domingo, 27 de junho de 2010

Do negacionismo e da presença da Shoah para além de si mesma

Renato Lessa
(Publicado originalmente no número 6 da revista DEVARIM, da ARI/RJ - Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro -, em abril de 2008)

1. Ao receber o Premio Nobel em Literatura, em 2002, o escritor húngaro Imre Kertész, em seu discurso de agradecimento – intitulado “Heureca” –, foi preciso a respeito do lugar ocupado pela Shoah em sua obra. Uma presença contínua, associada a um luto permanente no qual “não existe apenas amargura, mas também um extraordinário potencial moral”. Disto deriva a associação, por ele proposta, entre a sua própria identidade como judeu e a presença do que define como um “desafio moral”: “Se para os dias de hoje o Holocausto criou uma cultura – como sem dúvida aconteceu -, seu objetivo deve ser a reparação por meio do espírito, a partir de uma realidade irreparável – uma catarse”.
Desafio de não pequena monta, posto que, para Kertész, nada teria acontecido depois de Auschwitz que o “tivesse negado ou refutado”. A relação desse grave juízo com o prêmio que acabara de receber foi estabelecida pela afirmativa que faria logo em seguida: “Nos meus escritos, o Holocausto nunca aparece no passado”. A posição de Kertész exige melhor qualificação. Por um lado, a própria idéia da irreparabilidade do campo de extermínio está a indicar que nada no que lhe sucedeu pode gerar efeitos de superação do experimento. Neste sentido, o Campo não pertence ao passado, circunstância fixa e imóvel de um tempo irremediavelmente remoto, mas aparece como elemento de um longo presente, cujos limites não se dão a ver. O próprio conceito de irreparabilidade, parece evidente, interdita qualquer perspectiva de reparação. Por outro lado, a decisão de associar a memória e a vivência da Shoah a uma obrigação moral de interpelação da experiência humana é obrigada a enfrentar inúmeros esforços de revisão e fixação dos seus significados e de negação de seu alcance ou, até mesmo, de sua existência real.

2. Passados mais de sessenta anos da derrota alemã e da libertação dos campos de extermínio, o lugar histórico e moral ocupado pela Shoah na consciência histórica e moral contemporânea permanece nebuloso e incerto. As dificuldades de inscrição já se apresentaram às primeiras tentativas de transmitir o testemunho daquilo que David Rousset denominou como a “experiência concentracionária”[2].
Primo Levi, ao longo de sua militância de testemunho, sempre recusou o topos da incomunicabilidade, fundado na crença na impossibilidade radical de transmitir aos que não viveram o inferno do Campo o que lá teria ocorrido[3]. Mas, essa posição de princípio não estava, para ele, a serviço de uma crença ingênua na transparência dos relatos e na fácil transitividade da experiência. Ao contrário, apenas uma vida dedicada ao testemunho poderia interpelar a descrença e a indiferença e, mais do que isso, educar eventuais manifestações empáticas. Sim, posto que, além de combater a descrença e a negação do ocorrido, há que trabalhar sobre as sensibilidades empáticas, sobre os que se apiedam.
Ensinar-lhes a delicada arte da solidariedade e do reconhecimento de que o Campo foi o lugar de um experimento sem precedentes. Aqui reside o núcleo do problema. A singularidade e o caráter sem precedentes da Shoah sofreram, desde a derrota do nazismo, uma vasta ordem de questionamentos e negações. Não foram poucos os que insistiram – e ainda o fazem – na comparabilidade e na comensurabilidade entre a Shoah e outros eventos de dizimação em massa de seres humanos[4].

3. O debate sobre os significados possíveis da Shoah abriga vasta diversidade. Contudo, um certo relativismo diante de tal variedade, sob pena de irresponsabilidade política e moral, não deve descurar do fato de que as interpretações não são inocentes; não emanam simplesmente de uma característica ontológica própria dos humanos, como sustentava Heidegger, mas são portadoras, elas mesmas, de premissas e, sobretudo, produzem conseqüências materiais para a própria configuração do mundo histórico e social. É neste sentido que o negacionismo deve ser retirado do abrigo da condescendência relativista e ser remetido a sua dupla inscrição: a recusa criminosa da materialidade dos crimes nazistas e a deriva político-existencial de sustentar o anti-semitismo como crença básica e o anti-sionismo como atitude política.

4. A idéia de revisionismo - e a de seu portador, o revisionista - segrega uma imagem que, à partida, não aparece como abjeta. O termo possui excelente pedigree: em termos históricos aparece no século XIX associado à causa mais do que defensável: a da revisão da condenação de Alfred Dreyfuss. Não há nada, em princípio, de errado com a idéia de revisionismo. Tudo dependerá, parece óbvio, daquilo que se pretende rever e, o que é mais importante, do grau em que a idéia de revisão implica a refutação da existência de eventos históricos esmagadoramente evidentes.
Com o pós-II Guerra verificou-se de forma progressiva a emergência de um revisionismo negacionista, com relação a Shoah, dotado de claras tinturas anti-semitas e, a partir de 1948, anti-sionistas. O revisionismo negacionista pode ser pensado como a expressão extremada e criminosa de uma questão extremamente ampla: o lugar da Shoah na consciência contemporânea. Além disso, possui muitas formas, para além de suas manifestações mais óbvias e claras. Mais do que seguir a enfadonha e impalatável trama dos autores e instituições devotados ao revisonismo negacionista, importa detectar a estrutura de seu pensamento. Jean-Pierre Vernant, em seu já clássico Les Assassins de la Mémoire, resumiu os “princípios” centrais[5]:
(i) Não houve genocídio; o que teria sido seu instrumento e símbolo – a câmara de gás – jamais existiu;
(ii) A “solução final” não teria significado senão a expulsão dos judeus para a Europa Oriental[6];
(iii) O número de vítimas judias do nazismo é menor do que comumente se supõe; autores revisionistas, tais como Rassinier e Butz, sustentam que no máximo morreram um milhão de judeus, devido a bombardeios aliados e a doenças;
(iv) A Alemanha hitlerista não pode ser julgada responsável pela guerra: os judeus são co-responsáveis pela eclosão do conflito mundial;
(v) A principal ameaça à humanidade, durante a década de 1930, não era representada pela Alemanha, mas pela União Soviética; Stalin, e não Hitler;
(vi) O genocídio judaico foi uma invenção da propaganda aliada, fortemente influenciada pelos judeus que, “sob a influência do Talmud, têm propensão à imaginação estatística”[7].

As “teses” do revisionismo negacionista são indefensáveis. Sua refutabilidade absoluta faz com que o campo no qual devem ser tratados seja o do direito penal. A fracassada tentativa de processar a historiadora norte-americana Deborah Lipstadt, feita por David Irving, em um tribunal inglês, definiu de forma clara o lugar dos negacionistas: não constitui crime dizer o que efetivamente são, que crenças sustentam e que objetivo perseguem. Como praticantes de uma “contra-história”, para utilizarmos o termo de Amos Filkenstein, não constituem desafio do ponto de vista intelectual[8].
Sua ameaça é de natureza política e criminal. O revisionismo negacionista é, contudo, apenas um dos modos possíveis da contra-história, uma “narrativa inautêntica e uma ação perniciosa” voltada para a “distorção da auto-imagem do adversário, de sua identidade, através da desconstrução de sua memória”[9].

5. O debate alemão a respeito da identidade do país no pós-guerra constitui um interessante estudo de caso, capaz de revelar o modo pelo qual diferentes interpretações da história recente daquele país conferem a Shoah papéis e lugares inteiramente distintos. Nos anos 1980 ocorreu naquele país um duplo e importante debate público, em torno de uma questão crucial: como inserir o Sonderweg no quadro mais amplo da história alemã? O debate foi deflagrado em 1985, por conta dos 40 anos da libertação, e desdobrou-se na célebre querela dos historiadores – a Historikerstreit.
Mesmo excluindo o campo abertamente criminoso ocupado pelos revisionistas, havia uma considerável diversidade de posições, todas derivadas de um problema básico, posto de forma sagaz pelo escritor Heinrich Böll: "O fato do poder nazista não ter sido derrotado de dentro e sim destruído desde o exterior...é uma das razões que poderiam explicar porque aqueles doze anos foram mais ou menos apagados da memória"[10]. Os termos dessa disputa e suas implicações dão sentido à proposição de Saul Friedlander de que o debate a respeito da história é uma discussão sobre a forma do passado na memória pública e na identidade nacional[11].
Para além do marco dos 40 anos da libertação, o debate dos historiadores – Historikerstreit - também exibiu os dilemas dessa busca pela determinação das formas do passado. De forma nada surpreendente, tal busca teve como referência central a Shoah, tal como atesta o subtítulo do documento que reúne as diferentes posições em confronto, publicado em 1987: documentação sobre a controvérsia a respeito da singularidade (Einzigartigkeit) do extermínio nacional socialista dos judeus.
A querela acabou por configurar dois campos opostos. Um deles, ocupado por historiadores de orientação liberal e de esquerda, sustentou a singularidade dos crimes nazistas e, a despeito de suas diferenças internas – divididas entre uma vertente “liberal” e outra “estruturalista” -, a conseqüente recusa em diluir a Shoah em justificativas e quadros histórico-políticos mais amplos.
Para o campo conservador – que inclui autores tais como Joachim Fest, Ernst Nolte e Andreas Hillgruber, entre outros -, se a responsabilidade dos nazistas não pode ser negada, é necessário estabelecer uma sistemática comparação entre seus crimes e outros cometidos por regimes diferentes em outros lugares e momentos. Nolte, em particular, confere aos bolcheviques a primazia da busca de aniquilação global. Em suma, por pior que tenha sido, o nazismo é comparável. Refuta-se, dessa forma, o topos da incomparabilidade. A revisão interpretativa sugerida pelos conservadores rompe com a caracterização tradicional dos perpetradores. Ainda que a criminalidade nazista não seja negada ou defendida, ela é compartilhada com os Aliados e, em particular, com o Exército Vermelho, em função de crimes que este cometeu em solo alemão. Com visível desrespeito à cronologia dos fatos, sugere-se uma perspectiva de responsabilidade compartilhada, segundo a qual entre as vítimas deve estar incluída a população civil alemã.
A perspectiva dos conservadores não ficou sem contestação. A posição do historiador Eberhard Jäckel, durante a Historikerstreit, talvez tenha sido a mais clara : O extermínio dos judeus pelo nacional socialismo foi algo inigualável, pois nunca antes um Estado, com a autoridade de seus líderes responsáveis, decidiu a anunciou a total aniquilação de um determinado grupo de pessoas, incluindo idosos, mulheres, crianças, recém-nascidos, e fez com que tal decisão fosse aplicada, através do uso de todos os instrumentos possíveis do poder disponível pelo Estado[12].

6. O lugar da Shoah na consciência histórica contemporânea ainda não está fixado de forma segura. Permanece vulnerável aos jogos do negacionismo e das relativizações históricas. O primeiro deles visa revitalizar permanentemente o anti-semitismo e anti-sionismo: se o Estado de Israel é um efeito imediato da Shoah, sua negação aparece como imperativo para que seu efeito perca qualquer legitimidade[13].
A relativização histórica não está, em princípio, imune a motivações da mesma natureza. Mas não é essa ligação abjeta que a caracteriza. A relativização, com freqüência, deve-se aos procedimentos e aos hábitos da História, enquanto disciplina. Na medida em que as representações da Shoah transitam do registro da memória para a narrativa disciplinar da História, os eventos a ela associados submetem-se aos protocolos da explicação, da comparabilidade e da contextualização racional. O risco é o do apagamento da singularidade da Shoah e dos imperativos morais que dela decorrem. A revolta do cineasta Claude Lanzman contra os propósitos de explicação do extermínio – explicar, para ele, é um ato de imoralidade – decorre dos riscos de historicização e de normalização[14].
A memória, ao contrário e tal como ressaltam trabalhos clássicos sobre o assunto, é avessa ao relativismo[15]. É, ainda, expressão de luto, de perda, registro repetido do trauma e índice da singularidade do evento ao qual se reporta. Neste sentido é particular e específica dos que a detém, não sendo, em princípio, universalizável. O desafio que se impõe aos que combatem o negacionismo e a relativização da Shoah pode ser posto nos seguintes termos: como inscrever a Shoah na experiência contemporânea, sem abrir mão do que tem de particular e incomparável.
Amos Filkenstein sugere um caminho intermediário, capaz de reter a carga existencial da memória e adquirir, por meio do uso de procedimentos da História, uma perspectiva de universalização. Designou esse meio termo como “consciência histórica”[16], uma forma de observar a experiência humana a partir da experiência do pior dos mundos possíveis. Em outros termos, história e moralidade acabam por fundir-se na observação do mundo humano.
Por muito tempo, nossa relação com a Shoah estará marcada pela aporia sugerida por Kertész: um evento irreparável como base de uma perspectiva de reparação do mundo. Reinhard Koselleck acrescenta ainda outro dilema irrecorrível: a singularidade da Shoah, para que seja determinada, exige tanto a comparação como a necessidade de abandoná-la[17]. A despeito das aporias, a Shoah é única porque, como a mais extrema modalidade de destruição de seres humanos, contém em si a experiência de todas as dizimações possíveis. É isto que faz com que a sua singularidade se inscreva no plano do universal humano.

