O texto que aqui publico, devidamente exumado, foi elaborado há alguns anos e publicado no saudoso site concebido e dirigido pelo jornalista Flavio Pinheiro, o www.nominimo.com. Havia ali espaço para muitas coisas, o que incluia minhas eventuais colaborações, frequentemente feitas sob a forma de comentários a respeito de livros que eu julgava interessantes. É o caso de um livro, que pouco impacto teve (“Republicanos e Libertários: Pensadores Radicais no Rio de Janeiro, 1822”), mas que, de uma forma por vezes confusa - talvez pelo fato do país, naquela altura, já ser ele mesmo confuso - procurou iluminar um momento crucial na configuração do país, nos anos vinte do século XIX. Denominei o pequeno texto que escrevi a respeito como "A primeira esquerda brasileira". Ainda hoje sigo a pensar que era exatamente disto que se tratava. Vale a pena, ainda, o livro e, se calhar, a reflexão que fiz a respeito dele. A ver vamos.
Sergio Buarque de Holanda, em iluminada avaliação do legado colonial brasileiro diante das novidades das duas primeiras décadas do século XIX, sugere uma engenhosa hipótese de periodização. No lugar dos marcos canônicos – 1808, 1815, 1820, 1822, por exemplo –, nosso principal historiador propõe uma forma de datação na qual o período compreendido entre 1808 e 1836 ganha particular relevância. Menos por conter datas e acontecimentos que mais tarde viriam a somar-se à crônica da história da Independência – ou à sua “lenda histórica”, como disse Emilia Viotti da Costa – e mais pelo fato de que nesses vinte e oito anos o país abrigou um verdadeiro laboratório de experimentos políticos e institucionais. Segundo Sergio Buarque, “só depois, e mesmo durante o gabinete conciliador de Paraná, é que teremos a verdadeira reação monárquica”.
Localizar a “reação monárquica” nos idos da década de 1840, fazendo-a recuar, mesmo, à década anterior, na regência de Pedro Araújo Lima – sucessor de Feijó –, não é, com certeza, original. A marca é tradicional, consagrada e presente em muitos historiadores do 2o Reinado. Euclides da Cunha – em “Da Independência à República” – e Oliveira Vianna – em “O Ocaso do Império-” –, para evocar dois gênios, sustentam a datação referida.
A fertilidade da periodização sugerida por Sergio Buarque de Holanda reside em um aspecto que muitos poderiam tomar como negativo: entre 1808 e 1836 era virtualmente impossível estabelecer qualquer previsão a respeito do futuro político e institucional brasileiro. A “lenda histórica” da Independência nos induz a organizar fatos julgados “relevantes” no processo de separação de Portugal. A chegada da Corte portuguesa e a abertura dos portos, em 1808, a elevação a Reino Unido, em 1815, o Fico e a declaração final de Independência, em 1822, parecem perfilados no tempo, a indicar um processo cumulativo e condenado a desaguar na criação do Império do Brasil. O resultado final teria sido produto da moderação e do engenho de estadistas, eqüidistantes de posições extremadas.
O livro de Renato Lopes Leite – “Republicanos e Libertários: Pensadores Radicais no Rio de Janeiro, 1822” (Civilização Brasileira, 2000) –, discretamente lançado em meio ao boom editoral a respeito da história brasileira do século XIX, fornece excelente oportunidade para retomarmos as impressões de Sergio Buarque. O livro, que resulta de uma tese de doutoramento, pretende reconstituir o confuso e errático debate político dos anos 1821 e 1822, destacando o papel nele cumprido de um “imaginário republicano”, emoldurado pelos agitados meses que antecederam a Independência, na cidade do Rio de Janeiro. O principal mérito do texto é o de destacar a presença do que poderíamos designar como a primeira esquerda brasileira, materializada em um conjunto de ativistas – jornalistas, padres, políticos, juristas – associados a uma forma de propaganda republicana de corte bastante radical.
O principal foco do livro é a atividade jornalística e política – digna dos melhores especialistas em agitprop – exercida por João Soares Lisboa. Criador e redator do primeiro diário publicado no Rio de Janeiro – o “Correio do Rio de Janeiro” –, Lisboa pertencia a um grupo que a pena do conservador Visconde de Cairú não exitou em designar como de “perturbadores públicos” (entre eles tive a alegria de encontrar um Lessa: o padre Antônio João de Lessa, português, maçom e conhecido na altura como o “Catão Lessa”). A principal façanha desses “perturbadores” foi a conhecida “Representação do Povo do Rio de Janeiro”, dirigida ao príncipe D. Pedro em maio de 1822, que reuniu mais de 6000 assinaturas e que exigia a convocação de uma “Assembléia Geral Representativa”, ou “Cortes Brasileiras”.
É importante considerar que na altura, se estava claro que os tradicionais laços coloniais entre Brasil e Portugal eram insustentáveis, de modo algum o futuro imediato possuía qualquer visibilidade. O que a “Representação” sustentava era a necessidade de uma Assembléia Representativa, que funcionaria como sede da “soberania brasílica”. Reagindo à imposição das Cortes portuguesas, instaladas após a Revolução do Porto (1820), que haviam suprimido o papel do Rio de Janeiro como núcleo político, ao resubmeterem as províncias brasileiras ao controle direto e exclusivo de Lisboa, a “Representação” pode ser percebida como postulação de um caminho nítido em direção à independência. Uma independência que acabou não sendo, mas que se tivesse sido teria inaugurado um país sobre bases políticas e institucionais distintas. Hoje, se tudo corresse bem, estaríamos evocando outros founding fathers.
Ao evocar o episódio da “Representação”, o importante livro de Renato Lopes Leite, põe em relevo o lado urbano, radical e democrático da política brasileira na altura, como um dos componentes do processo de independência. A independência que foi, e que pode ser reconstituída nas idéias e nas ações de homens como Cairú e José Bonifácio, foi feita em grande medida contra a alternativa apresentada pelos radicais do Rio de Janeiro. Derrotados em 1822, eles apresentar-se-ão em outras ocasiões. João Soares Lisboa, por exemplo, morre em combate, em 1824, na Confederação do Equador, defendendo a sua idéia de república.
A “Representação do Povo do Rio de Janeiro”, além de indicar a sede da “soberania brasílica”, exibia, ainda, uma clara opção federalista (uma “união frouxa” entre as províncias) e uma clara defesa do voto direto. Um dos membros do grupo odiado pelo Visconde de Cairú, o jornalista Gonçalves Ledo assim sustentava a opção pelas diretas-já: “Que razão podemos dar, que direito apresentar para roubar aos indivíduos o juz de nomear aqueles que os hão de representar na fundação daquilo que eles têm de mais caro, direitos naturais e imprescindíveis anteriores a toda lei?”
A marca de seis mil signatários, em uma cidade cuja população branca a adulta, nos idos de 1822, talvez não tenha excedido trinta mil almas, é notável e indica dose considerável de envolvimento cívico. A manifestação tinha, contudo, precedentes. Cerca de um ano antes da “Representação”, em abril de 1821, uma reunião de eleitores do Rio de Janeiro, na então Praça do Comércio – em frente ao belo prédio de Granjean de Montigny (hoje Casa França-Brasil) – foi interrompida com gritos de “aqui governa o povo” e “haja revolução”. A malta exigiu do rei D. João VI, que ainda aqui se encontrava, o juramento da então liberalérrima Constituição de Cadiz, de 1812, e sua permanência no país, em aberto desafio às Cortes portuguesas. Enquanto o rei acedia à multidão, seu filho – D. Pedro – comandou sangrenta repressão. Segundo a viajante inglesa Maria Graham, em seu “Diário de uma Viagem ao Brasil”, “cerca de trinta pessoas foram mortas, muitas ficaram feridas e toda a cidade encheu-se de consternação indescritível”. O próprio Varnhagen, que não foi exatamente um republicano, lamentou o “modo bárbaro” com o qual os cidadãos cariocas foram tratados. Independentemente dos registros, o prédio de Montigny amanheceu no dia seguinte ao massacre com uma placa com os seguintes dizeres: “Açougue dos Braganças”.
Em “Republicanos e Libertários”, além da ênfase ao aspecto urbano e radical da conjuntura pré-Independência, abre-se a oportunidade de analisar as propostas de republicanos e democratas brasileiros – ou melhor, “brasílicos” – nos quadros da tradição mais ampla e longeva do republicanismo. O ponto central dessa tradição, presente em seus adeptos brasileiros, é a defesa do envolvimento dos cidadãos no trato da coisa pública e a democratização do poder político. Ao reencontrarmos esses republicanos no momento mesmo de constituição do país, é inevitável a pergunta a respeito de seu legado. O saber tradicional sobre a história política da Regência e do 2o Reinado indica sua supressão nos idos das décadas de 30 e 40. Da mesma forma, sabemos que o que virá a ser chamado de republicanismo ao final da Monarquia não guarda qualquer semelhança com a radicalidade de João Soares Lisboa, Frei Caneca ou Cipriano Barata de Almeida, exemplares da primeira esquerda brasileira. Ao contrário, ao observarmos os republicanos vencedores no 15/11/1889, temos a impressão de que clones do Visconde de Cairú – que orgulhosamente dizia que “Rousseau, e Condorcet, Mirabeau e Mably não são os meus homens” – dominavam, ressurretos, a cena política do país.
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