Renato Lessa
(Publicado em minha coluna Sobrehumanos, na Revista Ciência Hoje, em maio de 2011)
Um dos dilemas mais fortes liberalismo diz respeito a como lidar com a intolerância e com seu adepto, o intolerante. O tema da tolerância é antigo e impôs-se no debate moderno com guerras de religião, que assolaram a Europa a partir do século XVI. Guerras cujo fundamento consistia na associação entre religião e razão de Estado e cujo efeito, de modo invariável, implicava a eliminação – física e/ou cultural - de minorias religiosas, consideradas como de lealdade duvidosa ao Estado ao qual petenciam. O clima dessas guerras foi admiravelmente reconstituído por Heinrich Mann no livro A Juventude de Henrique IV (1938), uma das bases para o filme de Patrice Chéreou, A Rainha Margot (1994). O livro e, com foco maior, o filme reencenam o clima do massacre de São Bartolomeu, ocorrido em Paris a 24/8/1572, que deu a partida para a eliminação física de 100.000 huguenotes, por parte dos governantes católicos na França.
A vasta reação à intolerência religiosa pode ser encontrada em obras de diversos pensadores, a partir do próprio século XVI: Michel de Montaigne, Jean Bodin, ambos naquele século, e Pierre Bayle e John Locke, no século seguinte, entre vários autores. Bayle não só defendeu a tolerância, como afirmou a possibilidade de que ateus sejam pessoas virtuosas, sendo a religião apenas algo de natureza privada e íntima. John Locke, em sua célebre Carta sobre a Tolerância (1689), combateu o princípio da coação externa em matéria religiosa e propugnou por uma idéia de poder público garantidor da liberdade individual. O tema se fez, ainda, presente no século seguinte, tal como pode ser percebido nas obras de David Hume e Voltaire.
Mas a questão da tolerância não diz respeito exclusivo a questões de natureza religiosa. O filósofo inglês John Stuart Mill, no século XIX, em seu clássico Sobre a Liberdade, afirmou que uma sociedade decente, para além de obedecer a regra da maioria em suas decisões políticas fundamentais, caracteriza-se pela proteção legal das minorias. Maiorias e minorias são conjuntos políticos erráticos, cuja flutuação não pode afetar liberdades individuais essenciais e permanentes: pensar, escrever, falar, crer e aderir a valores. Os que aderem a tal concepção de tolerância perguntam-se com frequência: como tolerar o intolerante?
A resposta não é simples. A opção por não tolerá-lo implica, ao final, a vitória do intolerante que, independentemente do que defende, milita contra a sustentabilidade da própria tolerância. Tolerá-lo, por outro lado significa reconhecer a legitimidade de quem ataca os princípios básicos da tolerância.
Há pouco lidamos com esse dilema, em termos práticos, diante da manifestação, em entrevista televisiva, de posições abjetas e intolerantes por parte de um obscuro parlamentar brasileiro, notabilizado pela defesa da tortura e dos assassinatos perpetrados pelo regime de 1964. Na entrevista, posições racistas e homofóbicas foram apresentadas de modo aberto, mas sem qualquer surpresa. Há, é evidente, uma dimensão penal nisso tudo, mas tal ângulo não parece ser o único a ser considerado.
O ângulo punitivo e penal visa calar o deputado e fazê-lo responsável perante a lei. Mas o mais grave não é o que fez, mas sim a disposição de 120.646 eleitores em escolhê-lo seu representante, no estado do Rio de Janeiro. Prendê-lo e calá-lo de nada adianta. Varreremos para baixo do tapete parte da nossa própria sujeira. Demonizando-o, purificamo-nos. Democracia pressupõe visibilidade, o que implica a ostensão do abjeto. A oposição ao abjeto exige saber onde ele está e qual a extensão da infecção moral que promove. Não se trata de punir o deputado, mas de reduzir, pela política e não pela polícia, o âmbito de sua sustentação.
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