(Publicado na revista Carta Capital, em 3/8/2018, com o título "O 'inominável' e o abjeto")
Renato Lessa[1]
1. O espectro da candidatura de Jair Messias Bolsonaro – doravante
designado como “o inominável” – constitui ótima oportunidade para reflexão a
respeito da presença do abjeto na política. Uma referência
intelectual útil para tal, bem pode ser a clássica e iluminadora obra da
antropóloga britânica Mary Douglas (1921-2007), apropriadamente intitulada Pureza
e Perigo: uma análise dos conceitos de poluição e tabu, publicada em 1966.
Não se trata aqui de apresentar uma resenha acadêmica do livro, mas de trazer à
reflexão sobre nossas agruras presentes, algo alternativo à assepsia conceitual
politológica, sempre a normalizar os seus objetos e a dar tratamento numérico a
aberrações.
Douglas convida-nos a refletir sobre os significados da sujeira e da imundície
em nossa experiência cotidiana, e o faz a partir da sugestão de que ambas podem
ser percebidas como “matérias fora de lugar”. Em uma de suas anotações, tanto
menciona a exposição de dejetos humanos, quanto o singelo depósito de um fio de
cabelo infantil no prato de sopa. Nossos hábitos mentais protegem-nos da
experiência com a imundície, revelando-a todo o tempo como discrepante e
não-assimilável.
Mas, ao mesmo tempo em que o abjeto e o imundo se nos apresentam
como matérias fora de lugar, parece fundamental percebê-los como
parte integrante de um sistema mais geral das coisas, em curiosa coabitação com matérias
em seu lugar. Trocando em miúdos, a experiência radical com o abjeto, mais
do que revelar o quanto ele é liminar e insuportável, deve trazer consigo a
consciência de seu vínculo com a normalidade da vida: sendo a sua expressão
mais repugnante, o abjeto é aspecto revelador do sistema que o
contém e segrega.
2. Pois bem, “o inominável” é a ostensão do que mais abjeto há no
quadro político que se apresenta ao país. A abjeção inerente ao “inominável”
dá-se pela defesa aberta que faz da violência na política e pela apresentação
ao país de uma gramática e uma retórica do castigo. Uma forma de
mundo na qual a eficácia das consequências é diretamente proporcional à
quantidade de dor infringida aos inimigos. Cercado invariavelmente por homens
musculosos e de semblante duro, o “inominável” percorre o país amaldiçoando os
institutos civilizatórios contidos na Constituição de 1988, fundados em uma
cultura de mediações e de não-letalidade como fundamento normativo de
organização da sociedade.
(Difícil não entrever na reiteração daquela companhia preferencial
hiper-máscula, a força de uma obsessiva homofilia, que exige como compensação
ostensão de fúria homofóbica. Curioso personagem.)
A apologia da tortura, mais do que evocar o “heroísmo” de seus
perpetradores, serve a sua reintronização no horizonte das possibilidades: ela
é, a um só tempo, reparadora e antecipadora. Um homem fundamentalmente violento
faz-se, assim, mito da renitente boçalidade, tão presente no meio de nós. Sua
deambulação pelo país é pedagógica: ensina a gramática e a semântica de uma
vida sem mediações, fundada no que ela detém de efetivamente real: a
possibilidade e a necessidade de infringir castigo físico aos inimigos.
Quilombolas, índios, camponeses sem terra, LGBTs, mulheres, sindicatos,
estudantes, democratas em geral, etc..., constituem a listagem das vítimas potenciais
desse despautério. Regressão civilizatória: o pau-de-arara no lugar das armas
da república.
Os demais candidatos – ordinariamente mais ou menos palatáveis -
situam-se no exterior dessa inesgotável reserva de abjeção. Serão maus, bons ou
nem tanto assim, mas não necessariamente abjetos. Nesse sentido, o “inominável”
não é um candidato normal: ele é a negação mais radical do mundo no qual se dá
a possibilidade de escolha entre diferentes candidatos. A ele, portanto, não se
deve conceder a perspectiva da normalização, por meio de vocabulário
politológico asséptico.
3. O abjeto, como ensinou Mary Douglas, tem parte com este mundo.
Sua apologia e sua exibição não se limitam à exortação do passado ditatorial e
à expectativa de reintronização em nossas vidas. Ele possui, em
adição, fixação no aqui e no agora: pertence, portanto, ao sistema mais geral
das coisas. Como assim?
A ostensão primária da boçalidade e a exortação da violência, por
parte do “inominável” a muitos pareceu incompatível com o “namoro”
assumido com a mais extrema agenda liberal em economia e em política social.
Seu guru e porta voz, o economista Paulo Guedes, figura entre os mais
destacados expoentes de tal agenda, e disso nunca fez qualquer
segredo. Nesse aspecto, aliás, a candidatura do “inominável” começa a ganhar
foros de normalidade, já que sua agenda econômica e social não discrepa, no
essencial, da apresentada por assessores econômicos de outros candidatos
(Alkmin, Marina, Meirelles, pelo menos). Falam todos a mesma língua e percebem
a política e o ativismo social como fatores permanentes de irracionalidade.
A fusão entre a gramática da violência e a defesa do
ultra-liberalismo em economia e em política social, na verdade, nada tem de
inconsistente. Da mesma maneira que o tratamento do tema da segurança pública
exige, para a agenda “inominável”, deflação dos direitos civis, a
operação livre de uma ordem de mercado impõe a desmontagem dos mecanismos
regulatórios e a afirmação de crenças fiscais incompatíveis com as funções constitucionais
do Estado brasileiro. Trata-se, aqui, de deflação de direitos sociais.
Com efeito, o sonho – na verdade, o pesadelo – de uma ordem de mercado
auto-regulada exige o espectro de um agente estatal com idêntico estatuto: auto-regulado. A
fórmula que se impõe, admito, é um pouco chula, mas não imagino coisa melhor: mercado
e porrada aparecem como termos de uma terrível afinidade eletiva. Que
me perdoem os espíritos de Goethe e Max Weber.
Tal afinidade, por sua vez, alimenta-se de uma cultura mais geral
de aversão à abstração, que atravessa praticamente todo o espectro político
brasileiro. A ideia de mediação cede lugar a uma metafísica da presença, da
ação direta e da expressão de identidades e potencias “genuínas”, que não mais
devem ser neutralizadas por valores abstratos. É a metafísica do concreto que
se afirma progressivamente entre nós.
O abismo identitário no qual o campo da esquerda se precipitou,
com o desprezo de sua vocação histórica universalista, não poderia deixar de
ter contrapartida à direita: o laço social dá-se pela presença de mecanismos de
força, sem qualquer abstração, tanto no plano da manutenção da ordem pública
quanto da ordem econômica. Apresenta-se ao país algo inédito em sua história: a
materialização plena de uma ordem capitalista pré-Estado de Bem Estar Social,
cuja vertebração – na falta de qualquer processo institucional de legitimação
distributiva – exige máxima disciplina. A agenda não é inconsistente, ela é
simplesmente abjeta e, como tal, pertence à ordem dos possíveis e ao tal
sistema geral das coisas.
Douglas convida-nos a refletir sobre os significados da sujeira e da imundície em nossa experiência cotidiana, e o faz a partir da sugestão de que ambas podem ser percebidas como “matérias fora de lugar”. Em uma de suas anotações, tanto menciona a exposição de dejetos humanos, quanto o singelo depósito de um fio de cabelo infantil no prato de sopa. Nossos hábitos mentais protegem-nos da experiência com a imundície, revelando-a todo o tempo como discrepante e não-assimilável.
[1]. Professor de
Filosofia Política da PUC-Rio e Investigador-Associado do Instituto de Ciências
Sociais, da Universidade de Lisboa.
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