A
cidade e a biblioteca
A cidade do Rio de Janeiro completa, no ano de 2015, quatro
séculos e meio. O que isto quer dizer? Pode a constatação contábil do depósito
do tempo linear elucidar algo do significado da vida de uma cidade? Mais do que
indagarmos a respeito do acúmulo de tempo e de coisas que configurou o
presente, pode ser oportuno imaginar outra ordem de inquietação. Com efeito, quantas
cidades incompletas se insinuaram e
feneceram naquela, para os padrões locais, longa duração? Uma cidade incompleta pode bem ser uma urbe
que não veio a existir, urdida e desejada, mas não fixada na experiência comum.
Pode ser, ao contrário, – e o é com imensa frequência – uma cidade realmente
existente, porém sem espírito; incipiente nos limites da sua materialidade: sem
metafísica, filha da força dos fatos, da astúcia, do cimento armado, da
velocidade e do vergalhão.
De que cidade, afinal, estamos a falar? Pergunta, para já não
respondida, que se deseja fixar na experiência do espectador da exposição Rio de Janeiro 450 anos: uma história do
futuro, registrada neste catálogo. Que ela acompanhe o leitor e o visitante
que, ainda que tocados pela beleza e pela pungência do que aqui se verá, se
dispuserem a refletir sobre o que somos, seremos e deixamos de ser.
Exibir imagens e registros do Rio de Janeiro, tal como o faz este catálogo,
é algo que evoca a intuição do poeta T. S. Eliot, em uma de suas obras primas,
o poema Burnt Norton: “Se todo tempo
é eternamente presente/Todo tempo é eternamente passado/Todo tempo é
irredimível./O que poderia ter sido é uma distração/Que permanece, perpétua
possibilidade,/Num mundo apenas de especulação”. Quantos futuros possíveis
estão contidos na experiência do presente? É impossível imaginar a história
desta cidade sem o salto distraído no espaço vazio da especulação. Cidade de possibilidades
suprimidas, de futuros precocemente desfeitos: não foi assim com sua Avenida
Central, condenada a uma reedição do bota-abaixo que lhe deu origem, poucas
décadas após sua inauguração, em 1906?
As imagens que aqui estão são o que são: fixam, sem dúvida,
instantes pretéritos, pontos de partida do que veio-a-ser. Podem, no entanto,
ser tomadas como objetos-de-tempo-e-lugar
nos quais incontáveis protótipos do que não-veio-a-ser encontravam sua morada,
na deslocada e pudica latência das coisas que não passam ao ato. Olhar e rever
estas imagens não evoca simplesmente o passado deste aqui e agora; deste presente no qual mantemos os pés no chão e nossos
olhos a exercer seu inquérito visual. Mais do que isso, trata-se de intuir e
reinstituir a vigência imaginária de uma variedade de presentes passados,
portadores de futuros possíveis que não vieram a ser.
Quem poderá dizer que a ausência de tais futuros, e a saudade do
que não foram, não está aqui inscrita na matéria do que veio a ser, presente na
composição do olho que agora os revê? O olho que vê é um órgão da tradição, tal como asseverou Franz Boas. Quanto dessa
tradição, desse aprendizado tácito e irreflexivo de olhar as coisas, não deriva
do sentimento de falta do que não veio a ser? Uma cidade, como uma vida,
resulta também do que lhe foi extraído como possibilidade. É de admitir, ainda
a presença invencível da estranha dialética – ou enigma, o que dá no mesmo - que
faz com que efeitos propiciatórios emerjam dos próprios atos dizimação.
Trata-se aqui de repor o
passado no futuro. Henri Bergson, que dedicou seus melhores esforços para
lidar com os temas do tempo e da duração, bem autoriza a pretensão aqui
anunciada. Em sua obra L’Énergie
Spirituelle, de 1919, sugeriu que
sem a sobrevivência do passado no presente, não haveria a sensação psicológica
da duração, mas tão somente “instantaneidade”. Há, contudo, modos distintos de
duração. Pode-se, por exemplo, trazer o
passado como forma de apresentação das circunstâncias que explicam o
futuro. Não é o que aqui se sugere, mesmo porque nada é explicado, mas tão somente mostrado.
Mais apropriado do que exigir que o passado explique o futuro, caberia
interpelar a este último sobre os modos pelos quais lidou com o primeiro.
Em termos mais diretos, o que se sugere é que reflitamos sobre os efeitos do presente sobre o passado, e
não nos limitemos à chave fácil de buscar a elucidação das coisas pela
reconstituição linear da série temporal. O antes
nem sempre explica o depois; é este
que, se calhar, nos deve a apresentação das justificativas pelo que veio a ser.
Trata-se de pensar o futuro, ao mesmo tempo, como decorrência do que ocorreu e
daquilo que não veio a ocorrer. O sentimento de duração pode bem abrigar uma
sombra, alucinatoriamente preenchida pelo que poderia ter sido.
Que lugar pode abrigar os materiais para esta especulação, para
esta crono-ludo-terapia, senão uma
biblioteca, ou melhor, a biblioteca da
cidade, cujo passado é uma coleção de futuros possíveis? A decisão da
Biblioteca Nacional em integrar o conjunto de iniciativas culturais em torno da
efeméride dos 450 anos do Rio de Janeiro partiu do reconhecimento da
interdependência histórica estabelecida com sua cidade de abrigo. Desde a sua
criação em 1810, a Biblioteca Nacional acumula dois traços que lhe são
indeléveis: instituição permanente do Estado e do povo brasileiros; instituição
fixada na vida da cidade do Rio de Janeiro. É este último aspecto que, neste
momento, deve ser ressaltado: como imaginar a história da Biblioteca Nacional,
sem incorporar em suas identidades básicas a presença da cidade que a contém?
Ao mesmo tempo, como pensar a cidade, sua memória e seus futuros possíveis, sem
o que aqui se guarda? Tal ordem de questões esteve presente na escolha do
recorte adotado: mostrar o Rio de Janeiro
na – ou da - Biblioteca Nacional. E como os atos de mostrar nunca são
inocentes, sobretudo quando lidam com o tempo, a exibição de fragmentos do que
foi esta cidade trás consigo o convite a imaginar como poderia ter sido e como
será.
Uma exposição a respeito da cidade não deixa de ser uma forma de
intervenção. Esta se dá pela possibilidade de reflexão sobre a experiência de
estar nesta cidade. Por mais locais
que sejamos, compartilhamos um dos mitos brasileiros básicos, qual seja o de
que o futuro arranca do presente de modo fáustico, sem qualquer dívida ou
vínculo com o passado. Em nossa obsessão pelo futuro, somos imparáveis cronocidas. Não é difícil encontrar na
história da cidade evidências compatíveis com tal inclinação: construímos,
destruímos, apagamos, acrescentamos. A cidade, tal como a exposição o indica, é
uma obra aberta, pela qual pulsões de vida e de destruição andam ao par. Nela
nunca teremos a sensação das cidades
prontas.
No entanto, uma cidade é sempre um abismo para dentro de si. Por
mais que a ela se somem novas dimensões, é da natureza dos atos de
suplementação acrescentar complexidade à vida, já que percorrem simultaneamente
direções distintas e de complementaridade tensa. Com efeito, a principal
intervenção contemporânea no desenho da cidade do Rio de Janeiro é orientada
por uma perspectiva de restauração: com
a demolição da Avenida Perimetral, devolvemos à cidade o direito de ver o mar;
reintroduzimos os bondes no Centro da cidade. Parte da cidade se reinventa a
partir de um desejo de recuperação do que se perdeu. Possibilidades dissipadas
são recuperadas e, dessa forma, uma certa atração pelo passado – pela intuição
de que em vários aspectos já estivemos em melhor situação – molda os desenhos
de futuro. Somos seduzidos pelas escavações, pela sede de ver as entranhas de
uma terra de idade remota, nas quais, se calhar, estão guardadas verdades e
segredos dos quais nem os nomes sabemos. Olhar para as fendas do chão e sobre
elas exercer as artes de um voyeurismo arqueológico. Aceder a um mundo de
pedras justapostas por óleo de baleia e adivinhar os que por ali deambularam.
