Renato
Lessa
Para Manuel
Conheci Manuel
Villaverde Cabral no século passado, nos idos de 1998, na altura de uma viagem
que fez ao Brasil. Havíamos antes trocado mensagens sobre a possibilidade de
participação do finado Iuperj – então sob minha direcção – no consórcio do
ISSP, no qual Manuel sempre foi um dos grandes animadores e entusiastas.
Fundamentalista dos inquéritos, a Manuel interessava a presença de uma
instituição de pesquisa brasileira naquela rede internacional e vislumbrava
possibilidades inéditas de comparação, pela escala e pela diversidade do país
em questão. Do meu lado, embora não partícipe pessoal da obsessão pelos
inquéritos, a coisa parecia-me interessante, já que ensejava a possibilidade de
colaboração institucional entre o Iuperj e o ICS.
Nada muito
auspicioso para o início de uma amizade, essa aproximação entre o aficcionado
por inquéritos e o filósofo político céptico e nefelibata, para quem os números
parecem ser uma maldição legada à filosofia, e ao pensamento em geral, pela
esotérica seita dos pitagóricos... Mas, qual o quê, a polimatia inacreditável
do personagem e a ausência em sua verve de nada que não possa dar ensejo a
conversas intermináveis e não-triviais acabaram por dissolver a ameaça de
falhanço na interação. Caso confirmado, tal falhanço teria feito a minha vida
menos interessante, nos anos que se seguiram à visita do Dr. Villaverde ao
Brasil.
Apanhei-o em um
hotel no Leme e, após um almoço que prenunciou os exageros pantagruélicos dos
anos que viriam, andamos a dar voltas pelo Rio, a culminar com uma incursão à
estrada que atravessa a favela da Rocinha, ao pé do bairro de São Conrado. Dos
riscos aos quais nossos fígados e artérias haviam sido submetidos, na primeira
de uma larga série de refeições excessivas, passamos, pois, ao risco ordinário
da deambulação por sítio pouco ortodoxo. Ao fim da jornada, já podíamos nos
considerar como amigos (e sobreviventes...). Pouco sabíamos um do outro – na
verdade, até que já sabíamos bastante -, mas havíamos instalado em nós mesmos
um poderoso software no qual as
aventuras e experiências dos anos subseqüentes viriam a se fixar.
Conheci,
portanto, Manuel há cerca de doze anos. Não foi necessário muito tempo para que
nos tornássemos amigos de infância. Como se eu tivesse vindo ao mundo na
freguesia de Rosto do Cão, na Ilha de São Miguel, ou Manuel no bairro carioca
da Muda (local no qual os veículos à tração animal “mudavam” os burros que os
puxavam, na direcção da Floresta da Tijuca). O facto é que a hipótese
apresentada, e jamais verificada, por Michael Curtiss ao final de Casablanca - a do “início de uma bela
amizade” entre Richard Blaine e o Cap. Renault - foi plenamente confirmada no
nosso caso.
A amizade com
Manuel nutriu-se, para além do que desenvolvemos entre nós, de uma outra
amizade, das maiores que ele teve, por toda sua vida. Falo de alguém que aqui
de certeza estaria, e que segue a freqüentar nossas conversas e memórias. Falo
de Fernando Gil, a quem, pouco depois de nos conhecermos, ainda em 1998, Manuel
apresentou-me em Maputo. Tornamo-nos, em pouco tempo, - Fernando e eu - muito
próximos e afins, em uma amizade como o quê instalada na imensurável amizade
que unia Manuel a Fernando. O horizonte circular da amizade entre Manuel e
Fernando acabou por circunscrever minha
própria amizade com o segundo e a frequentar a que mantenho, como uma espécie
de património afectivo precioso, com o primeiro. Quando juntos fomos a
Aspe-en-Osse, nos Pirineus Atlánticos, nos despedir de Fernando, em março de
2006, tal superposição de panos afectivos, longe de ser dissolvida, condensou-se na amizade singular e
inegociável que me traz a esta homenagem.
Faço a nota aqui,
nem tanto por apego biográfico, mas para introduzir o meu argumento a respeito
do que dizer a Manuel – e aos amigos e colegas que aqui estão – na circunstância
desta homenagem e para, de certo modo, trazer um pouco, à esta ocasião a
presença do Fernando. Além do que, em fórmula mais directa, meu próprio
argumento muito devém dessa experiência de amizades intercaladas.
Longe de ser um
dogmático, Manuel pode ser definido como um truth
seeker. Em outros termos, a experiência
com a verdade está, a meu juízo, fixada em sua trajetória intelectual. O
mais, são epifenômenos: livros, artigos, marcadores de produção científica,
posições, honrarias... Tudo isso conta, por certo, mas temos aí um sujeito para
o qual a experiência com a verdade
adquiriu uma dimensão ética, para além das aventuras da cognição. Uma
experiência que atravessa as múltiplas facetas desse intelectual nada ordinário
e um tanto cubista: o historiador, o sociólogo político, o militante, o
intelectual público, o institutional
builder, o portador de uma cultura estética oceânica (artes plásticas,
literatura, música, etc)...
O tema da verdade
apareceu – e permaneceu – como um elemento permanente em nossas trocas
intelectuais. Não falo da verdade no sentido da velha metafísica, mas em cariz
deflacionado e, por assim dizer, imediato e presente em indagações do seguinte
tipo: sob que condições podemos dizer que conhecemos algo e que possuímos
justificativas e protocolos sustentáveis para tal? Em que condições podemos
dizer o que é o caso? O que acontece connosco quando dizemos que sabemos algo?
De minha parte,
apresentei-me ao “debate” com Manuel munido dos argumentos colhidos na tradição
do cepticismo filosófico, condensados, penso, na engenhosa ideia desenvolvida
por Nelson Goodman de que nossas proposições sobre o mundo estão, antes de
tudo, inscriptas em quadros de referências que tornam possíveis tais
proposições. A pretensão de inscripção ontológica directa dessas proposições
diz da vocação irremediavelmente alucinatória da cognição dos humanos.
Não sendo Manuel
um empirista rústico – longe disso -, não foi difícil perceber a sua atenção
para com o permanente abismo epistemológico, intercalado entre (i) correlações, mesmo as que se apresentam
como mais significativas, e (ii) juízos
de causalidade. Um abismo tanto maior quanto mais se trata de investigar o
inaudito, o incomum, ou mesmo, por vezes, eventos cujas distribuições de
freqüência aparecem como caóticas. Enfim, a percepção do abismo indica que há
algo nesse sujeito que pode abrigar alguma dúvida céptica, ao par de uma recusa
à misologia da suspensão preguiçosa do juízo.
Mas foram as
questões provenientes da minha aproximação com a reflexão aberta por Fernando
Gil que terminaram por frequentar as tertúlias, digamos, meta-teóricas com
Manuel. É nesse preciso sentido, que as interacções que antes mencionei
acabaram por se superpor. Três temas da singular reflexão filosófica de
Fernando Gil são – ou deveriam ser - de interesse compulsório para os que se
ocupam de questões que andam à volta com o enigma da verdade: crença, evidência e convicção.
São temas que estiveram sempre presentes na obra de Fernando, e que se
encontram precipitados em seu último trabalho de fôlego, La Conviction, editado em 2000.
Um dos pontos aos
quais Manuel e eu sempre retornamos em nossa troca assistemática diz respeito
ao tema da crença, um dos temas gilianos mais permanentes. Nunca fui capaz de
convencê-lo a respeito da centralidade ocupada pelas crenças nas operações mais
básicas do assim chamado homo sapiens.
Manuel, a propósito, define-se como um sujeito
sem crenças, e eis aí mesmo, creio, o lugar no qual se fixa a sua crença
mãe – a sua Ür-Glaube -, a de que não
possui crenças. Em outras palavras, Manuel crê que não possui – ou não sustenta
– crenças. Hegel, em uma certa altura, disse que só uma obra de arte pode
refutar uma obra de arte. Em direcção semelhante pode-se asseverar que só uma
crença pode cancelar as demais crenças. No caso de Manuel, o fenômeno adquire
fisionomia mais grave: é o próprio sujeito que se apresenta como portador de
uma crença de que está imune a todas as crenças.
Auto-engano?
Mauvaise conscience? Inautenticidade? Suspeito que nenhuma dessas opções é
capaz de descrever a dialética manuelina a respeito das crenças. Suspeito,
ainda, que tal atitude é, por maioria de razão, condição para exercer sobre as
crenças uma inspecção crítica permanente. Algo que só se torna possível pela
presença e pela operação de uma crença inegociável em um ethos de integridade intelectual. A crença na ausência de crenças faz, pois, sistema com o tema da experiência com a verdade. Mas, não
sendo exactamente um Ulrich, Manuel-sem-crenças possui imensas qualidades. Uma
delas é fazer do meu falhanço em “vencê-lo” quanto ao tema da crença uma das
razões para não desistir de mim.
Leitor inveterado
de Sebald e Luhman, a perspectiva manuelina de observação da vida social tem
muito do ângulo de uma história natural[2]. Falo de uma atenção
aos processos não-intencionais que circunscrevem os domínios nos quais
acreditamos ecercer livre arbítrio e, mesmo, escolha caprichosa. Esse
sociólogo, por assim dizer, naturalista, ao contrário do que se pode supor não
é imune ao encantamento diante do que se faz no terreno imediato da acção
humana. É o acréscimo inaudito de sentido, inscripto na circunstância imediata
– seja ele um fragmento do Pierrot
Lunaire, de Schoenberg, ou uma consigna política soixante huitarde – que, desconfio, o encanta. E isso apesar de não
abrir mão da crença de que experimentos singulares são precipitações de
tendências e processos gigantescos. Esta, sim, é uma crença villaverdiana
inegociável.
Encerro com o
tema da experiência com a verdade. Há aqui um argumento de Fernando Gil que tem
estado a rondar as conversas com Manuel, e que faz com que se nos avizihem os
tópicos da evidência e da convicção . Há três modos básicos, por
meios dos quais, experiências com a verdade são possíveis: a prova, a demonstração e a argumentação.
Por não ser um dogmático, Manuel, creio, afasta-se do modo da demonstração como forma de validação. Um modo que, como
sabemos, exige nada menos do que verdades universais a montante e corolários
necessários a jusante. Não sendo essa a experiência com a verdade que o anima,
Manuel apega-se a argumentações e provas, tomando-as como complementares e
necessariamente vinculadas.
As experiências
com a verdade, fundadas nos modos mencionados, dizem respeito à uma relação
entre o sujeito que sabe e algo estabelecido em seu exterior: há sempre algo
distinto de si que deve ser demonstrado, provado e argumentado. No entanto, há
uma experiência com a verdade distinta, de caráter privado e, mesmo, solipsista
inscripta em outro modo possível de fixação da verdade, o da evidência. Um modo que produz efeitos de
conhecimento anteriores à operação dos modos já apresentados, e que reside na
relação, um tanto abscôndia, do sujeito com seu próprio saber.
Que Rousseau
sustente – e nos convença - que a condição originária dos humanos seja marcada
pela mais completa igualdade natural, ou que Hobbes também o faça, a respeito
da necessidade do medo da morte violenta como suporte do liame social, isso
tudo diz respeito a uma forma de validação fundada na argumentação (ainda que,por vezes, tenham – sobretudo Hobbes –
pretensões à demonstração).
Mas, de qualquer
forma, como eles sabem isso? Se não
vale o recurso à história, execrado por ambos como fonte de erros, absurdos e
desorientação, a quem – ou ao quê – apelar como potência de elucidação? À
razão, por certo, mas há algo de especial nessa “experiência” com tal potência.
Uma experiência que não advém do mundo “exterior”, mas de domínios
introspectivos e, mais do que isso, solipsistas. A filosofia política tem se afirmado
como um saber fundado em crenças que encontram na evidência – e não no trio antes mencionado (prova, argumentação,
demonstração) – a sua sustentação por assim dizer originária.
Há, de certeza,
aqui uma aproximação possível com o tema freudiano da onipotência do
pensamento, tomado de empréstimo a Fraser e desenvolvido por Freud em Totem e Tabu. Falo, em particular, da
passagem alucinatória que faz com que processos psíquicos internos sejam
tomados pelo sujeito como antecipações do desenho do mundo exterior e “real”. A
psicologia faz-se ontologia, pela acção desse salto onipotente. Olho para
Hobbes e Rousseau e vejo praticantes da onipotência do pensamento. Há,
asseguram-me meus amigos psicanalistas, tratamento clínico para tal afeccção,
digamos, patológica. Mas, eu pergunto, quanto filósofos políticos e inventores
de mundos, em geral, foram ceifados pelo sucesso desse tipo de clínica?
O interessante é
que o solipsismo contitutivo da faina dos filósofos políticos pretende
configurar o mundo público. Nesse sentido preciso, filósofos políticos são
inventores de mundos e não praticantes de protocolos de descrição. Com versões
do ceticismo moderno, via Wittgenstein e Goodman, aprendemos que os humanos
ordinários são praticantes de ways of
world making, através da utilização de símbolos (aqui, também, Ernst
Cassirer). Ainda que tal experiência com a elaboração e manipulação simbólicas
seja eminentemente social, há nela uma dimensão de solidão e introspecção,
presente no salto, expresso pela linguagem, da atribuição de sentido ao mundo.
