma clara seu recado.
Boulos enfrentou com clareza duas questões cruciais para qualquer governo de centro- esquerda no país:
(i) a revisão da política tributária, com a tributação efetiva dos muito ricos e dos usufrutuários de dividendos, postos em uma bolha paradisíaca por Pedro Malan e Fernando Henrique Cardoso em 1996. Desde então, o país é um paraíso fiscal para quem é muito rico, detém o capital financeiro e vive de lucros e dividendos.
(ii) o tema da desigualdade como eixo conceitual e político de um programa de governo.
O lado menos feliz da entrevista foi provocado, por mais absurdo que isso possa parecer, pelo conjunto mais tosco de perguntas que lhe foram feitas, a respeito do “tipo de socialismo” desejado por Boulos e seu partido, e qual “modelo” lhes serviria de orientação. Boulos reaqueceu o velho mantra de que "cada país deve encontrar o seu caminho", e eximiu-se de qualquer crítica ao “socialismo real”. Perdeu a oportunidade de, diante de uma das maiores estultices vazadas por um de seus entrevistadores – que declarou que “onde há democracia, não há socialismo” –, explicar a importância histórica de partidos de esquerda e de movimentos sociais na afirmação de agendas igualitárias que acabaram por ser fixadas no quadro das mais avançadas democracias do pós-IIa Guerra. Nesse países, a qualidade da democracia não depende, tal como repetem os politicólogos conservadores, da “qualidade das instituições políticas”, mas da força e consistência de agendas igualitárias, no quadro do Estado de Bem-Estar Social.
Nada do que Boulos disse é incompatível com uma agenda agressiva de defesa do Estado de Bem Estar Social. Na verdade, ele enunciou – ao tratar da questão tributária – a condição necessária para tal fortalecimento. Pena que não tenha declinado o nome da coisa e reconhecido, assim, a dívida que temos – todos aqueles inscritos no campo do socialismo democrático – com o legado de reformas impostas pelos trabalhadores, e por partidos e movimentos a eles ligados, ao quadro mais geral dos regimes democráticos.
Nada do que Boulos disse o situa no campo da “extrema esquerda”. Para quem perdeu a memória do que é uma campanha presidencial de extrema esquerda, é bom olhar os vídeos das campanhas de José Maria, do PSTU, e de Luciana Genro, do PSOL de antanho.
É um alento ter um quadro como Boulos disputando a faixa esquerda da cancha, não por meio de enunciação sectária de princípios vagos e tribais, mas pela indicação de temas cruciais e tangíveis, que devem ser objeto de reforma e de reconfiguração. O que apresentou foram as tinturas mais gerais de um programa de “reformismo forte”. É evidente que há estratégia na coisa – e como não haver? –, e que Boulos, talvez seguro da posse dos votos mais à esquerda, pelos símbolos que seu partido evoca, dirigiu-se à gente que cogita buscar alternativa de centro-esquerda para a eventualidade – no sentido brasileiro e inglês do termo – do impeachment eleitoral de Lula. Que assim seja. É da vida.
O fato é que, com a excelente entrevista da segunda feira, Boulos qualifica-se para conversar com a centro-esquerda ou, com aquilo, que na política francesa se denomina como a “esquerda de governo”. Boulos parece saber que a estratégia da política do gueto é incompatível com a defesa e a aplicação do programa que propõe ao país. Espero que não o empurrem para lá...