Uma cidade aberta em exumação, que a exige como passo necessário
para o futuro. Adoramos o futuro, por certo, mas quando pensamos no que somos
como sujeitos desta urbe, escavamos, abrimos buracos e dirigimos ao centro da
terra perguntas cruciais que todos nos fazemos: quem somos? Quem, ou o que, fez
com que sejamos o que somos? O que fazer com isso?
Uma cidade que, apesar de cronocida e devoradora precoce dos seus
artifícios, exige a vigência do passado como sua plataforma de lançamento para
o futuro. Em breve, saberemos praticar as artes do desaterro, teremos mares e
lagoas de volta, veremos saltar aos nossos olhos o Saco de São Diogo, a Praia
do Alferes, a Ponta do Calabouço. Quem sabe, acharemos o corpo de Dana de
Teffé, um dos maiores mistérios da história da cidade e preocupação do grande
imortal carioca Carlos Heitor Cony[1].
Porque não imaginar, ainda, a arte da remontagem de morros arrasados?
Cidade voltada para o centro da terra. Outras exigem o ar e as
altitudes. Há, ainda, as fixadas em desertos, em pura matéria inorgânica. Aqui,
não deixamos de ser cativos de uma vocação telúrica, de um desejo de extração orgânica
do sentido entranhado em camadas tectônicas. Cavamos túneis, mexemos com a
terra, arrasamos morros, soterramos o mar. Cidade de terra movediça, inimiga da
imobilidade, da permanência. Quando descobrimos nossos vestígios soterrados,
tornamo-nos doces e rememoriados. Sobrevém-nos a tristeza e o enternecimento
típicos dos que se lembram de suas infâncias.
Escavar mais, descobrir mundos que por aqui circularam, orientar a
escuta para a incontável coleção dos possíveis, fixada nos instantâneos aqui selecionados,
para tentar responder às perguntas com as quais abrimos este texto. Especular
sobre o que seremos e sobre o que poderíamos ter sido. Quanto da intuição
exercida no modo gramatical do futuro do presente depende do exercício
imaginário aberto pelo modo gramatical do futuro do pretérito? A experiência
com o mundo é feita de matéria de memória
– expressão que é título de um belo livro de Carlos Heitor Cony, já aqui evocado. Memória do que aconteceu; memória daquilo
a que não foi dado acontecer.
Quantas cidades, enfim, existem nesta cidade? Quantas arqueologias
nela são possíveis? Não dá para ter contagem, nem sequer aproximada, dessas
cidades. Sabemo-las existentes, contudo, pelos sinais finamente guardados na
grande biblioteca do Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional.
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A exposição Rio 450 anos:
uma história do futuro contou com a curadoria e coordenação do poeta e
acadêmico Marco Lucchesi. Curadoria compartilhada com o trabalho dedicado das
responsáveis pelas chefias das Divisões de Coleções Especiais da Biblioteca
Nacional, a saber: Maria José Fernandes, Acervo Especial; Maria Dulce de Faria,
Cartografia; Léia Pereira e Monica Carneiro, Iconografia; Vera Faillace,
Manuscritos; Ana Virgínia Pinheiro, Obras Raras; Elizete Higino, Música e Carla
Chianello Ramos, Periódicos.
Rio de Janeiro, junho de 2015
[1]. Dana
Fitscherova, judia tcheca, foi casada com o Embaixador Manuel de Teffé, de quem
adquiriu o sobrenome que lhe daria triste fama. Em 1961 desapareceu, em meio a
uma viagem entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Nunca mais se soube dela, viva
ou morta. Foi um dos casos mais rumorosos da crônica criminal carioca dos anos
1960
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