Renato Lessa
(Publicado no Caderno Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 21 de novembro de 2010)
Corria o ano de 1901. O chefe de governo português na altura, o ministro Hintze Ribeiro, resolveu promover uma reforma política. O núcleo da bruxaria institucional concentrou-se no decreto que redesenhou os círculos eleitorais, com vistas à obtenção de maiorias mais folgadas para as forças da ordem. Os círculos eleitorais urbanos, por natureza mais irredentos, foram alargados para neles ser incluídos áreas (“concelhos”) rurais, sob tradicional controle oligárquico. No criativo léxico dos democratas portugueses, a inovação acabou denominada como a “ignóbil porcaria”.
A expressão ignóbil porcaria é por demais inspirada para que a deixemos ao sabor da obsolescência do tempo e atada à circunstância histórica que lhe deu origem. Não só é inspirada, mas dotada de alto poder de pregnância e elucidação para com o que se passa em paragens distintas. O, por assim dizer, modelo original IP visava esmagar o radicalismo urbano, “sob o invencível peso do voto rural”, como bem pôs o historiador português Vasco Pulido Valente.
É possível, contudo, imaginarmos versões do paradigma IP caracterizadas não por restrições impostas à manifestação do voto, mas por sua redução a mero componente coadjuvante de cenários secretos e fora do alcance dos eleitores ordinários.
No Brasil, nas últimas eleições, cerca de 80 milhões de eleitores escolheram candidatos às eleições para a Câmara de Deputados. Se a eles somarmos os cerca de 10 milhões que optaram pelo voto de legenda, temos uma base eleitoral robusta, cujo resultado líquido, sob ótica estritamente institucionalista, foi a eleição de 513 deputados federais. A grandiosidade do processo é inegável e passo para manifestações de ufanismo institucional, sobretudo por parte dos que deveriam exercer sobre a política, por supostas implicações acadêmicas e profissionais, uma inspeção mais reflexiva e crítica.
Não obstante, porção considerável do “capital eleitoral“ aludido esteve em jogo durante a última semana, sem que os detentores originários dos votos tivessem a mais pálida idéia do que estava a se passar. As boas almas que julgaram ter participado, no início de outubro, de uma escolha eleitoral entre duas alternativas de governo para o país – uma à esquerda e outra à direita - devem estar confusas com a notícia de que o maior parceiro da vitória eleitoral da primeira – o PMBD – dispôs-se liderar um movimento de composição de um bloco suprapartidário de “centro-direita”. Tal bloco seria ainda composto pelos seguintes partidos: PP, PTB, PR e PSC. Com o partido-guia – o PMDB – o bloco contaria com 202 deputados, de longe a maior força parlamentar na chamada “câmara baixa”.
O líder do empreendimento, o deputado Henrique Alves, de modo comovente, declarou que se trata tão somente de “mostrar a Dilma o jogo arrumado”. Com “jogadores” da estirpe do deputado Eduardo Cunha e do ex-governador Moreira Franco, para ficarmos em cenário carioca, é de se imaginar de que jogo se está a falar. Em chave óbvia e trivial, busca-se consolidar poder no âmbito do Congresso e resguardar e, mesmo, ampliar os “nossos ministérios”. Temo haver, no entanto, aspectos ainda mais preocupantes.
Com o miserável estado da oposição no Brasil, tudo indica que será da presente versão da ignóbil porcaria que ocorrerá alguma. Na verdade, a pior de todas, pois não se tratará de apresentar versões alternativas para a condução do país, mas de pura chantagem. A desorientação do PSDB e a afirmação do ex-PFL como partido liderado por demofóbicos que vieram ao mundo a negócios tornam improvável a consolidação de uma agenda consistente de oposição ao futuro governo. Tudo indica que haverá uma oposição que fará parte do governo, a ele estando perversamente vinculada por sua capacidade de chantagem e sabotagem.
A ignóbil porcaria, no caso em questão, prescinde da presença de manipulações da lei eleitoral. Uma legislação eleitoral doutrinariamente aberta à livre expressão de correntes de opinião, associada à notável modernização dos procedimentos eleitorais, indica antes o contrário. A ignóbil porcaria, em versão brasílica, releva do ânimo oligárquico infrene, não inteiramente isento de fundamentos heterodoxos em matéria penal. Sua lógica é a da neutralização dos efeitos democratizantes que resultam da regularidade eleitoral.
Por conforto nominalista, designamos pelo termo “eleições” o que poderia ser mais bem descrito, sob ótica oligárquica, como temporadas de captura de sufrágio. Do ponto de vista das oligarquias partidárias, trata-se de retirar da massa geral dos eleitores – termo aparentado à “massa geral dos impostos” – recursos políticos para a obtenção de poderes parlamentares com vistas ao controle de instrumentos de governo. O ponto de vista dos democratas não pode ser de natureza idêntica. Deve evitar, sobretudo, a desorientação exercida pelos que sustentam que o jogo é esse mesmo, e que a democracia, por suas próprias características, não passa de um nome palatável para designar a ignóbil porcaria.
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