Renato Lessa
(Publicado na coluna "Sobre Humanos, na Revista Ciência Hoje, de junho de 2010)
De um ponto de vista estritamente minimalista, para que a assim chamada de-mocracia representativa funcione basta que alguns cidadãos – sequer a maioria deles – compareçam com regularidade às sessões eleitorais e depositem nas urnas - ou nas máquinas - as suas escolhas. Em alguns países, nos quais o voto não é obrigatório, é possível, mesmo, que tal contingente seja minoritário no conjunto dos adultos aptos a votar. Basta que haja alguma autorização eleitoral coletiva para que um corpo de representantes seja instalado. Não se requer, portanto, dos eleitores, para que o sistema “funcione”, que devotem à política mais tempo do que o empreendido no trajeto até as sessões eleitorais e nas eventuais filas de espera. O ato de escolha não exige qualquer presença ou acompanhamento daquilo que os escolhidos fazem com o voto que deposita-ram.
Há mesmo quem defenda que este mínimo é mais do que suficiente e, até mes-mo, ótimo. Edmund Burke, pensador político e parlamentar de origem irlande-sa, porém atuante na Inglaterra do século XVIII, sustentava a tese da radical independência do parlamentar com relação a seus eleitores. Estes são movidos sempre por razões particularistas, enquanto que os representantes devem sem-pre ter em vista o interesse público. Claro está que caberia aos mesmos, em consulta exclusiva a suas consciências, determinar o que seja tal interesse público. Em tempos mais recentes, correntes importantes da Ciência Política norte-americana – a chamada escola pluralista, em particular – chegaram a afirmar que uma certa apatia pública é mesmo condição para a estabilidade das democracias. Se todos participassem ao mesmo tempo, os sistemas políticos não seriam capazes de “processar” todas as “demandas sociais” e caminhariam para uma espécie de colapso institucional. No limite, as democracias, se sustentadas em participação plena e permanente de todos os seus cidadãos, seriam ingovernáveis.
Tudo isso é muito curioso, pois conduz-nos a uma teoria da democracia que deflaciona a importância do voto e prescinde da participação política não-eleitoral como dimensão relevante do processo e do aprendizado políticos. Se é verdade que bastam alguns votos para que a escolha de representantes se efetue, é necessário acrescentar à análise a questão da qualidade da representação. Tudo indica que a qualidade da demanda social por representação afeta a qualidade da representação propriamente dita. Em outros termos, a presença de cidadãos ativos e dispostos a devotar parte de seu tempo a alguma militância cívica e à observação crítica do quer fazem os seus representantes, para dizer o mínimo, não fará mal à saúde dos sistemas reprersentativos. Pode ser mesmo que faça mal a alguns representantes, mas não fará, por certo, mal à representação.
O recente episódio do movimento “Ficha Limpa” constitui ótima oportunidade para refletir a respeito das considerações que aqui faço. Trata-se de movimento que colheu quase 2 milhões de assinaturas de eleitores, em apoio a uma iniciativa popular de projeto de lei. O projeto visava impedir candidaturas a postos eletivos de pessoas com condenações na Justiça. O projeto foi acolhido por 31 parlamentares que o introduziram no processo legislativo e acabou por ser aprovado pela Câmara de Deputados, não sem sofrer algumas mudanças atenuantes, mas que não o descaracterizaram. Independentemente do desfecho de todo o processo – no momento em que escrevo o projeto está em vias de tramitação no Senado -, há aqui algo de interessante a observar.
Antes de tudo, é necessário levar em conta que a melhoria da qualidade da re-presentação não depende tanto da definição de critérios necessários de morali-dade para o exercício dos mandatos, quanto da presença de cidadãos ativos a exercer pressão legítima e eficaz sobre o parlamento. Em outros termos, o e-xemplo mencionado vale mais pelo aprendizado do que pode significar uma cultura da representação política que exige mais do que algum comparecimento erleitoral eventual. “Representação”, sem alguma presença ativa dos representados, através de pressão e observação atenta, não passa de formalismo e de palavra vazia.
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