Notas
[1]. Discurso proferido por ocasião do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura em 2002. In: Imre Kertész, A Língua Exilada, São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 16. [2]. Cf. David Rousset, L’Experience Concentrationnaire, Paris: Editions de Minuit, 1965. [3]. A esse respeito, ver, em particular, Os Afogados e os Sobreviventes, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, cap. IV, “Comunicar”, pp. 51-61. [4]. Uma boa amostra dessa discussão pode ser encontrada em Alan Rosenbaum, Is the Holocaust Unique? Perspectives on Comparative Genocide, Boulder: Wetsview Press, 1996. [5]. Ver Jean-Pierre Vernant, Les Assassins de la Mémoire:”Um Eichmann de papier et autres essais sur le révisionnisme”, Paris: Editions La Découverte, 1987. Para um tratamento do negacionismo norte-americano a referência obrigatória é a do excelente livro de Deborah Lipstadt, Denying the Holocaust: The Growing Assault on Truth and Memory, New York: Plume, 1994. [6]. Cf. Robert Faurisson, Mémoire em défense: contre ceux que m ‘accusent de falsifier l´histoire, Paris: La Vieille Taupe, 1980, p. 90. Faurisson acrescentou ainda, em prefácio a outro livro negacionista (Le Mensonge d´Auschwitz, Paris: FANE, 1973), a seguinte justificativa: já que “a maioria dos judeus da França veio da Europa Oriental”, a assim chamada “Solução Final” não foi outra coisa do que seu repatriamento, da mesma maneira com a qual os franceses repatriaram os argelinos, em outubro de 1961 (p.8). [7]. Ver o abjeto livro de Butz, The Hoax of the Twentieth Century, Torrance: Noontide Press, 1979, pp. 245-248. Trata-se de uma das obras de referência para o negacionismo norte-americano. [8]. Ver Amos Filkenstein, “History, Counterhistory, and Narrative”, In: Saul Friedlander (Ed.), Probing the Limits of Representation: Nazism and Final Solution, Cambridge: Harvard University Press, 1992, pp. 66-81. [9]. Op. cit., p. 69. [10]. Cf. Heinrich Böll, “Enfance Exemplaire”, Les Temps Modernes 396-7, julho/agosto 1979, p. 241. [11]. Ver Saul Friedlander, Memory, History, and the Extermination of the Jews of Europe, Bloomington: Indiana University Press, 1993 p. 23. [12]. Apud Saul Friedlander, op. cit., p. 50. [13]. Shmuel Trigano, em excelente e corajoso livro, chama a atenção para modalidades mais sutis de anti-sionismo, caracterizadas pela reverência a Shoah e a suas vítimas imediatas como aspectos do passado, associadas a atitudes de hostilidade para com o Estado de Israel, e não apenas aos governos eventuais que o dirigem. Ver, Les Frontières d’Auschwitz, Paris: Le Livre de Poche, 2005. [14]. Ver Claude Lanzmann, “The Obscenity of Understanding: An Evening with Claude Lanzmann”, In: Cathy Carut (Ed.), Trauma: Explorations in Memory, Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1995, pp. 200-220. [15]. Ver, por exemplo, Maurice Halbwach, La Mémoire Collective (Paris: PUF, 1968) e Pierre Nora, Les Lieux de la Mémoire (Paris: PUF, 1984). [16]. Ver Amos Finkelstein, “Historical Consciousness”, History and Memory: Studies in Representation of the Past 1/1, 1989 [17]. Carta pessoal de Reinhard Koselleck a Saul Frielander, apud Saul Friendlander, op. cit. p. 57.

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