Renato Lessa
(Publicada em minha coluna Sobrehumanos, na revista Ciência Hoje, dezembro de 2010)
Houve um tempo no qual o escritor Monteiro Lobato (1882-1948) foi fundamental para a constituição de nossa sensibilidade para com o país e o mundo. Ninguém como ele, na literatura brasileira, foi capaz de mobilizar a imaginação infanto-juvenil, e mesmo dos quase adultos, para temas tão variados. Se abstrairmos a obra adulta, dotada de grande mérito, a dedicada à juventude teve valor inestimável, pela associação singular entre exercício da imaginação e ânimo enciclopédico.
A dimensão pedagógica do empreendimento de Monteiro Lobato teve a marca inequívoca da variedade disciplinar. Livros inteiros dedicados a diferentes disciplinas: geografia, física, aritmética, gramática, astronomia. Os livros Viagem ao céu, História do mundo para as crianças, Emília no país da gramática, Aritmética da Emília, Geografia de D. Benta, História das invenções e O poço do Visconde configuravam uma deliciosa Paidéia infanto-juvenil, a um só tempo humanística, moderna e multidisciplinar. Os temas da mitologia grega, assim como a escuta das narrativas populares – ver, por exemplo, Histórias de Tia Nastácia – somavam-se ao quadro. Não há, hoje, à disposição do público infanto-juvenil, obra semelhante e com tal capacidade de sedução literária.
Dois livros infanto-juvenis de Monteiro Lobato exerceram particular impacto na imaginação dos muitos que os devoraram. Em A reforma da natureza e A chave do tamanho, foi tratado de forma sublime o tema da intervenção dos humanos no curso da história e da natureza. Ainda que, ao fim e ao cabo, a natureza apresente as razões para ser como é, no que diz respeito à história o livro A chave do tamanho, publicado em 1942, tem início quando Emília e seus companheiros de estória resolvem acabar com a guerra. Para tal, dirigem-se a um lugar no qual várias chaves controlam as dinâmicas do mundo. Ao tentar modificar a posição da chave da guerra, Emília move a chave do tamanho, transformando os humanos em seres liliputianos. O enredo é delicioso e sugere o quanto a experiência da história e da vida dos humanos é assaltada por nossa capacidade de intervenção e de alteração de circunstâncias.
Seria impossível, hoje, escrever os livros infanto-juvenis de Monteiro Lobato com a mesma linguagem e com o mesmo quadro de valores nos quais foram concebidos. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades e muda-se a linguagem, assim como os limites do que é adequado dizer. A literatura, no entanto, é um patrimônio. Como tal, não pode ser refeita e corrigida ao sabor das inovações conceituais que lhe sobrevêm. Melhor é cuidar do patrimônio e desenvolver inteligência crítica e analítica para lidar com ele, tal como ele é.
Parece não ter sido essa a orientação do Conselho Federal de Educação. Por unanimidade, os conselheiros ‘condenaram’ um dos livros de Monteiro Lobato – Caçadas de Pedrinho, por conter expressões racistas externadas pela boneca Emília – e propuseram sua exclusão da lista de livros adotados pelo Ministério da Educação. Em boa hora o ministro da Educação, Fernando Haddad, vetou a estultice. Não seria melhor desenvolver entre os professores uma capacidade de interpretação crítica de passagens daquela natureza? Não seria isso, inclusive, uma ótima oportunidade para tratar com os alunos do tema do racismo?
É de imaginar o cenário tétrico, de limpeza literária, marcado pela transformação do parecer do Conselho em política pública. Quantas vítimas literárias teríamos? O que dizer dos índios tratados nos romances de José de Alencar (1829-1877) e das mulheres ‘vitimadas’ nas peças de Nelson Rodrigues (1912-1980)? É de lembrar, ainda, o processo ao qual foi submetido o livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880), na França do século 19, brilhantemente analisado em livro do historiador norte-americano Dominick La Capra (Madame Bovary on Trial, de 1982). Acusado de obscenidade, o livro foi a julgamento em 1857. Ao fim e ao cabo, tudo acabou bem: o livro foi absolvido naquele mesmo ano e conta-se que o acusador-mor – Ernest Pinard (1822-1909) – terminou seus dias a escrever literatura obscena.
Viva! diria a Emília...
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