Renato Lessa
(Versão ligeiramente modificada do artigo publicado no Suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 28/08/2011)
Mais do que eleger sua candidata, em fins de 2010, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva parece ter logrado reeleger uma forma de governar o Brasil. Claro está que tal entidade – a suposta “forma de governar o Brasil” - não se fez presente, de modo expresso e nominal, nas opções apresentadas pelas máquinas de votar. É de se supor, com boas razões para tal, que parte expressiva dos que votaram em Dilma Roussef foi composta por gente que se limitou a escolher Dilma Roussef, sem ilações metafísicas, por simples oposição à alternativa de seu derrotado opositor. Contudo, trata-se de um voto que, desde que formulado como intenção, abriga em seu núcleo duro sua marca de origem: a pretensão de uma transferência que, mais do que eleitoral, apresenta-se como doação de sentido e de identidade.
A constituição de Dilma Roussef como sujeito político, com as responsabilidades inerentes e correntes, releva de tal origem. Essa é, mesmo, sua marca indelével. Isso não estabelece, de certeza, qualquer fatalidade e tampouco condena a presidente ao fracasso ou a seu primo-irmão, o sucesso. Para o pior e para o melhor, o futuro permanece ignoto e, por maioria de razão, sujeito à disputa acérrima a respeito de como o configurar.
A despeito da ausência de determinismo férreo, corremos o risco de ingenuidade se desconhecemos a força potencial da marca de origem. Ela estabelece um campo de oportunidades, cujas implicações possuem ainda contornos imprecisos. Tal imprecisão decorre, em grande medida, do fato de que a transmissão Lula-Dilma, mais do que fenômeno eleitoral e de doação de sentido, incluiu uma expectativa quando à forma de governar. Enganamo-nos quando supomos que a forma de governar é algo afetado sobretudo pelas marcas pessoais do governante. Ainda que tal dimensão esteja distante da irrelevância, ela tem a sua produtividade afetada de modo significativo pelo ambiente que circunscreve sua presença no mundo. Fácil falar assim, mas difícil de entender a vida como ela é. Com freqüência tais marcas pessoais são parte do ambiente, e não algo que o antecipe como expressão genuína de uma personalidade intocada.
Seja como for, no caso da transmissão em questão, tal ambiente pode ser definido como uma forma de governar configurada pela crença – e pela prática que dele decorre - de que tamanho do governo é antes afetado pela extensão da coalizão de apoio do que pelas implicações de seu programa, apresentado aos telespectadores para fins de captura de sufrágio. Em outros termos, trata-se de uma forma constituída pela presença de uma grande e fragmentada coalizão de apoio – a “base aliada” – que, a despeito de eventuais orientações em contrário, é vulnerável aos hábitos predatórios e particularistas de parte expressiva da elite política brasileira. Não é surpreendente que no afã da captura de território, uma elite porosa a hábitos extrativos opere em permanente estado de natureza. É notável o quanto da exibição de escândalos correntes deriva de quebra da ética de silêncio. Por mais que atores externos se ocupem da observação do que se faz na vida pública, é inegável que a base de informações a respeito da predação depende, em não pouca medida, de quebra de códigos de honra de extração mafiosa.
Ainda que as implicações criminais dêem azo à indignação, são os critérios originais de configuração dessa forma de governar que operam como fundamento. Não estou a sugerir uma linha de implicação direta, mas apenas uma estrutura de oportunidades na qual a deriva heterodoxa em matéria penal é um dos desdobramentos possíveis. Não há surpresa, portanto, na exibição sucessiva de, digamos, escândalos, já que o campo no qual eles se inscrevem como possibilidade está aí posto, e há algum tempo. A novidade, se calhar, consiste na escala de implicações públicas: quedas de ministros e adoção explícita da chantagem como método de interação política.
Tal novidade não deve ser debitada a eventual agravamento dos hábitos predatórios, e nem ao aperfeiçoamento dos métodos de investigação. Otimistas cívicos sempre estão prontos a aderir a éticas de faxina, na suposição de que elas devém do clamor público e do fortalecimento da cultura cívica. Melhor seria considerar hipótese distinta, que indica algo que politólogos áulicos candidamente designam como “falha de coordenação”. Depurado o eufemismo, tal “falha” indica simplesmente a ausência de um operador capaz de extrair da forma de governo estabelecida o “rendimento” que ela apresentou nos mandatos presidenciais anteriores: aquiescência, disciplina e controle sobre as implicações políticas de espasmos predatórios.
Em outros termos, é necessário ler na lógica dos escândalos um sub-texto possível, a fixar uma pretensão de imprescindibilidade. Não significa isso dizer que os escândalos, e suas conseqüências na configuração do governo, sejam eventos preparados por quem sustenta a imprescindibilidade do ex-presidente, como grande operador da política brasileira. O que aqui está a ser dito, com dose menor de paranóia, é que a natureza dessa forma de governar, com suas implicações naturais, exige um operador com os atributos de associação do ex-presidente. Trata-se de um juízo, digamos, funcional. Tudo isso é, é evidente, conjectural, pois não há garantia antecipada de que tal operador possa ter a mesma eficácia em qualquer circunstância. Os que nisso apostam, podem perder feio, mas, com certeza, muito menos do que os telespectadores.
Às imposições da natureza, os humanos opõem os recursos da imaginação e da vontade de autonomia. Resta saber em que medida Dilma Roussef – a quem não falta coragem – aplicará tais atributos. Só sei que, mesmo que Lula seja seu candidato in pectore à sua sucessão, tal inclinação não terá efeitos apenas nos resultados de 2014, mas pesará como sombra a cada dia do restante de seu mandato. Nesse caso, a tal forma de governo terá esterilizado a pretensão de autonomia. A ver vamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário