A biblioteca e seu mito e origem
(versão integral de texto publicado no jornal O Globo, em 17/6/2016)
O principal programa ativo de cooperação cultural entre
Portugal e Brasil foi lançado no Rio de Janeiro, no início de maio de 2016.
Trata-se da Biblioteca Digital Luso-Brasileira, produto de um acordo de
cooperação firmado em 2014 pelas Bibliotecas Nacionais de Portugal e do Brasil.
A nova biblioteca revestiu-se à partida de forte dimensão simbólica: a origem
da Biblioteca Nacional brasileira decorre, afinal, da magnífica Real Biblioteca
portuguesa, trazida por ocasião da transferência do Estado português para cá,
entre 1808 e 1821. É como se a Biblioteca brasileira retornasse a Portugal e,
ao mesmo tempo, Portugal retomasse a transferência de seus acervos
bibliográficos para o Brasil.
A Biblioteca Digital Luso-Brasileira, contudo, faz mais do
que fundir as duas parceiras. Cada uma das duas instituições coordena em seus
países redes importantes de acervos digitais, o RNOD (Registo Nacional de
Objectos Digitais), em Portugal, e a Rede Memória Virtual Brasileira. Ambas as
redes reúnem cerca de 60 instituições culturais: bibliotecas, arquivos e
museus. A elas somam-se, ainda, a Torre do Tombo, em Portugal, e o Projeto
Resgate Barão do Rio Branco (https://www.youtube.com/watch?v=AuCs5Nr5fBk),
projeto sediado na Biblioteca Nacional brasileira voltado para a recolha de
acervos digitais a respeito do Brasil em bases internacionais.
Nos últimos três anos, a Biblioteca Nacional brasileira,
além de cuidar da infindável faina da recuperação patrimonial, por meio de
obras e restauros e de exposições de seus acervos, tratou de expandir suas
atividades digitais. Iniciada há dez anos, na gestão de Muniz Sodré, a BN
Digital hoje abrange um conjunto significativo de acervos compartilhados, tais
como a Brasiliana Fotográfica Digital, desenvolvida em parceria com o Instituto
Moreira Salles, a World Digital Library, na qual participa do Comitê Executivo,
ao lado das BNs da França, Alemanha, China e Qatar, além da Library of Congress
(EUA) e da Biblioteca de Alexandria e o projeto e curso de uma Brasiliana
Iconográfica Digital, em associação com a Pinacoteca de São Paulo, o Instituto
Itaú Cultural e o Instituto Moreira Salles.
A retaguarda dessa política tem sido garantida pela
qualidade dos acervos especiais da BN - Obras Raras, Música, Iconografia,
Manuscritos, Cartografia – e das coleções de Obras Gerais e de Periódicos e
Publicações Seriadas, além dos laboratórios de digitalização, preservação e
restauro. A gestão desse conjunto, já há tempos, é reconhecida como modelar, a
despeito da reiteração do mantra de que a instituição vive em permanente estado
terminal.
Pôr a Biblioteca Nacional ao alcance dos brasileiros – e
do público internacional – foi uma cláusula pétrea seguida pela direção da
Biblioteca nesses últimos três anos. O direito à livre expressão cultural deve
ser acompanhado de igual prerrogativa no que se refere à recepção e suplementação
culturais. Com frequência, tendemos a associar política cultural à expressão
cultural, fundada por vezes em marcadores identitários sempre rebarbativos
e idênticos a si mesmos. Há que, contudo, suplementar tal expressão, tanto por
meio da troca cultural como do acesso à cultura erudita e literária. Pôr a Biblioteca Nacional na
vida dos brasileiros é, antes de tudo um ato de resistência à recessão cultural
que nos acompanha, presente nos indicadores vergonhosos de leitura e de
alfabetização plena.
A Biblioteca Nacional não pertence a governos, por
definição temporários. Sua sustentabilidade ao longo do tempo exige, por certo,
atenção governamental. Mas requer sobretudo que se leve a sério o fato de que é
uma instituição permanente do Estado brasileiro. Não pode, pois, ficar a
depender de políticas de governo e, sobretudo, vulnerável à indiferença
burocrática crônica.
Este é um país que, por acidente feliz, recebeu em 1808
uma grande biblioteca europeia e decidiu mantê-la em 1825, como item do Estado
nacional que então se criava. Retenhamos esse belo mito de origem. Mitos tanto
podem servir para fixar tradições, quanto para obrigar a pensar se estamos à
altura daquilo que proporcionam. Que o laço reestabelecido com a Biblioteca
Nacional portuguesa dê força e sobrevida à percepção do quanto nossa
integridade civilizatória e força reflexiva dependem de instituições como a
Biblioteca Nacional do povo brasileiro.
Renato Lessa
Presidente da
Biblioteca Nacional
(Abril de 2013/Maio de 2016)
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