Renato Lessa
(Versão maior de texto publicado no suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em 17/02/2010)
(Versão maior de texto publicado no suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo, em 17/02/2010)
Em tempos de lassidão relativista, algumas experiências talvez mereçam abrigo em uma espécie de museu de verdades imunes ao tempo. Deixo a discussão a respeito do que podem significar as peças do acervo dessa improvável instituição. Contento-me com a reles possibilidade de um deposito empoeirado de eventos, a espera da inevitável incursão dos intérpretes, sendo esta mesmo uma condição necessária para o pensamento e para a invenção, além de abrigo farto para a relatividade. De minha parte, agarro-me ao lema: sejamos relativistas, mas cuidemos do museu de verdades imunes ao tempo.
Sustento ser fato indisputado que, assim como estou a escrever este artigo, em março de 1964 um governo legítimo foi, no Brasil, deposto por um golpe de Estado. Se o evento tivesse emergido nos dias que correm, teríamos, quem sabe, problemas no Mercosul, na OEA e, se calhar, na própria ONU. Algo, portanto, mais grave do que o ocorrido, para nosso horror e há pouco, na hipotética Republica de Honduras, passou-se sob nossos olhos, há mais de quarenta anos. Ainda que uma aloprada interpretação revisionista insista em atribuir a vítimas do golpe em questão os motivos centrais para a sua perpetração, tratou-se este, sim, de uma incursão que destruiu para sempre o ambiente político e institucional da Republica de 1946. Os méritos do disparate pertencem exclusivamente aos golpistas, e não a suas vítimas. Seu sucesso na empreitada, por maioria de razão, exige que consideremos sua pretensão de governar o país como ilegítima.
Ilegítimos foram, portanto, os governos e os atos que seguiram ao ato inaugural de 31 de março de 1964, e que insistiram em tomar o malfadado evento como mito fundador. Trata-se, contudo, de uma ilegitimidade com forte componente alucinatório, posto que devotada a extrair de dentro de si mesma, crenças e rituais de legitimação. Assim, reacionários empedernidos e saudosos dos idos de março de 1964 chegam às lágrimas ao ressaltar o legalismo (sic) do Marechal Castello Branco, o primeiro dos usurpadores. Desde já, adianto que uso o termo "usurpador" como substantivo, como termo técnico, a designar agente que obtém, sem direito prévio a isto, algo que não lhe foi atribuído segundo devido procedimento legal. Não falo, pois, da alma ou dos sentimentos do Marechal em questão, mas de seus atos e escolhas publicas. Penso mesmo que estou disposto a – e que talvez seja mesmo o caso de - anistiar o Marechal Castello Branco, já que segundo a Lei da Anistia, de 1979, alem dos atos praticados pelos que se opuseram à ditadura, “crimes conexos” estariam cobertos. Pois bem, a mãe dos tais crimes conexos foi a intentona de 1964. Então não?
Volto ao componente alucinatório. O regime – e chamá-lo assim já constitui um ato indevido de promoção ontológica – buscou em si mesmo um arsenal de bruxarias institucionais para apresentar-se de modo limpo e legal. Nada de semelhante ocorreu com vizinhos do Cone Sul. Por lá, golpistas, quando não cuidavam do extermínio de opositores, golpeavam-se mutuamente. Por aqui, praticou-se uma pantomina legitimista que, pela repetição e ausência de alternativas, deu azo a uma expressão que sempre me intrigou: a da “institucionalização do regime”. Na verdade, aí reside o grande sucesso da empreitada: passar de quartelada a regime, e disso a um “modelo político” próprio, pretensamente institucionalizado. Chamemos a isto de “lavagem de regime”. Para coroar, uma transição para a democracia feita pelas regras do próprio regime, cujo desaparecimento deveria ser condição necessária para a democratização. Como não há noticia de regime que tenha feito regras para que desaparecesse, algo de incomum deve ter ocorrido.
Alguns se opuseram à pretensão alucinatória, pela armas ou pela paciente sedimentação de uma resistência não-violenta. Mas, todos, independentemente das crenças que abrigavam a respeito do melhor dos mundos, tiraram as melhores conclusões diante do fato bruto da usurpação: o exercício do direito de resistência ao despotismo. Os que caíram nas malhas da repressão, conheceram o destino que se apresenta aos humanos, quando submetidos de modo absoluto a celerados. É a memória da dizimação de corpos e expectativas que conta, e não as crenças políticas dos seus portadores. Quer um repugnante exercício revisionista desqualificar o tema da tortura e da violação dos direitos humanos pela suposição de que os que combateram o regime de 1964 não seriam democratas legítimos, mas agentes proto-totalitários.
