Nota: O ensaio
transcrito a seguir foi originalmente escrito quando o despautério de 31 de
março de 1964 completava trinta anos, e foi publicado em diversas ocasiões.
Muita coisa mudou, de lá para cá, menos a marca inerente de estupidez do
evento, além do legado deletério que impôs
ao país.
O extremista que pretende nos governar tentou nos
impor a vergonha de uma comemoração nos quartéis. Em tempo hábil, a coragem
cívica de várias iniciativas individuais e coletivas encontrou na parte não
reacionária do sistema de justiça brasileiro devida acolhida, e a provocação
não teve livre curso.
Ainda assim, as autoridades militares emitiram nota
alusiva ao evento de 1964, atenuando sua marca de origem e acenando com loas à
democracia. Fizeram-no, contudo, sem alterar o principal: a crença de que as
Forças Armadas podem intervir, a qualquer momento, para “corrigir” a história
do país. Sua pretensa identidade com os “anseios dos brasileiros” confere-lhes,
ao que parece, mandato permanente para tal. Tal crença esteve presente no
núcleo do despautério de 31 de março de 1964 e, ao que tudo indica, está no
meio de nós e deve ser, sem descanso, combatida.
Segue o ensaio.
Duas ou Três
Coisas que Eu Sei Sobre Ela: notas sobre um republicídio
Nem ressentido, nem desmemoriado. Na tarde de 31 de
março de 1964, parte da família dirigia-se a Jacarepaguá, em busca de alguma
granja, para comprar ovos e aves. Desde sempre, ao que me lembre, foi assim: ao
menor sinal de crise grave no país, minha mãe agia como a boa cunhada de Alexis
de Tocqueville e diante da virtualidade do caos, pensava exclusivamente na
saúde e na segurança dos seus e na integridade de sua despensa. Ao volante, meu
pai, professor da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, a
gloriosa Fenefi. O mais pacífico e inofensivo dos comunistas, prestes a ingressar
na lista negra do famigerado Eremildo Luis Vianna, espécie de vilão e ente
maligno que assolou o fim da minha infância. Ao meu lado, no banco de trás,
minha jovem tia, militante do não menos glorioso CACO (Centro Acadêmico Candido
de Oliveira), da Faculdade Nacional de Direito, invejando, com certeza, meus
tios, a postos na Cinelândia, a apedrejar tanques. Na volta, pela Tijuca,
chuvas de papel picado, lençóis brancos nas janelas, crucifixos e gritos
histéricos e agressivos de “viva Lacerda” e “fogo na canalha comunista”
indicavam que havíamos perdido.
Na manhã do dia 1o de abril de 1964, na esquina da
Rua Joaquim Nabuco com a Av. Atlântica, no então bucólico Posto 6, um coronel
do Exército salta de um Citroën preto e caminha em direção ao sentinela que
guardava a entrada do Forte Copacabana. A bofetada no rosto do praça,
transmitida ao vivo pela saudosa TV Rio, eliminou um dos supostos focos de
apoio ao Presidente João Goulart, a essa altura politicamente desenganado.
Carlos Heitor Cony, em crônica memorável publicada no dia seguinte, lembra
ainda a preocupação do referido oficial em pôr dois paralelepípedos no meio da
então única pista da Av. Atlântica: “precisamos parar os tanques do I
Exército!” O I Exército não apareceu. Na verdade, ele reuniu-se aos demais
Exércitos e à Marinha e à Aeronáutica para iniciar o experimento que pôs fim à
República de 1946. Os paralelepípedos, inúteis, foram separados pelo próprio
Cony, sem qualquer esforço, em um leve movimento com a ponta do pé.
Mas, ao contrário dos paralelepípedos de Cony,
duros e objetivos como a verdade deve ser, os acontecimentos de 1964 estão
sujeitos à dissipação e à plasticidade. Lembrá-los hoje significa transitar por
um insolúvel conflito de interpretações.
A chamada revolução de 1964 possui muitos
significados, atribuídos por uma legião de cientistas sociais e intérpretes.
Meu próprio treinamento profissional, nesse caso, não tornaria absurdo propor
ou enfatizar alguma dessas visões ou sugerir qualquer bricolage.
Há, por exemplo, quem lhe negue o rótulo oficial de
“revolução” e lhe rebaixe à abjeta categoria de “golpe”, gênero propício,
segundo notação de Paulo Mercadante, a respeito da proclamação de 1889, ao
surgimento de “energúmenos, fantoches e burocratas”. Mas, trata- se a meu juízo
de pouco heróica e ineficaz vingança dos conceitos contra os vencedores na vida
real. Golpe ou revolução, não importa. Falar de 1964 é dizer do meu ingresso na
vida política adulta, pelas mãos do medo. Que o leitor perdoe o que poderá
julgar como excesso de idiossincrasia. Aqui, imagino tão somente seguir um
ensinamento de Max Weber: na impossibilidade de erradicar nossos valores,
preferências e, acrescento eu, taras, torná-los explícitos para que sejam
controlados por juízos externos.
