(Publicado originalmente em minha coluna Sobre Humanos, na revista Ciência Hoje, vol. 242, n. 255, dezembro de 2009)
Uma das questões mais importantes que, durante este ano, estiveram sob inspeção e deliberação no Congresso Nacional diz respeito ao lugar do tema ‘raça’ no ordenamento legal do país. De forma não surpreendente, diferentes visões ensarilharam seus argumentos, em um confronto no qual, para além de estatutos e diplomas legais, é a própria narrativa a respeito de que país somos, e do que o constitui, que está em jogo. Dada a natureza da questão, muitos ângulos podem ser adotados para o enquadramento do debate e para a tomada de posições.
Um ângulo extremamente útil pode ser encontrado em pequeno e engenhoso ensaio intitulado ‘Subsídios para discussão no Senado brasileiro sobre a adoção de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras’, elaborado por Celia Kertenetzky e Marina Aguas, pesquisadoras do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (Cede), da Universidade Federal Fluminense(www.proac.uff.br). As autoras analisam os impactos possíveis da adoção da cota racial, somada à cota social, no acesso à universidade pública.
Graças à emenda feita pelo deputado Paulo Renato de Souza (PSDB/SP), o projeto de lei 73, de 1999 – que continua em tramitação no Congresso – estabelece que 50% das vagas das universidades públicas serão destinadas a estudantes egressos de escolas de ensino médio da rede pública. Essa parcela é dividida em duas subcotas: uma social (estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,55 salário mínimo por pessoa) e outra racial (que inclui pretos, pardos e indígenas, em suas proporções específicas em cada estado). Com base nesses percentuais e em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2007, Kertenetzky e Aguas fizeram um exercício sobre a aplicação desses critérios e produziram três conjuntos de evidências no mínimo interessantes.
1. Estudantes elegíveis às cotas sociais constituem nada menos que 75% do total de concluintes do ensino médio no país (público ou privado). Nas duas pontas, Piauí (92%) e Santa Catarina (58%). Se adotarmos aquele marcador salarial como linha de pobreza, é nítida a maioria esmagadora de pobres no contingente considerado. Como notam as autoras do estudo, dada a extensão da pobreza, seria alta a probabilidade de que um simples sorteio, seguido de ordenamento por nota, atingisse os estudantes mais pobres. Nos casos de Piauí e Alagoas, por exemplo, essa probabilidade seria mais do que alta.
2. A maioria do contingente acima indicado é composta por negros e pardos, que representam 56,1%, contra 43,2% de brancos. Isso implica que, se o foco for a renda e, portanto, os estudantes pobres, os negros serão os mais beneficiados.
3. A esmagadora maioria dos estudantes pobres estuda na rede pública de ensino (92%). Assim, se o foco for a rede pública, o maior benefício recairá sobre os estudantes pobres. De modo mais preciso, 95% dos estudantes pobres negros e respectivamente 94% e 86,6% de seus equivalentes pardos e brancos estão na rede pública. Dada a sobrerrepresentação dos negros e pardos na pobreza, a maior parte dos estudantes pobres da rede pública é negra e parda. Logo, se o foco for a rede pública, “os estudantes negros, que são a maior parte dos estudantes pobres, serão os principalmente atingidos”.
A conclusão principal do ensaio é clara: “Se o objetivo é atingir a população negra, a cota racial parece ociosa.” Ambos os focos, tanto o dirigido aos estudantes pobres quanto o que tem por base as escolas públicas, atingiriam preferencialmente estudantes negros. Com a vantagem de não introduzirem “iniquidades horizontais”, ou seja, a exclusão de não-negros pobres e/ou estudantes da rede pública.
É mesmo o caso de perguntar: quais as vantagens da racialização?
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