O que hoje está em jogo é saber que lugar ocupará a experiência dos anos da ditadura na longa duração histórica do país. Em uma camada ainda mais profunda, trata-se de saber do lugar reservado ao esquecimento e ao tabu nas narrativas a respeito da experiência histórica da nação. E é aqui que se apresenta o maior sarilho: o modo de inscrever o passado em nossas narrativas depende das erráticas condições do presente. Nada, pois, mais distante dos marcadores inegociáveis contidos nas idéias de verdade e justiça. Na Argentina, uma ditadura derrotada deu passagem a um regime que nada lhe devia. O momento pós-autoritário, naquele país, pode organizar seu museu de verdades imunes ao tempo, ao mesmo tempo em que fixou sobre o acervo interpretações precisas. Com idas e vindas, militares genocidas foram reconhecidos pelo que foram. Os feitos do capitão Astiz – heróico no assassinato de freiras francesas e covarde na guerra das Malvinas – estão inscritos indelevelmente na filial portenha do museu ao qual aludi.
Por cá, o enquadramento da resposta às questões acima indicadas foi fixado pela Lei de Anistia, de 1979 e por alterações sucessivas. Imaginar sua revogação, para fins penais, é algo que não combina com a natureza do processo que livrou-nos da ditadura. Perdedores absolutos estão sujeitos a aplicação implacável e automática da justiça por parte de vencedores indisputados. Nestas plagas, quem se habilita a ocupar, à vera, tais posições?
Melhor seria ter a coragem e o caráter de tomar a Lei da Anistia ao pé da letra, e estender a todos os envolvidos seus benefícios, o que inclui os tais crime conexos. Porém, há uma exigência: é fundamental saber quem está a ser anistiado e por qual razão. Tomemos um exemplo. O deputado Fernando Gabeira foi anistiado por sua participação no seqüestro do embaixador Elbrick, em 1969. Quer isto dizer que a condição de usufruto da anistia exige o reconhecimento público de algo que, em algum momento foi de fato feito, com data, hora e lugar. Não fosse assim, o deputado não seria anistiado, pois nada teria feito para merecer a honraria.
Devem ser anistiados os envolvidos com a usurpação de 1964, os que mataram e torturam e os que os comandavam. A condição, a meu juízo inegiciável, é a de que tenham nomes e rostos. Foi essa a cláusula aplicada com sucesso na África do Sul, resumida no lema: “we forgive, but we don’t forget”. A ênfase na punição para fins estritamente penais dá azo à odiosa cultura do veto e da pretensão da tutela dos comandantes militares sobre a República. A eventual alopração por parte de um esquerdismo inócuo e reduzido à simbologia ressentida – simpatias chavistas e acenos ao Hamas y compris - é menos grave do que a (in)disposição militar diante da questão. A gravidade reside no fato de que mais do que não admitir que torturadores e seus comandantes venham a ser punidos, os chefes militares recusam a ver seus camaradas antecessores como anistiáveis, pois estão convictos de que não há nada no passado recente das corporações militares que exija auto-crítica e arrependimento.
É necessário, pois, coragem e imaginação para buscar alternativas a um revanchismo que sabe a mal estudado oportunismo eleitoral e à recusa de devolver ao país do modo mais claro possível uma parte de seu passado recente. Que apareçam os corpos dos desaparecidos, que se abram os arquivos e que se peça desculpas ao país pelo despautério. Que se mostrem, enfim e para o devido perdão, os anistiáveis perpetradores de "crimes conexos". Assim, completamos o ciclo da anistia. Sem punições a montante, mas sem lacunas no acervo do museu de verdades imunes ao tempo.
tanto a inclinação pela busca da apuração dos fatos quanto a resistência a ela, certamente, estão implicadas pelas questões do presente. talvez os militares tenham algo mais que vergonha em relação ao passado recente da instituição: a resistência em relação ao Plano Nacional de Direitos Humanos soa como a permanência de um projeto político que pouco tem a ver com as tentativas presentes de democratização da vida pública.
ResponderExcluiroutras resistências ainda terão de ser enfrentadas no que diz respeito a nossa absurda legislação de arquivos.