Tão certo quanto isso é o fato de que para além da
memória e do trauma, os eventos históricos são permanentes, posto que decantam
na vida comum, para além dos delírios da subjetividade. Sendo assim, devem ser
submetidos a procedimentos básicos de datação. Ainda não será dessa vez que nos
livraremos da imprecisão, já que não dispomos de qualquer equivalente, nesse
caso, ao carbono 14, ele mesmo muito impreciso. A datação e o sentido dos
fenômenos históricos dependem de um ato tão crucial quanto arbitrário, qual
seja o de definir os limites temporais dos eventos a considerar: em que momento
começam; quando cessam de produzir efeitos relevantes. Os acontecimentos que,
em 1964, erradicaram a democracia política em nosso país estão também sujeitos
a essa plasticidade do tempo. Quando começaram? Que ordem de coisas, genealogia
ou causa remota devem ser evocados? Thomas Mann, em José e seus Irmãos, já nos
advertia de quão “fundo é o poço do passado”. Até onde, portanto, devemos
retroceder?
Há quem julgue que para entender o republicídio de
1964, devemos proceder à uma dissecação ou arqueologia do comportamento militar
no Brasil. Os militares que lideraram a aventura de 1964 são, nessa chave,
dotados de uma vetusta ancestralidade: seus sinais estão bem ali, nos egressos
da Guerra do Paraguai, que protagonizam a Questão Militar e uma atitude
salvacionista; no difuso e tropical positivismo do início da República, no
movimento dos tenentes, na década de 20, no envolvimento com a modernização
autoritária e com o anti-comunismo dos anos 30 e 40, etc... A homenagem
genética cria, retrospectivamente, uma fatalidade histórica, algo assemelhado à
natureza, domínio por definição inerradicável e invencível. A transformação do
“componente militar” em algo assemelhado ao mundo natural vem, com freqüência,
associado a uma perspectiva conspiratória. Por essa pista, entender 1964
significa reconstituir exaustivamente toda a trama de conspirações, já que a
ordem do histórico é a ponta aparente de maquinações urdidas em segredo. Assim,
mentes simplórias, exemplares paradigmáticos da mediocridade nacional,
nulidades lombrosianas e ressentidos em geral acabam sendo agraciados com a
prerrogativa do protagonismo. Suas truculências e exercícios mentais tacanhos
passam a ser abrigados por um gênero literário nobre: o das memórias e
depoimentos, espécies brasileiras de “lavagem de biografia”.
Outra perspectiva, com muito maior plausibilidade,
concedo com prazer, percebe os mesmos acontecimentos como produzidos pela
dinâmica da política, circunscrita ao momento específico da primeira metade dos
anos sessenta. O desfecho, nesse caso, nada deve à fatalidade, mas ao resultado
produzido pela dinâmica do próprio conflito político. Isso equivale a dizer que
outros desfechos para a crise de 1964 eram possíveis e que o seu resultado foi
contemporâneo de si mesmo.
Passados quarenta anos do republicídio de 1964,
estamos longe de algo assemelhado a um consenso a respeito dos seus
significados (na verdade, porque haveríamos de estar perto?). Ainda que tenha
simpatias claras e aversões fortes, diante do conflito das interpretações a
respeito de 1964, não pretendo refutar nenhuma delas em particular. Pretendo
proceder à moda de alguns historiadores do Holocausto que, diante da variedade
de interpretações, da presença de um certo relativismo e da criminosa tentativa
de negação do que ocorreu, pretendem fornecer uma narrativa básica, sobre a
qual ênfases e leituras diferentes podem ser propostas. Nesse sentido, talvez
um pouco ingênuo, sustento que uma narrativa básica sobre os eventos de 1964, e
a experiência histórica deles resultante, deve destacar dois aspectos centrais:
1. O movimento
de 1964 foi um evento republicida.
2. O
experimento civilizatório dele decorrente foi marcado pela erosão da malha de
proteção política e institucional da sociedade, cujo resultado foi a
combinação perversa entre rápida transformação social e virtual ausência de
mecanismos intitucionais de representação e participação políticas.
O caráter republicida pode ser atestado se
lembramos da “República que a revolução destruiu”, para usar o mote de Sertório
de Castro. O Brasil, em 1946, de modo efetivo “proclamou” a República. Explico:
trata-se da nossa primeira experiência de eleitorado de massa, eleições e
sistema partidário competitivos, rotinização de um sistema representativo
consistente e pluralista, federalismo, diversidade política regional, etc...
Ainda que um certo preconceito oligárquico e elitista tenha imposto à República
de 1946 o rótulo de “populista”, julgo ser uma violência nela não reconhecer o
nosso primeiro experimento democrático. Seu principal pecado foi não sê-lo de
modo mais completo, já que os comunistas foram privados da legalidade em 1947 e
os analfabetos não faziam parte do corpo eleitoral. O movimento de 1964, em
poucos anos, elimina a principal característica e virtualidade da república de
1946: a da possibilidade da representação política de parte importante do país,
em sua diversidade e complexidade. Isso se deu graças à extinção dos partidos
do regime de 1946, a erradicação de parte importante da classe política e a
drástica redução do peso do voto popular no sistema decisório.
