quinta-feira, 1 de julho de 2010

Por que ler Carlos Heitor Cony, ou "Um novo guia para os perplexos"

O texto, a seguir, resulta de entrevista que concedi a Flavio Pinheiro, há alguns anos. Flavio, na altura, editava um ótimo site - nominimo.com.br - e, a propósito de uma longa conversa que tivemos sobre o escritor Carlos Heitor Cony, imaginou um roteiro de perguntas, que acabou por resultar na entrevista que ora transcrevo. Passados cerca de 7 anos da conversa com Flavio, ainda mantenho minhas opiniões e sensação diante dos textos de Cony. Por isso, creio, vale a exumação do texto, que nunca cheguei a publicar. O próprio site dirigido pelo Flavio Pinheiro há muito saiu do ar.

"Renato Lessa é cientista político e leitor voraz de boa literatura. Admite que suas preferências literárias são ‘legionárias e promíscuas’. Mistura Virgílio, Dante, Shakespeare, Molière, Celine, Kafka, Joyce, Thomas Mann, Eça de Queirós, Jorge de Senna, Bioy Casares, Jorge Luis Borges, Primo Levi e Elias Caneti. Entre os brasileiros os obrigatórios Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, mas também Cornélio Pena, Marques Rabelo, Mario Filho e, é claro, Carlos Heitor Cony.
Leitor atento de tudo que Cony escreveu, nesta entrevista Lessa monta um guia do que ler, por onde começar e o que é absolutamente indispensável na vasta obra do escritor. Informação ao Crucificado é, para ele, o melhor livro de Cony, embora considere Tijolo de Segurança uma ‘obra-prima’. Muita gente não entendeu porque em seu último livro, A Tarde da sua Ausência Cony repete no fim um capítulo que estava no início. ‘Entendo o efeito literário, mas saí do livro com a sensação de Ter sido vencido por uma escolha formal’, diz

Se um dia fosse condenado a ser um livro, como aconteceu com a renitente comunidade de bibliófilos de Farenheit 541, obra de Ray Bradbury, hesitaria entre Guia dos Perplexos, de Maimônides, e os Ensaios de Michel de Montaigne. Leia, a seguir, a entrevista sobre Cony."
Flavio Pinheiro
("Novo guia para os perplexos", copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 11/7/03)


Por onde começar a ler Carlos Heitor Cony? Qual a importância de seus primeiros livros e por qual deles se deve começar uma leitura de Cony?
A obra de Cony é um universo com múltiplas entradas. Minha própria experiência de leitor - uma experiência em grande medida constituída pela leitura precoce de Carlos Heitor Cony - a cada reencontro com os textos e a obra imagina diversos começos possíveis. Por isso, temo que minha resposta a esta questão seja um tanto confusa.
Com o passar do tempo e com as sucessivas sedimentações de leituras repetidas, creio que uma das boas vias de acesso pode ser preenchida pela arte dos detalhes, tão disseminada nos textos de Cony. Uma forma de promoção do detalhe, aparentemente minimalista, mas que acaba por constituir átomos de sentido, cada qual dotado da carga dramática e expressiva do conjunto. Assim, imagino um primeiro contato hipotético com a obra de Cony através de uma pequena crônica, publicada em 1964, no heróico livro O Ato e o Fato: Crônicas Políticas (Ed. Civilização Brasileira), intitulada ‘Da salvação da pátria’. Nela Cony narra um episódio que eu mesmo, aos dez anos, vi pela antiga TV Rio - nosso saudoso canal 13 -, qual seja o da ‘tomada’ do Forte Copacabana, no dia 31 de março de 1964, por um oficial do Exército - o então Cel. Montagna (mais tarde general, por bravura). O referido oficial desceu de um Citröen preto, na esquina da Joaquim Nabuco com a praia e, após esbofetear um atônito sentinela, coloca dois paralelepípedos no meio da então pista única da Av. Atlântica, ‘para impedir os tanques do I Exército’, suposta reserva legalista que infelizmente acabou não chegando. Na crônica vemos um Cony observador dar lugar ao ator: ao fim de tudo, ele mesmo com o bico do sapato derruba a ínfima pilha de paralelepípedos, revelando de forma absolutamente desdramatizada o absurdo e a falibilidade da suposta barricada, de seu autor e, suspeito, do gênero humano.
A partir desta experiência minimalista, uma via nobre de acesso pode ser percorrida por dois romances notáveis, A Verdade de Cada Dia (1957) e Tijolo de Segurança (1958), imediatamente posteriores à primeira obra, O Ventre. A leitura desses dois belos e tristes romances urbanos pode ser uma útil antecipação à fortíssima carga dramática e literária da obra de estréia. Esses três livros antecedem a grande obra prima de Cony, Informação ao Crucificado, livro publicado em 1961.
Paulo Rónai, em iluminada apresentação ao livro A Verdade de Cada Dia, sugere que o grande tema de Cony é a família. O comentário, já idoso de mais de quatro décadas e não mais publicado, merece transcrição: ‘O grande assunto de Cony é a família. Emprego o termo à falta de outro, porque a família vista pelo nosso escritor é uma entidade especial, com muitíssimo pouco daquilo que a palavra normalmente evoca: seres coagidos convivendo mau grado seu, presos, trancafiados no mesmo cárcere, que se observam desconfiados, com inveja e ódio. Impedidos, pelas paredes da cela, de ver o mundo além, vivem remoendo melindres antigos, procurando anos a fio o sentido de palavras e gestos, até que a interpretação, afinal encontrada, os afunda mais em seu sofrimento. Dilacerados por forte sede de amor, machucam-se em brigas sem fim, e de cada uma saem mais infelizes, tanto mais que toda sua revolta não lhes pode alterar o fato central da existência, a condenação.’ Rónai resume a caracterização com uma sentença forte e inspirada: ‘Assim, cada romance entreabre a porta de outro compartimento do Inferno’.
O material, digamos, empírico à disposição de Rónai - que escreveu o prefácio à segunda edição, saída em 1963 em uma coleção inventada pelo Ênio Silveira, chamada Biblioteca Universal Popular (e financiada por José Luiz de Magalhães Lins, definido por Ênio como ‘um banqueiro a serviço dos interesses nacionais’) - era composto pelos romances de Cony até então publicados: O Ventre, Tijolo de Segurança, o próprio texto prefaciado, Informação ao Crucificado e Matéria de Memória. Da primeira fase de Cony, portanto, ainda não tinham sido publicados e/ou escritos (pela ordem): Antes, o Verão (1964), Balé Branco (1966), Pessach: A Travessia (1967) e o último e escatológico Pilatos (1974), para ficarmos só nos romances. O conjunto de livros considerados por Paulo Rónai - diminuto se considerarmos o conjunto da obra de Cony - permitiu um juízo apurado e profético. Se tomarmos, por exemplo, o mais recente livro de Cony - A Tarde de sua Ausência - é impressionante a consistência da apreciação de Rónai. De fato, como evitar a sensação de que ali, neste texto tão recente e centrado em uma família em completa dissolução, cada movimento ‘entreabre a porta de outro compartimento do Inferno’?
Portanto, se tomarmos o juízo de Rónai como referência, o par de obras composto por A Verdade de Cada Dia e Tijolo de Segurança pode ser considerado uma ótima ante câmara para o universo de Cony. Ali estão motivos perenes de Cony: a falibilidade humana, a cena urbana, a toponímia carioca, o desespero sempre contido e a forte associação entre tristeza e lucidez.

Qual o melhor livro desta primeira fase?
A resposta a esta pergunta é, na verdade, uma nova forma de responder à questão anterior e, sendo assim, tornar o conjunto de respostas ainda mais confuso. O melhor livro - desta e de todas as outras fases - é Informação ao Crucificado (embora considere Tijolo de Segurança uma obra prima). Digo isto a despeito do próprio Cony - em geral o melhor guia para Carlos Heitor Cony -, que tem preferência declarada por Pilatos. Há uma corrente de interpretação da obra de Cony que, privilegiando Informação ao Crucificado, associa este autor a uma tradição literária católica - composta por Jackson de Figueiredo, Alceu de Amoroso Lima, Gustavo Corção e Octávio de Faria. Eu não iria tão longe. É certo, no entanto, que a religiosidade nos textos de Cony é muito forte, quando não seja pela farta erudição católica. No entanto, creio que a religiosidade de Cony tem um quê de paganismo e heresia. Mas, para que essa opinião faça sentido, é preciso falar da centralidade de Informação ao Crucificado no conjunto da obra. Ainda que o livro tenha sido precedido por outras obras a ele, portanto, literariamente anteriores, sustento que Informação ao Crucificado precede existencialmente todos os livros escritos por Cony. A crermos na chave auto biográfica - e parece não haver motivos para crer em outra direção - Informação ao Crucificado narra a experiência pessoal de Cony no seminário maior da arquidiocese do Rio de Janeiro. Uma experiência vida de forma extremamente intensa e cujo resultado líquido é um estado permanente de dúvida e descrença. Ao mencionar a experiência pessoal de Cony com a religião e com a saída da religião, não pretendo adotar uma forma naturalista de entender sua literatura. A biografia do autor não explica a sua literatura. Antes, creio que a chave interpretativa para os textos está contida nos próprios texto, e Cony na medida em que escreve a sua experiência nos fornece uma chave dessa natureza.
Em termos mais diretos, sustento que a obra de Cony pode ser interpretada como uma forma de literatura pós-lapsária. Uma literatura precedida por uma experiência - literariamente construída - de queda no absurdo e na precariedade da vida. O momento dessa queda é a informação prestada ao crucificado: Deus acabou. Lembro-me que em uma conversa com Cony - em um seminário que participamos juntos - mencionei sua hipótese sobre a morte ou o fim de Deus, ao que ele corrigiu-me: Deus não morreu, simplesmente acabou, tal como uma conta bancária, que pode ser reativada a qualquer momento por algum depósito ou herança de uma tia velha e solteira.
A sensação da queda é construída passo a passo no texto da Informação. Um dos eventos centrais é o diálogo de João Falcão com o arcebispo - na época D. Jaime de Barros Câmara, um das mais obscurantistas e reacionárias autoridades da Igreja Católica no Brasil - concluído com a dura observação do cardeal: ‘Eu não acredito em nada de bom em quem não acredita em nada...’ D. Jaime praticamente expulsa Falcão/Cony da igreja, e por isso muito a ele devemos, nós que amamos a literatura. Ao mesmo tempo a religiosidade mantém-se intacta, de uma forma pagã e herética, na qual os santos subsistem à falência de Deus e de sua igreja. Ao longo da obra, é possível encontrar deliciosos momentos de anti clericalismo e humor, como no nome de um personagem de A Verdade de cada Dia - um escroque completo - batizado como Marcelino de Jesus, em duvidosa homenagem ao Padre Marcelino Champagnat, pio patrono dos Irmãos Maristas.
Mas, voltando ao ponto, central: Informação ao Crucificado pode ser lido como momento deflagrador de uma literatura a respeito da queda, povoada por seres falíveis, defeituosos, tristes e a despeito disso agarrados de algum modo à vida. Não me parece aleatório o fato de que o último livro da primeira fase de Cony - então apresentado pôr ele como seu último livro seja Pilatos, um dos momentos máximos da escatologia e da degradação humana na literatura brasileira.
O desfecho de Informação ao Crucificado foi fundamental para o não alinhamento de Cony a uma literatura católica. Qualquer outra saída, seja pela obediência, seja pelo fideísmo, teria outras conseqüências. A opção de Cony fez com que a dúvida o constituísse como seu próprio personagem.
Mas, é preciso falar também de Pessach: a Travessia. Considerar a travessia nesse livro concretizada e que, em um certo sentido, complementa a que não foi efetuada em Informação ao Crucificado. Em Pessach, são as mesmas razões apresentadas por João Falcão - i. e., Cony - a D. Jaime de Barros Câmara a respeito de como evitar o pecado, baseadas no princípio da coação interior e não no da obediência a autoridade externa, que estão presentes na decisão de Paulo - e Cony pode ser tudo menos inocente quando batiza um personagem seu com o nome de Paulo - de incorporar-se à luta armada. Em Informação, o motivo interno deu vazão à dúvida e à descrença; em Pessach, à aposta pascaliana.