Tal salto, tal
como de forma sagaz assinalou Bertrand Russel, é marcado pelo solipisismo originário da atribuição de
sentido, que foge a regras semânticas e denotativas usuais. Os que produzem
espanto quando falam do mundo, acrescentam a este significados cuja origem se
encontra na evidência e na intuição e não na experiência ordinária.
É essa passagem
da evidência para a experiência – a passagem
ao acto própria da filosofia política - que faz da invenção política um
antídoto permanente à repetição e às inércias sociais. Há, por certo, muita
sociologia à volta das ideias. Afinal, temos as ideias que as nossas
circunstâncias permitiram que tivéssemos, o que inclui a ideia de que nossas
ideias independem das circunstâncias. Isso, concedo, aprendi com o adorável
sociólogo naturalista, apegado a sua autonomia como sujeito ao mesmo tempo em
que praticante de uma recusa em conceder ao livre arbítrio protagonismo na
fabricação da vida social.
Mas, se há
sociologia à volta das idéias, há algo que ultrapassa o campo de possibilidades
estabelecido pelas determinações de ordem mais geral. Para o sujeito portador
de idéias, e por elas é possuído, a experiência da intuição e da evidência
abiga a dimensão abissal da alucinação, da contrafacção, da negação de desenhos
rotineiros de mundos, da elaboração simbólica heterodoxa, da inevanção, da
falibiliadade, do medo, da esperança e da loucura. São essas algumas das
questões que eu gostaria de insistir com Manuel nos próximos setenta anos de
nossa presença no planeta.
Para além disso,
cabe o registro de uma dupla convergencia, no que nos têm movido intelectual e
civicamente:
1. Uma insatisfação
progressiva para com as linguagens que definem a democracia de uma forma
minimalista e identificada com arranjos institucionais permanentes e bem
definidos. O espinosismo de Manuel encontra, aqui, afinidade plena com meu
anti-institucionalismo. A democracia é, antes de tudo, um processo social que
interpela, com suas potências nem sempre sistemáticas, a vida pública e
institucional.
2. A adesão a uma
forma de observação da política que incorpora a história, a sociologia e a
tradição das humanidade; que insiste na afirmação da força do longo prazo e
recusa o cortoplazismo e a obsessão
pela sincronia, que assolam a ciência política contemporânea. Uma demarcação,
por fim, para com o duplo movimento de ruptura que marcou a ciência política
contemporânea: (i) com a tradição das humanidades, na década de 50 do século
passado – via revolução behavioristas – e (ii) com a tradição das ciências
sociais – via a hegemonia ideológica do neo-institucionalismo e da “teoria” da
escolha racional. Pela primeira ruptura, reinventa-se a “análise política” como
exercício intelectual asséptico e isento de valores. Pela segunda, a crença na
autonomia e na autarquização das intituições dispensa a considração de
dimensões sociais e históricas “externas” ao mundo político.
A insatisfação e
a adesão, aqui mencionadas, convergem na afirmação da necessidade do
intelectual público, mais do que do académico, stricto sensu. Não se trata de anti-academicismo juvenil, mas de
inscrever a vocação da ciência na perspectiva de um sujeito para o qual a
experiência com a verdade realiza-se nos planos da acção e do risco.
Jerusalem-Lisboa, setembro de 2010
[1]. Professor Titular de Teoria Política da
Universidade Federal Fluminense e Investigador Associado do Instituto de
Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa.
[2]. Penso, aqui, no livro seminal de W.
Sebald, Luftkrieg und Literatur (Guerra Aérea e Literatura), que recebeu
de Anthea Bell – tradutora “oficial” de Sebald para o inglês – o feliz título
de A Natural History of Destruction.
O próprio Sebald aprovou a transfiguração, já que a expressão é por ele
utilizada no corpo do livro.
Renato você conhece as ideias e, sobretudo, o raciocínio de Manuel como ninguém. Este é um texto para ficar. Eu também, como sabe, não o consigo convencer das crenças...mas conhecendo-o até acho que ele sabe que você também tem razão. O jogo villaverdiano todo está na argumentação, no perpétuo raciocínio do pensar. Não interessa saber onde se chega mas como se chega ...
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