A descrição da bestialogia e da truculência do
regime de 1964 já está feita. Basta ouvir as vozes, e ler nos corpos e nas
narrativas dos que exerceram oposição nesse país, que nesses lugares será
encontrada essa parte da história. Aqui o que quero destacar é a terrível
experiência mais geral de uma sociedade que em vinte anos é submetida à inédita
combinação entre modernização econômica vertiginosa, deslocamentos espaciais,
predação ambiental, dilaceração de identidades, urbanização e desconsideração
completa de custos humanos e sociais, na busca dos chamados “interesses
nacionais”. E aqui entro no segundo tópico da narrativa básica, a que aludi. O
que a experiência civilizatória de 64 impõe ao país é o predomínio puro da
esfera econômica sobre a vida social, sustentada em doses fortes de
autoritarismo e estupidez. A política, pela coação e pela pusilanimidade, foi
posta a serviço dessa razão de estado obcecada pela modernização econômica. É
claro que, em princípio, não há nada de errado com a modernização. O problema
todo ocorre quando a sociedade não tem à sua disposição formas de expressão e
representação política. Os meios disponíveis para tal foram eliminados pelo republicídio
de 1964. Em outras palavras, o país experimentou uma perversa combinação:
crescimento a qualquer custo e ausência de democracia política.
As bases doutrinárias da precedência da razão
econômica sobre a democracia política já estavam postas nos anos cinquenta, em
pensadores díspares, tais como Celso Furtado e Roberto Campos. Trata-se da
linguagem dos “obstáculos políticos ao desenvolvimento”. Esses obstáculos são,
em geral, os da democracia, odiosa forma de governo - melhor apenas do que
todas as demais - que impõe um ritmo lento para a deliberação pública e é capaz
de abrigar tanto biltres como pessoas decentes. O argumento anti-democrático
foi admiravelmente reconstituído por Roberto Campos, em 1974, quando apresenta
o experimento de 1964 como um “autoritarismo consentido”(sic), caracterizado,
entre outras coisas, pela adesão “inconsciente ou subconsciente” da população
por um padrão de maior “disciplina social”, em detrimento da “exaltação
democrática”. É reconfortante aqui lembrar dos resultados eleitorais de
novembro de 1974, a primeira derrota eleitoral do regime de 1964, em escala
quase nacional, e que demonstra a ilusão do consenso sustentado por Roberto
Campos. Mas, cético que sou, sei que superstições não são refutadas por fatos.
E essa foi a superstição que sustentou o regime de 1964: a de que a política
democrática é inimiga da disciplina social e do progresso e de que um dos
principais agentes de irracionalidade política no país é o Poder Legislativo.
O legado de 1964? Bem, um dos legados está contido
em um singular absurdo. O regime, com seu conhecido apreço por eleições e por
instituições democráticas, seguiu emitindo títulos de eleitores. Com efeito, o
eleitorado brasileiro entre 1966 e 1986, saltou de 22.387.251 para 69.166.810
eleitores, um acréscimo de mais de 200%. Desconheço outro eleitorado no planeta
que tenha tido crescimento semelhante, em contexto de ausência de democracia
política. Mas, talvez o principal legado seja o do predomínio de um
economiscismo difuso e de uma desvalorização generalizada da política e das
instituições. Afinal, passados tantos anos, a linguagem do imperativo da
modernização econômica e dos obstáculos políticos e institucionais ao
desenvolvimento está viva. Viva e a erodir as expectativas e apostas simples de
mulheres e homens igualmente simples desse país. Nesse sentido, o regime de
1964 é um experimento vitorioso e tem suas superstições cuidadosamente mantidas
por essa coalizão entre derrotados e vitoriosos de 1964, que tem nos governado.
O saudoso Francisco Iglesias, escrevendo no ocaso
do regime militar, há cerca de 15 anos atrás, sintetizou com elegância e
economia o legado do experimento 1964: “Nele, a liberdade conheceu um de seus
mais longos e tenebrosos eclipses. A negação da democracia, constante na
trajetória brasileira, tem então forma agressiva, ainda não conhecida. Muita
gente sofreu, foi exilada, torturada, morta. O Brasil cruento teve a expressão
máxima”. Por fim, a profecia, ainda não cumprida: “O povo saberá sair do
atoleiro por suas próprias mãos, repondo a pátria no seu caminho de onde a
tirou a má vontade ou a falsa compreensão do Brasil”.
Ainda que não tenha ânimo suficiente para
profecias, tenho a convicção contrafactual de que o Brasil pós 64, sem 64,
teria sido melhor do que o que foi inventado com 64. Esse acidente infeliz
deixou marcas indeléveis na história do país. Quanto à minha, devo dizer que
aos revolucionários de 1964 devo o fim da minha infância e o usufruto precoce
do medo e das esperanças dos adultos.