Dos livros da nova fase literária de Cony - reinaugurada com Quase Memória - qual o que mais lhe agrada? O que é perfeitamente descartável na obra de Cony? Você entendeu a intenção de Cony, no desfecho de seu novo livro (A Tarde de sua Ausência)?
Gosto muito de A Casa do Poeta Trágico, na qual os motivos do primeiro Cony - se é que posso expressar-me deste modo - estão bastante presentes. Aqui não há o lirismo e o humor de Quase Memória e o desvairado e delicioso surrealismo - associado à nostalgia ferroviária, da qual compartilho por razões familiares - de O Piano e a Orquestra. A despeito da opinião de Cony a respeito de Quase Memória, trata-se de um livro pungente e delicioso.
Em princípio não descartaria nada na obra de Cony. Diria apenas que em alguns momentos de sua obra eu não pude sentir os efeitos conyanos habituais. Nesse sentido não é que não goste, mas Romance sem Palavras passou-me um tanto desapercebido. Em A Tarde de sua Ausência encontro alguns motivos básicos da obra, já assinalados pôr Rónai. Encontro ainda um dos capítulos mais bem escritos por Cony desde sempre, justamente um dos que se repetem ao final do livro. Entendo o efeito literário pretendido, mas saí do livro com a sensação de que fui vencido pôr uma escolha formal, eu que esperava um desdobramento substantivo.

O que mais o cativa na literatura de Cony?
Meu principal fardo profissional consiste em lidar com a tradição intelectual do ceticismo; suas origens remotas, suas redefinições na modernidade e sua presença no quadro filosófico contemporâneo. Pois bem, meu primeiro contato com o que muito tempo depois aprendi ser o ceticismo deu-se na leitura precoce e sempre presente dos livros de Cony. O que sempre me encantou em Cony foi a visão da falibilidade humana, da associação entre tristeza e lucidez - presente na idéia e que a compreensão de como as coisas dão-se efetivamente é um preâmbulo para a infelicidade. Paradoxalmente, essas características são cruciais para que uma dimensão da escrita de Cony seja possível: o seu humor invulgar. Um humor fino, genuíno e cortante, posto que sustentado na tal compreensão pós-lapsária da nossa existência. Ao mesmo tempo, tudo isso entremeado com passagens belas e sublimes, como luzes jogadas nas faces de seres que vivem a obscuridade da vida. O que me encanta em Cony é o que me encanta em Francis Bacon e El Greco.
Seria um presente poder contar com edições críticas da obra de Cony, que nos trouxessem de volta os belos textos e orelhas de Antonio Houaiss, Paulo Rónai, Leandro Konder, Ênio Silveira, Mário da Silva Brito e Antonio Callado.
Rio de Janeiro, julho de 2003

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