sábado, 18 de junho de 2016

Introdução à lógica temerária


 Um dos últimos vazamentos de recente e copiosa delação premiada sustenta que o presidente interino teria estado envolvido em tenebrosa transação. O indigitado, além da costumeira afirmação de inocência, saiu-se com esta: se fosse verdadeira a acusação eu não poderia ocupar a presidência da república.

Nada de novo no padrão de reação indignada e na afirmação de inocência. Esse é o modelo que tem sido seguido por todos os citados. O que é de notar como fato inovador é o extraordinário uso da inferência lógica, na resposta interino-presidencial. Vejamos: em linguagem natural, o denunciado declara que caso fosse verdadeira a sua desonestidade, isso teria como implicação a impossibilidade do mesmo vir a ocupar a presidência. O que se segue, portanto, é o seguinte: se eu estou a ocupar a presidência, logo sou honesto.

O que equivale à seguinte inferência lógica:

1.     Se p é não honesto, logo p não pode vir a ser q (presidente);
2.     p é q (presidente);
3.     logo, p é honesto.

Um brilho de inferência. Digno de prêmio (ig)nobel, na categoria “falácias.”


Trata-se do truque de estabelecer o fundamento de uma inferência com base na conclusão do que ela mesma quer provar. Algo que os antigos céticos definiam como “dialelo”, ou raciocínio circular. Em outros termos, coisa para enrolar a malta. A inferência em questão bem vale, enfim, como introdução à lógica temerária. Tempos difíceis.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

A biblioteca e seu mito de origem

A biblioteca e seu mito e origem
(versão integral de texto publicado no jornal O Globo, em 17/6/2016)

O principal programa ativo de cooperação cultural entre Portugal e Brasil foi lançado no Rio de Janeiro, no início de maio de 2016. Trata-se da Biblioteca Digital Luso-Brasileira, produto de um acordo de cooperação firmado em 2014 pelas Bibliotecas Nacionais de Portugal e do Brasil. A nova biblioteca revestiu-se à partida de forte dimensão simbólica: a origem da Biblioteca Nacional brasileira decorre, afinal, da magnífica Real Biblioteca portuguesa, trazida por ocasião da transferência do Estado português para cá, entre 1808 e 1821. É como se a Biblioteca brasileira retornasse a Portugal e, ao mesmo tempo, Portugal retomasse a transferência de seus acervos bibliográficos para o Brasil.
A Biblioteca Digital Luso-Brasileira, contudo, faz mais do que fundir as duas parceiras. Cada uma das duas instituições coordena em seus países redes importantes de acervos digitais, o RNOD (Registo Nacional de Objectos Digitais), em Portugal, e a Rede Memória Virtual Brasileira. Ambas as redes reúnem cerca de 60 instituições culturais: bibliotecas, arquivos e museus. A elas somam-se, ainda, a Torre do Tombo, em Portugal, e o Projeto Resgate Barão do Rio Branco (https://www.youtube.com/watch?v=AuCs5Nr5fBk), projeto sediado na Biblioteca Nacional brasileira voltado para a recolha de acervos digitais a respeito do Brasil em bases internacionais.
Nos últimos três anos, a Biblioteca Nacional brasileira, além de cuidar da infindável faina da recuperação patrimonial, por meio de obras e restauros e de exposições de seus acervos, tratou de expandir suas atividades digitais. Iniciada há dez anos, na gestão de Muniz Sodré, a BN Digital hoje abrange um conjunto significativo de acervos compartilhados, tais como a Brasiliana Fotográfica Digital, desenvolvida em parceria com o Instituto Moreira Salles, a World Digital Library, na qual participa do Comitê Executivo, ao lado das BNs da França, Alemanha, China e Qatar, além da Library of Congress (EUA) e da Biblioteca de Alexandria e o projeto e curso de uma Brasiliana Iconográfica Digital, em associação com a Pinacoteca de São Paulo, o Instituto Itaú Cultural e o Instituto Moreira Salles.
A retaguarda dessa política tem sido garantida pela qualidade dos acervos especiais da BN - Obras Raras, Música, Iconografia, Manuscritos, Cartografia – e das coleções de Obras Gerais e de Periódicos e Publicações Seriadas, além dos laboratórios de digitalização, preservação e restauro. A gestão desse conjunto, já há tempos, é reconhecida como modelar, a despeito da reiteração do mantra de que a instituição vive em permanente estado terminal.
Pôr a Biblioteca Nacional ao alcance dos brasileiros – e do público internacional – foi uma cláusula pétrea seguida pela direção da Biblioteca nesses últimos três anos. O direito à livre expressão cultural deve ser acompanhado de igual prerrogativa no que se refere à recepção e suplementação culturais. Com frequência, tendemos a associar política cultural à expressão cultural, fundada por vezes em marcadores identitários sempre rebarbativos e idênticos a si mesmos. Há que, contudo, suplementar tal expressão, tanto por meio da troca cultural como do acesso à cultura erudita e literária. Pôr a Biblioteca Nacional na vida dos brasileiros é, antes de tudo um ato de resistência à recessão cultural que nos acompanha, presente nos indicadores vergonhosos de leitura e de alfabetização plena.
A Biblioteca Nacional não pertence a governos, por definição temporários. Sua sustentabilidade ao longo do tempo exige, por certo, atenção governamental. Mas requer sobretudo que se leve a sério o fato de que é uma instituição permanente do Estado brasileiro. Não pode, pois, ficar a depender de políticas de governo e, sobretudo, vulnerável à indiferença burocrática crônica.
Este é um país que, por acidente feliz, recebeu em 1808 uma grande biblioteca europeia e decidiu mantê-la em 1825, como item do Estado nacional que então se criava. Retenhamos esse belo mito de origem. Mitos tanto podem servir para fixar tradições, quanto para obrigar a pensar se estamos à altura daquilo que proporcionam. Que o laço reestabelecido com a Biblioteca Nacional portuguesa dê força e sobrevida à percepção do quanto nossa integridade civilizatória e força reflexiva dependem de instituições como a Biblioteca Nacional do povo brasileiro.

Renato Lessa
Presidente da Biblioteca Nacional

(Abril de 2013/Maio de 2016)