Renato Lessa
(Publicado no suplemento Aliás do jornal "Estado de São Paulo", em 20 de junho de 2010)
Chappaquiddick entrou para os anais da história norte americana como símbolo das relações entre reputação pessoal e vida pública. O acidente automobilístico que envolveu, naquela localidade em 1969, Edward Kennedy e Mary Joe Kopechne – membro do staff eleitoral de seu irmão Robert, na campanha presidencial de 1968 - vitimando-a fatalmente, pelas suspeitas de extraconjugalidade e pela acusação de evasão do local do ocorrido, arruinou as chances eleitorais nas presidenciais de 1972 do então senador. A indicação democrata acabaria nas mãos de George McGovern. Massacrado por Richard Nixon, McGovern venceria apenas em Massachussets e no Distrito der Columbia. Conseguiu apenas macérrimos 17 votos no Colégio Eleitoral, contra 520 conferidos ao Tricky Dicky.
McGovern era um bom sujeito, um liberal americano das antigas. Sua platafor-ma incluía a imediata retirada dos americanos do Vietnam e a retomada, em grande, dos valores e políticas da Great Society, iniciada no governo Johnson. O interessante é que sua campanha foi negativamente afetada, para além de seu “radicalismo”, por um torpedo que atingiu a alma de seu candidato a vice – o senador Thomas Eagleton – “acusado” de maníaco depressivo e de saúde mental duvidosa. Ele teria sido, ainda, a fonte da informação, disseminada pela direita, de que McGovern pretendia a legalização das drogas e do aborto. Haja dossiers.
Em um período de poucos anos, as chances eleitorais de dois importantes políticos norte-americanos foram arruinadas por fatores ligados a condutas pessoais. No caso de Ted Kennedy, sua tentativa de retorno à corrida presidencial nos anos 80 foi impiedosamente marcada por alusões tais como: “ontem nevou em Chappaquiddick”. A simples declinação da toponímia, pela imprensa de direita, servia de passagem para uma aversão que escamoteava as razões políticas do veto, em incursão pura e dura pelo campo da moralidade. O pobre senador Eagleton retirou-se da política, na mesma década de 80, após “acusações” de bissexualismo.
Paro por aqui, mas essa história continua. Que o digam Clinton, nos anos 90, e, há pouco, um candidato derrotado às primárias democratas vencidas por Barack Obama, o senador John Edwards. Com certeza, há um muito de tudo a operar como fundamento dessas histórias: invenções, indícios e evidências. De resto, a vida não se espalha em compartimentos discretos e incomunicáveis, de uma forma tal que suposições ou evidências a respeito da moralidade pessoal não possam aparecer como componentes do nosso juízo político. Não é este o problema, mas sim o seguinte: o que ganhamos, em termos de politização e de qualidade de reflexão sobre a vida pública, se os nossos marcadores cognitivos são configurados, prioritária e exclusivamente, por impressões de natureza moral? Não se trata, digo logo, de promover um elogio da delinqüência ou um encorajamento à entrada de celerados na vida pública. A aversão a isto é sadia, tal como o demonstra o episódio Ficha Limpa. De passagem, é importante que se diga a respeito dele: trata-se menos de um avanço na qualidade da vida pública do que uma tentativa de interdição de que ela venha a piorar cada vez mais. Mas como a vida mede-se por grandezas relacionais, é natural que tomemos a segunda alternativa como sendo a primeira.
Assim como, segundo o Dr. Johnson, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, a afirmação – da própria – e a negação – da alheia - da honra pessoal, como formas privilegiadas de ação no mundo público, são o abismo da política. Nesse sentido, elas são um refúgio de republicidas. Nos EUA, o apelo à moralidade, e à reencenação de um contínuo potlatch da pureza, esteve sempre a serviço de causas reacionárias. Entre nós, a coisa é mais confusa e disseminada. A obsessão à repetição dos mecanismos sombrios que envolvem o termo “dossier” parece ser sintoma de uma cultura política assentada na desconfiança e na crença na eficácia da chantagem e da intimidação. No limite, não há conflito de natureza política, mas entre maquinações criminosas que procuram se apropriar da vida pública. Não nasci ontem e reconheço plausibilidade da suspeita. Por vezes, tenho mais do que suspeitas, mas isso não nos condena ao abismo da guerra moral.
Não foi por capricho que o filósofo político Thomas Hobbes, no não tão longínquo século XVII enumerou entre as condições necessárias para a paz civil uma regra que denominou como “anti-contumélia”, que dizia respeito a uma cláusula de não-difamação. Trata-se de afirmar a incompatibilidade entre a prática da difamação e a qualificação da vida pública. E é disto que se trata. Na última aparição, entre nós, dessa patologia, das duas uma: ou há difamadores que elaboraram um dossier, ou há difamadores que acusam inocentes por terem elaborado difamações. De qualquer forma, alguém está a difamar. Todos possuem boas razões para a desconfiança mútua.
Já não nos distinguimos pela faceta pública do que queremos e imaginamos, mas pelo que, com tal faceta, pretendemos esconder. Supomos que intenções inconfessáveis devem sempre estar presentes como configuradoras das motivações para a política. São elas, portanto, que devem ser exploradas, tanto como exigência de sentido quanto como forma de neutralização dos inimigos. Não deixa de haver, ainda, cinismo e curiosidade mórbida na coisa. Por mais odiosa que seja a prática dos dossiers, ela alimenta a curiosidade pública e define um padrão de informação a respeito da política. Em outros termos, autores aloprados de dossiers agem na suposição de que existem consumidores aloprados de dossiers, ávidos por informações a respeito do que verdadeiramente interessa: o caráter moral, o fundamento último da vida dos outros.
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