Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás do jornal Estado de São Paulo, em 15/4/2012)
Se a identidade nacional de uma população for definida por suas práticas mais usuais, pode-se dizer que o brasileiro é, antes de tudo, um telespectador. A medida de exposição diária ao veículo supera a quantidade média de horas passadas pelas crianças brasileiras, a cada dia, nos bancos escolares. Se fosse eu um paranoico amador, diria que o conteúdo veiculado está a serviço do propósito de transformar os cidadãos do país em uma cáfila de oligofrênicos cívicos.
(Nota metodológica: por ignorar qual seja o coletivo de “oligofrênicos cívicos”, optei por “cáfila”, que me parece menos ofensivo do que “vara” e mais apropriado do que “alcatéia” ou “enxame”; espero não ser molestado pela Sociedade de Proteção dos Camelos)
Não sei se há propósito na coisa, mas isso é irrelevante. O que parece ser incontroverso é o fato de que no jorro televisivo, o espaço dedicado à informação política resume-se a poucos minutos dos jornais intercalados em meio ao que interessa – as novelas – e a alguns minutos a mais para os noctívagos, nos jornais do fim da noite. Da qualidade da informação, pouco há que falar: pouquíssimo texto, abundância de lugares comuns, imagens agressivas. Sobretudo denúncias, já que o animal telespectador que se quer fabricar deve ser um vingador vicário, adicto à droga inscrita na dose diária de escândalo que lhe é ministrada.
O civismo do personagem deve confinar-se na indignação instantânea, que fenece no próprio ato de expressão, imediatamente encoberta pelo turbilhão de imagens a respeito de assuntos diversos. Em plena “sociedade da informação”, são os ecos do padre Antonil, importante cronista colonial, que se insinuam, ao falar, no século XVIII, das crianças criadas nos engenhos de açúcar “como tabaréus, que nas conversações não saberão falar de outra coisa mais do que do cão, do cavalo, e do boi”.
Mas, mesmo supondo que as energias cognitivas médias do país estejam em estado de deflação - e que passemos grande parte de nossos trabalhos e dias a falar do “cão, do cavalo e do boi” – há coisas que não podem deixar de ser percebidas. Não há como imaginar que os brasileiros sejam, por natureza, menos inteligentes do que outros povos. Nesse sentido, é inacreditável pretender sustentar que o turbilhão que envolve o senador Demóstenes Torres é extrínseco ao enredo que o constituía, até o momento de sua caída em desgraça, como campeão da direita brasileira e virtual candidato à Presidência da República.
Seu ex-partido – o quase ex-DEM – é formado por experientes expoentes da política tradicional brasileira, que têm noção precisa a respeito do que deve ser a vocação da política. É pouco crível que ao menos parte dos elementos, digamos, biográficos do senador Demóstenes fosse desconhecida de seus pares mais importantes. A cultura política que paira sobre o estado do Goiás, e parece vincular em uma rede pluripartidária todo o espectro da representação política à um circuito criminoso, não é goiana, sua linguagem e sua gramática podem ser compreendidas em diversos cantos do país. E nesses cantos, entre próceres-operadores de outros partidos, há os que pertencem à agremiação que tinha no senador Demóstenes, destemido e implacável campeão.
Assim como Nelson Rodrigues definia os tarados como “homem normais pegos em flagrante”, os correligionários de Demóstenes Torres, no âmago de suas almas, devem concebê-lo como um “senador normal pego em flagrante”. Sua desgraça consiste exatamente no flagrante. É evidente que é um erro generalizar a proposição, mas será ingenuidade desconhecer a plausibilidade do mantra. O caso Demóstenes é expansivo: a mesma rede se apresenta a alguns insuspeitos e a outros nem tanto assim. A rede é viscosa e sua pregnância não reconhece distinções partidárias. O efeito da dispersão – ou da onipresença da relação entre alta criminalidade e alta política – apresenta-se em uma percepção pública, cada vez mais comum e consolidada, de que os agentes públicos apanhados em conversas estranhas são “homens normais pegos em flagrante”. O flagrante aparece como capricho; como azar e como descuido que revelam a normalidade das coisas.
Se o espectro do Direito Penal ronda a política, os tribunais, de modo necessário, convertem-se em arenas decisivas, não apenas para a sentença devida, mas para a elucidação do que está a se passar. Graças a inteligente e oportuna intervenção do Presidente do Partido dos Trabalhadores, aprendemos que o evento Demóstenes – e toda a infestação que o acompanha – possui, digamos, propriedades compensatórias com relação ao estrago de 2004. Com a palavra o STF, que, assim, cumpre tripla função: a que lhe é própria – a de julgar -; a de dirimir disputas políticas e a de explicar o país para os telespectadores. Do jeito que a coisas seguem, as sentenças do STF qualificam-se como itens bibliográficos obrigatórios para quem quer entender a normalidade do país.
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