sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Mercado e Porrada: notas a respeito de uma afinidade eletiva



(Publicado na revista Carta Capital, em 3/8/2018, com o título "O 'inominável' e o abjeto")

Renato Lessa[1]

1. O espectro da candidatura de Jair Messias Bolsonaro – doravante designado como “o inominável” – constitui ótima oportunidade para reflexão a respeito da presença do abjeto na política. Uma referência intelectual útil para tal, bem pode ser a clássica e iluminadora obra da antropóloga britânica Mary Douglas (1921-2007), apropriadamente intitulada Pureza e Perigo: uma análise dos conceitos de poluição e tabu, publicada em 1966. Não se trata aqui de apresentar uma resenha acadêmica do livro, mas de trazer à reflexão sobre nossas agruras presentes, algo alternativo à assepsia conceitual politológica, sempre a normalizar os seus objetos e a dar tratamento numérico a aberrações.

Douglas convida-nos a refletir sobre os significados da sujeira e da imundície em nossa experiência cotidiana, e o faz a partir da sugestão de que ambas podem ser percebidas como “matérias fora de lugar”. Em uma de suas anotações, tanto menciona a exposição de dejetos humanos, quanto o singelo depósito de um fio de cabelo infantil no prato de sopa. Nossos hábitos mentais protegem-nos da experiência com a imundície, revelando-a todo o tempo como discrepante e não-assimilável.

Mas, ao mesmo tempo em que o abjeto e o imundo se nos apresentam como matérias fora de lugar, parece fundamental percebê-los como parte integrante de um sistema mais geral das coisas, em curiosa coabitação com matérias em seu lugar. Trocando em miúdos, a experiência radical com o abjeto, mais do que revelar o quanto ele é liminar e insuportável, deve trazer consigo a consciência de seu vínculo com a normalidade da vida: sendo a sua expressão mais repugnante, o abjeto é aspecto revelador do sistema que  o contém e  segrega.

2. Pois bem, “o inominável” é a ostensão do que mais abjeto há no quadro político que se apresenta ao país. A abjeção inerente ao “inominável” dá-se pela defesa aberta que faz da violência na política e pela apresentação ao país de uma gramática e uma retórica do castigo. Uma forma de mundo na qual a eficácia das consequências é diretamente proporcional à quantidade de dor infringida aos inimigos. Cercado invariavelmente por homens musculosos e de semblante duro, o “inominável” percorre o país amaldiçoando os institutos civilizatórios contidos na Constituição de 1988, fundados em uma cultura de mediações e de não-letalidade como fundamento normativo de organização da sociedade. 

(Difícil não entrever na reiteração daquela companhia preferencial hiper-máscula, a força de uma obsessiva homofilia, que exige como compensação ostensão de fúria homofóbica.  Curioso personagem.)

A apologia da tortura, mais do que evocar o “heroísmo” de seus perpetradores, serve a sua reintronização no horizonte das possibilidades: ela é, a um só tempo, reparadora e antecipadora. Um homem fundamentalmente violento faz-se, assim, mito da renitente boçalidade, tão presente no meio de nós. Sua deambulação pelo país é pedagógica: ensina a gramática e a semântica de uma vida sem mediações, fundada no que ela detém de efetivamente real: a possibilidade e a necessidade de infringir castigo físico aos inimigos. Quilombolas, índios, camponeses sem terra, LGBTs, mulheres, sindicatos, estudantes, democratas em geral, etc..., constituem a listagem das vítimas  potenciais desse despautério. Regressão civilizatória: o pau-de-arara no lugar das armas da república.

Os demais candidatos – ordinariamente mais ou menos palatáveis - situam-se no exterior dessa inesgotável reserva de abjeção. Serão maus, bons ou nem tanto assim, mas não necessariamente abjetos. Nesse sentido, o “inominável” não é um candidato normal: ele é a negação mais radical do mundo no qual se dá a possibilidade de escolha entre diferentes candidatos. A ele, portanto, não se deve conceder a perspectiva da normalização, por meio de vocabulário politológico asséptico.

3. O abjeto, como ensinou Mary Douglas, tem parte com este mundo. Sua apologia e sua exibição não se limitam à exortação do passado ditatorial e à expectativa de  reintronização em nossas vidas. Ele possui, em adição, fixação no aqui e no agora: pertence, portanto, ao sistema mais geral das coisas. Como assim?

A ostensão primária da boçalidade e a exortação da violência, por parte do “inominável” a muitos  pareceu incompatível com o “namoro” assumido com a mais extrema agenda liberal em economia e em política social. Seu guru e porta voz, o economista Paulo Guedes, figura entre os mais destacados expoentes de  tal agenda, e disso nunca fez qualquer segredo. Nesse aspecto, aliás, a candidatura do “inominável” começa a ganhar foros de normalidade, já que sua agenda econômica e social não discrepa, no essencial, da apresentada por assessores econômicos de outros candidatos (Alkmin, Marina, Meirelles, pelo menos). Falam todos a mesma língua e percebem a política e o ativismo social como fatores permanentes de irracionalidade.

A fusão entre a gramática da violência e a defesa do ultra-liberalismo em economia e em política social, na verdade, nada tem de inconsistente. Da mesma maneira que o tratamento do tema da segurança pública exige, para a agenda “inominável”, deflação dos direitos civis, a operação livre de uma ordem de mercado impõe a desmontagem dos mecanismos regulatórios e a afirmação de crenças fiscais incompatíveis com as funções constitucionais do Estado brasileiro. Trata-se, aqui, de deflação de direitos sociais. Com efeito, o sonho – na verdade, o pesadelo – de uma ordem de mercado auto-regulada exige o espectro de um agente estatal com idêntico estatuto: auto-regulado. A fórmula que se impõe, admito, é um pouco chula, mas não imagino coisa melhor: mercado e porrada aparecem como termos de uma terrível afinidade eletiva. Que me perdoem os espíritos de  Goethe e Max Weber.

Tal afinidade, por sua vez, alimenta-se de uma cultura mais geral de aversão à abstração, que atravessa praticamente todo o espectro político brasileiro. A ideia de mediação cede lugar a uma metafísica da presença, da ação direta e da expressão de identidades e potencias “genuínas”, que não mais devem ser neutralizadas por valores abstratos. É a metafísica do concreto que se afirma progressivamente entre nós. 

O abismo identitário no qual o campo da esquerda se precipitou, com o desprezo de sua vocação histórica universalista, não poderia deixar de ter contrapartida à direita: o laço social dá-se pela presença de mecanismos de força, sem qualquer abstração, tanto no plano da manutenção da ordem pública quanto da ordem econômica. Apresenta-se ao país algo inédito em sua história: a materialização plena de uma ordem capitalista pré-Estado de Bem Estar Social, cuja vertebração – na falta de qualquer processo institucional de legitimação distributiva – exige máxima disciplina. A agenda não é inconsistente, ela é simplesmente abjeta e, como tal, pertence à ordem dos possíveis e ao tal sistema geral das coisas.













[1]. Professor de Filosofia Política da PUC-Rio e Investigador-Associado do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa.