Renato Lessa
(Publicado no suplemento ALIAS, do jornal Estado de São Paulo, em 22/08/2010)
Não acompanho a sede por debates, quando se trata de campanhas eleitorais, presidenciais ou não. Salvo nem tão surpreendentes surpresas, representadas por personagens colaterais, que se permitem dizer o que não diriam se fossem efetivamente competitivos, a coisa, em geral, sabe a trucagem e a oportunidade para exercícios de dissimulação. A política exige representação, por certo. Em grande medida, ela é representação, pois a possibilidade de dizer algo que produza impacto na configuração pública da sociedade exige o pôr-se em um lugar artificialmente construído, para que isso seja possível. É simples a coisa: não há política natural e isso exige atos de representação.
Não vai, portanto, nenhuma postulação por uma autenticidade perdida, do tipo da que exigimos quando lidamos com, digamos, pessoas naturais ou com seres que habitam nossos círculos de intimidade. Dilma, Marina, Plínio, Serra e os demais não nos interessam – ou não nos deviam interessar – por atributos que seriam mais bem apresentados em revistas de celebridades. São por definição, e como nos ensinou o Dr. Hobbes, pessoas artificiais. Quando destilam autenticidade e espontaneidade, estão a representar. Melhor faríamos se nos perguntássemos: o que estão a representar quando pretendem não representar?
Tal postura de, digamos, ceticismo eleitoral parece-me recomendável, sobretudo se considerarmos que o que se diz em campanhas não prefigura necessariamente o que se fará no governo. Por falha mnemônica ou traição, por certo, mas, sobretudo, pela implacável presença do acaso, do imponderável e da ação de dinâmicas sociais e mundiais sobre as quais não se tem honestamente controle algum. Por certo, faz parte do exercício de representar uma persona pública minimizar a presença da ignorância como componente inerradicável dos humanos. Há um que de delírio obsessivo e de onipotência do pensamento na coisa.
Mas, vá lá, até que debates servem para algo. Diante da eliminação da discussão política como prática corriqueira, debates, por mais laqueados que sejam, e horários dito gratuitos acabam por ser o que se tem. Vale dizer, de passsagem que o estado da comunicação política no país, como diria o saudoso Zé Trindade – um autêntico exemplar da vasta série brasileira dos Zés -, é de amargar. Frases curtas, idéias simples, plasticidade, emoção, tudo isso assentado na suposição de uma cláusula pétrea: a menoridade cognitiva dos cidadãos, que devem ser tratados como sujeitos dotados de baixa reflexividade. Os realistas, rendidos aos fatos e à inevitabilidade das coisas, podem acrescentar: isso ocorre aqui e alhures. A conclusão analítica é notável: a infantilização do vocabulário das campanhas é um marcador de maturidade e aperfeiçoamento democrático.
A utilidade à qual aludi pode dizer respeito, por exemplo, a eventuais atos falhos, durante debates e que podem ser elucidativos. Não nos é dado mentir a respeito de atos falhos ou lapsos momentâneos de falta de memória e sinceridade, embora possa haver, por certo, trucagem na matéria. O debate promovido pelo jornal Estado de São Paulo, entre os candidatos a vice-presidente possui, entretanto, utilidade extra. Menos pelo que dizem que pensam – ou pensam que dizem - os participantes, mas pela sinalização que emitem pelo fato de terem sido escolhidos para o papel.
Em tal aspecto, as marcas são claras: o vice de Serra, a indicar a maior inflexão à direita já feita na história do PSDB – maior mesmo do que a transformação de Alckmin no grão-chefe tucano e, a paulista -; o vice de Dilma, a exibir a solidez do apoio da grande máquina que dirige e a sugerir que possui densidade e, sobretudo recursos políticos para ultrapassar mera coadjuvância; por fim, o vice de Marina, a exalar a cultura da pureza das ações sociais não estatais e do sucesso pessoal e empresarial altruístico.
Mas o que dizem de relevante os postulantes à vice-presidência? Em meio ao debate superficial e fragmentado, chama a atenção o recurso ao plebiscito e ao referendo como forma de lidar com questões ditas espinhosas, tais como o aborto. Dois dos postulantes – Temer e Leal - defendem tais recursos como forma de praticar a “democracia direta” ou “participativa”. O vice de Serra preferiu considerar o tema do aborto a partir da idéia de que se deve evitar o sexo entre adolescentes. Causa ingrata, então não? Lembra mesmo Juarez Távora, na década de 1950, a solicitar que os operários apertassem os cintos.
O recurso retórico a “formas de democracia direta” converteu-se em mantra nos últimos anos. Conferem-se atestados democráticos a qualquer ação coletiva que seja capaz de dirigir aos poderes constituídos demandas por políticas públicas preferenciais que possam ser chamadas de suas. Demandas com freqüência formuladas em cenários corporativos e segundo critérios majoritários. Para os vice-candidatos em questão, mais – o menos – do que doutrina democrática, trata-se de passar a bola. As correntes organizadoras da opinião política – supostamente partidos políticos – já não contam. É a pureza e a espontaneidade do “eleitor” que devem decidir sobre temas candentes. Que o diga o tema do desarmamento. A menção ao instituto supostamente participativo, mais do que índice de compromisso democrático, pode estar a sugerir raquitismo político. Os vices parecem espelhar-se em seus chefes. Não surpreende o fato de que tenham nos proporcionado vice-elucidações.
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