Renato Lessa
(Publicado na coluna "Sobre Humanos", na Revista Ciência Hoje, maio de 2010)
Uma das mais importantes mutações ocorridas nos tempos modernos pode ser encontrada na crescente importância conferida aos seres humanos – enquanto indivíduos – para a definição do que seja uma vida decente. Desde tempos imemoriais, por certo, houve preocupação em definir requisitos para uma vida boa. Tal tema constituiu desde então matéria para controvérsias filosóficas e morais intermináveis, e já os antigos gregos dividiam-se entre os que defendiam, pela ordem, a busca da verdade, de virtude pessoal e de felicidade como finalidades a ser perseguidas.
Com a Idade Média, os valores da cultura grega clássica acabaram submetidos à teologia. A ideia de vida boa passa a significar uma forma de vida orientada para a busca de salvação pessoal. Um conforto cujo usufruto exige, lamentavelmente, a morte daquele que o busca.
Com os tempos modernos – a partir do sec. XVI – a ideia de uma vida decente passa progressivamente a ser pensada como resultado da qualidade da própria vida em sociedade, e não de desdobramentos sobrenaturais. O tema não era de todo inédito, já que mesmo no contexto do pensamento grego clássico, os filósofos sofistas haviam atentado para tal relação. Platão fez o mesmo, em chave negativa, ao dizer que sociedades imperfeitas estão condenadas a produzir resultados imperfeitos.
A partir do Renascimento ficou clara a relação: o aperfeiçoamento das relações sociais e a qualidade do exercício dos governos são condições cruciais para uma vida humana decente. Um dos corolários dessa reorientação é a percepção de que sociedades e governos são criações dos humanos e não produtos da ação inescrutável da natureza. É o que encontramos em autores do século XVII (Thomas Hobbes), XVIII (David Hume) e XIX (Karl Marx). É virtualmente incontável a quantidade de tratados e ensaios, produzidos entre o século XVI e XVIII a respeito do melhor modo de conceber e organizar a vida social. A despeito da larga diversidade de respostas, há alguns pontos convergentes. O mais importante diz respeito à percepção de que a vida social não é constituída pela ação de fatalidades ou de imposições da natureza.
Não se tratava de onipotência diante da natureza. É certo que o processo de afirmação da dignidade humana, a partir do século XV, esteve sempre associado á busca de conhecimento crescente a respeito do que então se designava como filosofia natural. Retirada a aura de mistério, segundo a qual há uma autoria da natureza e ela possui caráter divino, a cultura moderna progressivamente emancipa os humanos e permite a progressiva investigação a respeito de fenômenos naturais. Tal perspectiva de conhecimento progressivo sobre a natureza não significou pretensão de controle sobre suas leis básicas. Indica, tão somente, que os humanos recusam-se a ocupar a posição de presas fáceis e vítimas indefesas dos processos naturais.
O terremoto de Lisboa, ocorrido na segunda metade do século XVIII, para além de seu impacto no pensamento europeu, obrigou as autoridades portuguesas a reconstruir integralmente a parte baixa da cidade. Tal empreendimento empregou técnicas inovadoras de construção, capazes de resistir a abalos sísmicos de monta. Quer isto dizer que as catástrofes naturais passaram e ser avaliadas segundo a capacidade humana de preveni-las ou de mitigar seus efeitos. Ainda que os fatores naturais estejam fora de controle, a qualidade da resposta social está sim sob responsabilidade dos governos. Nesse sentido, as catástrofes naturais não devem se pensadas apenas como aparições extraordinárias e imprevisíveis de ordem natural. Seus efeitos dizem também da qualidade da vida social sobre o qual incidem.
Desse modo, catástrofes naturais revelam tanto o modo pelo qual a natureza procede quanto a forma pela qual a sociedade refrata tais processos. De um modo geral, a qualidade dos governos tem papel crucial na extensão dos danos, assim como na evitabilidade dos mesmos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário