Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo, em 9 de maio de 2010)
Não é que os parlamentos em geral possuam limitada capacidade de e disposição para auto-reforma. Na verdade, e com alguma freqüência, costumam introduzir alterações regimentais internas, com impacto sobre a distribuição de poder entre as suas partes. De acordo com a direção da mudança adotada, líderes podem ser fortalecidos, em detrimento das bancadas, ou vice versa; procedimentos de auto-depuração podem ser aperfeiçoados, ou transformados em mecanismos de auto-proteção. Enfim, são muitas as possibilidades, e parlamentares – aqui e alhures - além de legislar, alteram as condições sob as quais legislam.
Menos freqüente – e a chave aqui é um tanto otimista - é a auto-reforma voltada para restringir as “liberdades” dos parlamentares. Com o termo aspeado quero designar processos de mudança que incidem sobre as relações entre parlamentares e seus próprios mandatos. Não é que não haja, no interior do Congresso brasileiro, para trazer a coisa ao terreno local, vozes favoráveis a reformas e à introdução de algum controle público sobre o que fazem os parlamentares, sobre os modos pelos quais obtêm mandatos e sobre como os compreendem e exercem. O fato é que, por minoritárias, dificilmente tais vozes reúnem condições políticas para deflagrar processos de mudança na matéria. Nunca é demais lembrar que nada pior do que restrições comportamentais para animais políticos que imaginam o paraíso como um cenário no qual obteriam reeleições sucessivas. Nesse sentido, quanto menos restrições, melhor. Se inevitáveis, que incidam sobre os outros. Se não der jeito mesmo, e em último caso, que se apliquem a todos.
O tema, por certo, é sensível e explosivo. É de recordar, por exemplo, a “doutrina” da propriedade pessoal do mandato, diante de propostas de limitação, advindas do Judiciário, da troca de partidos. Pela “doutrina” da pessoalidade do mandato, este cola-se à persona de seu detentor, que a carrega por toda a duração de sua investidura, independentemente da mobilidade de seus vínculos partidários. A mesma querela incide sobre o debate a respeito das imunidades, cuja extensão abriga aspectos de natureza criminal.
De um modo geral, tem sido o Judiciário o responsável por introduzir reformas que poderiam ser percebidas como regulações externas à atividade dos parlamentares. Regulações, por exemplo, que incidem sobre sua mobilidade e sobre suas vidas pregressas. O próprio Tribunal Superior Eleitoral, há algo como um ano, considerou a matéria da vida pregressa de candidatos, tema caro aos envolvido no movimento dos “ficha limpa”. Trata-se de tema de alguma relevância, pois incide sobre o modo pelo qual a pretensão a ter uma biografia política insere-se na biografia, digamos, geral do sujeito em questão. Deve a vida pregressa ser considerada para avaliar se alguém pode desempenhar funções representativas (ou outras derivadas do voto)? Voto vencido na ocasião, o ministro Ayres de Brito sustentou que não fazia sentido não aplicar aos que postulam ocupar cargo eletivo, as mesmas restrições que se apresentam a pretendentes a outras funções públicas. Bastar-lhes-ia uma condenação para que seus prontuários inviabilizassem a pretensão. Perguntava o ministro: haverá função pública mais relevante – em suas implicações igualmente públicas – do que a do exercício de um mandato eletivo?
Entendeu o plenário do TSE, na altura, que decidir em tal direção implicava em usurpação legislativa. Em outros termos, o tribunal estaria a fazer uma nova lei a respeito de inelegibilidades e não a interpretar e aplicar o quadro jurídico existente, tal como gostaria o bom Montesquieu. Em tempos de desenfreada judicialização da política, este foi um notável momento, pero um tanto seletivo, de auto-contenção. O voto do ministro Eros Grau foi emblemático na defesa do que lhe parecia ser o quadro jurídico, não alterável por decisão não-legislativa.
Vida que segue, a alternativa à questão passou a depender do que poderiam fazer os parlamentares, detentores não-exclusivos da função de legislar. De modo ainda mais remoto, e um tanto panglossiano, cabe registrar a existência de rejeição, in limine, de qualquer intervenção no “mercado político”, com a conseqüente atribuição ao “eleitor” do papel de manejar a cimitarra reparadora. O capítulo mais recente da história, contudo, foi ordenado por enredo distinto: nem decisão autônoma de auto-reforma, por parte do parlamento, nem a espera fideísta pela manifestação da sabedoria do “eleitor”. O processo, em andamento distinto, foi deflagrado por uma iniciativa exterior ao parlamento e aos partidos – por meio de proposta popular de legislação que exclui das eleições os chamados “ficha suja”. A iniciativa acolhida por alguns parlamentares – aqueles comprometidos com o combate ao risco de captura do parlamento por parte de pessoas que mantêm com as leis do país relações heterodoxas – tomou a forma de projeto de lei cuja tramitação positiva foi iniciada a poucos dias.
A adesão dos demais parlamentares – com a não inesperada defecção de alguns “ficha-sujíssimos” – pode sempre ser debitada na conta do cinismo e do oportunismo. Haverá quem o faça e, devo dizer, com razões respeitáveis. Mas, temo não ser esta a melhor leitura a fazer do episódio. Independentemente de da incidência temporal de seus efeitos – se para já, ou para daqui a dois anos –, a iniciativa política que associou uma ação autônoma de um conjunto de cidadãos a seu acolhimento parlamentar é uma boa notícia e um bom indício para os hábitos representativos locais. Se lido em chave apropriada, duas ordens de reflexão distintas podem ser desenvolvidas.
Em primeiro lugar, a iniciativa é um experimento que indica algum grau de aprendizado, por parte de um conjunto de cidadãos e de um grupo de parlamentares, a respeito do que pode significar o vínculo da representação. O comentário maduro da liderança do movimento a respeito das alterações feitas pela Câmara ao projeto original foi significativo. Embora uma as alterações – a de que a condenação em primeira instância que impede a candidatura deva emanar de um colegiado, e não apenas de um único juiz – tenha efeitos atenuantes, a liderança compreendeu a necessidade da mudança, por razões táticas e pelo entendimento de que é legítimo que o Legislativo exerça um papel de filtragem.
Por fim, trata-se de compreender, em termos mais gerais, que a qualidade da representação está associada à qualidade da demanda social por representação. Em outros termos, é necessário que os corpos legislativos sejam interpelados “de fora”. Sua qualificação não decorre de processos internos e autárquicos, imaginados por engenheiros legislativos, mas da tensão entre um exterior – o demos, e sua capacidade de exercer pressão eficaz – e um interior, do qual deve se exigir capacidade de escuta e criatividade política e institucional. No caso em questão, pressão e escuta, igualmente adequados, acabaram por dar sentido á ideia de representação. É torcer para que a moda pegue.
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