Renato Lessa
(Publicado em minha coluna Sobrehumanos, na Revista Ciência Hoje, março de 2011)
Mais do que sobre bases materiais, civilizações sustentam-se sobre crenças básicas. Nenhuma sociedade, por certo, subsiste se as chamadas dimensões objetivas – sejam elas demográficas, econômicas ou políticas – não constituírem um fundamento material, dotado de um mínimo grau de permanência. Afinal, produzir, trocar e guerrear parecem ser invariantes a todas as formas sociais conhecidas. Mas o que determina o sentido das experiências civilizatórias é o conjunto de crenças que fixa seus sentidos e horizontes. Os humanos, tal como afirmava o filósofo Ernst Cassirer são fazedores e utilizadores de símbolos, mais do que de utensílios ou ferramentas. Na mesma direção, outro filósofo contemporâneo – Nelson Goodman – asseverava que somos fabricadores de mundos e que a matéria para essa atividade imparável é nossa capacidade de simbolizar. Em suma, fabricamos mundos por meio da linguagem. A forma da nossa civilização e os artefatos que a compõem resultam dessa fertilidade simbólica.
Os atenienses, do século V, antes da Era Comum, inventaram uma forma política inovadora, à qual deram o nome de “democracia”. Tal novidade fundava-se em uma crença: a de que todos os homens adultos e nascidos na cidade eram “iguais”, a despeito de suas diferenças sociais e funcionais. De qualquer modo, hoje lembramo-nos dos atenienses menos pelas técnicas agrícolas que utilizavam e mais por sua arte, por sua literatura e, sobretudo, por sua filosofia política
A forma civilizatória que, na modernidade, se expandiu pelo planeta, tendo o ocidente europeu como epicentro, sustentou-se também em um conjunto de crenças. A mais importante talvez tenha sido a de que cada um de nós é portador de uma consciência individual, sede de algo que designamos como razão e que conduz nossas capacidades cognitivas. Muito se escreveu, é verdade, contra isso. Mas por mais atacada que seja a crença na razão, parece ser indisputada a nossa crença de possuímos uma identidade pessoal e de que por meio da introspecção somos capazes de simular algum distanciamento com relação ao mundo.
Duas outras crenças foram fundamentais para a modernidade: a crença na regularidade da natureza e na capacidade da ciência de explicá-la de modo adequado, assim como de produzir desdobramentos tecnológicos que conferem aos humanos maestria crescente sobre o mundo natural. Isso significa dizer que lidamos mal com catástrofes naturais, sobretudo quando associadas a efeitos deletérios do “progresso” científico e tecnológico. Na altura do terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755, Voltaire não teve dúvidas em encontrar o culpado: o próprio “autor” da natureza foi indigitado. Para Voltaire, a natureza estava “errada”: nada justificava a tsunami que varreu quase toda a capital do então império português. Por fim, coube a um déspota esclarecido – o Marquês de Pombal (adepto do partido da razão) – a reconstrução exemplar da baixa lisboeta. De certa forma, a razão venceu o terremoto.
Quase três séculos depois, a catástrofe japonesa não dá azo nem à culpabilidade dos fenômenos naturais, nem à fé cega no progresso tecnológico. A associação entre tsunami e desastre nas centrais nucleares japonesas mostra como duas das crenças básicas de nossa forma civilizatória – regularidade/controle da natureza e progresso tecnológico crescente e virtuoso – merecem inspeção atenta. Pelo jeito, além de enterrar os mortos e cuidar dos sobreviventes, há que lidar com a interpelação posta pela catástrofe a algumas das bases da presença humana no planeta.
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