Como será a vida sem o Museu Nacional?
(Texto publicado no jornal "Expresso", em Lisboa, em 14/9/2018)
Renato Lessa
Uma catástrofe abateu-se sobre todos nós. Supressão
de uma parte do mundo, para gerações que viveram numa paisagem na qual o Museu
Nacional ocupava lugar natural e saliente. Não é o caso de proceder a
biografismos, mas não posso evitar a lembrança de, ainda miúdo, ter acompanhado
algumas aulas de meu pai - catedrático adjunto de História Natural e
Biogeografia da então Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do
Brasil (depois Universidade Federal do Rio de Janeiro) -, há mais de meio
século, em meio a fósseis e coleções botânicas e zoológicas, em meio a visitas
ao Museu, com seus estudantes.
Desde então o Museu Nacional compôs a linha
do horizonte, pelo lugar da Antropologia Social - que lá tinha o principal
programa de ensino de Pós-Graduação e Pesquisa da América Latina - no
quadro intelectual da geração de cientistas sociais, no Rio de Janeiro,
formados nos idos dos anos 1970. E em medida mais directa, pela influência pessoal
que recebi do saudoso e invulgar professor Luis de Castro Faria (um dos
fundadores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – PPGAS e), a
quem dediquei minha dissertação de mestrado e o livro que dela resultou.
A imagem do museu a arder, na noite de
domingo gerou de imediato incontida dor e perplexidade diante da inclemente evidência
de passados incinerados e de futuros suprimidos. No fim da noite, consegui
falar ao telemóvel com Luiz Fernando Dias Duarte, um dos mais brilhantes
antropólogos brasileiros e ex-diretor do Museu, e sobreveio a segunda camada de
dor. Uma dor em fragmentos: as tragédias
moram nos detalhes, nos incontáveis meandros das vidas directamente afectadas:
trajectórias, expectativas, rotinas suprimidas; devastação nas vidas pessoais e
profissionais de centenas de professores, pesquisadores e estudantes. Quantos
projectos terão sido interrompidos, e para sempre? Impossível mensurar a escala
das reverberações: seus efeitos far-se-ão sentir por imenso tempo, ao menos
para os que tiverem olhos e escuta para o que não virá a ser.
Na manhã a seguir ao incêndio não pude
evitar o dever e o movimento natural da alma. Fui ter à Quinta da Boa Vista, e
foi como estar na noite de velas de um grande amigo ou de um parente essencial,
cuja ausência perene e irrecorrível afecta e desorienta a forma de vida dos que
por cá ficam. Afecta-nos não apenas no modo da negatividade, fixado na falta
e na saudade, mas pelo sentimento de eliminação de futuros possíveis: como mensurá-los?
Lá estavam as paredes externas do prédio,
dignas e austeras como sempre, com as estátuas da cobertura encomendadas por
Pedro II intactas, tal como o anjo que sobreviveu ao bombardeamento de Dresden.
Fachada como casca, a envolver em acto
de proteção absurda e pungente os efeitos da combustão impiedosa do interior do
prédio: o conjunto do acervo sob a forma final de uma grande e homogênea indistinção
calcinada. Pouco antes de minha chegada à Quinta, a
Guarda Municipal – com a boçalidade habitual - tentou impedir a aproximação de
uma pequena malta, que queria ver com os próprios olhos o que sobrara de seu
Museu. Celerados distribuíram pancadas à farta e jactos de spray pimenta, nos
olhos dos que queriam ver os sinais inequívocos da perda sofrida.
O prefeito da
cidade do Rio de Janeiro – exemplar inominável da classe política brasileira -
lamentou a perda dos "quadros e das obras de arte", sem a mais
pequena ideia a respeito do que estava a falar, a eliminação no mundo de um dos
maiores patrimônios científicos do planeta. Museu, afinal, lembra velharia,
escumalha antiga, coisa de sótão coberto por lençóis encardidos.
(O prefeito-pastor é ícone perfeito da
inferioridade estrutural do Estado brasileiro com relação ao património
cultural e científico do país. Não há que o interpretar, posto que fala por si.
Nesse sentido, facilita-nos a vida, pois permite que apliquemos a inteligência
disponível a assuntos mais complexos. Tudo o que dissermos de mau sobre ele
soará como meramente tautológico).
Vi colegas, amigos, professores,
pesquisadores, estudantes, servidores - todos com os seus crachás,
transformados em marcadores de luto. Vi estudantes de escolas das redondezas
com seus uniformes. Vi o cartaz elaborado por alunos do Colégio Pedro II, a declarar
seu luto; as flores ao pé da estátua do Imperador, premonitoriamente plantado
com as costas voltadas para seu antigo palácio.Ali estou. Examino a distância a fachada,
que conserva seu prumo e sua cor. Assalta-me a alucinação de que o Museu
Nacional não ardeu: ele, na verdade, deixou de existir. O que vier em seu lugar
- se vier - será outra coisa. A combustão foi a forma final da sua supressão.
Um soterramento e uma submersão pelo fogo, análogo ao efeito da grande lama que
encobriu e dissipou vidas e mundos no Vale do Rio Doce, anos atrás.Imensas acusações de (ir)responsabilidade. O
facto é que o núcleo duro do sistema político brasileiro é indiferente a tudo
que não perceba como essencial a sua reprodução.
O antropólogo norte-americano
Michael Herzfeld, da Universidade Harvard, analisou em obra inspirada a cultura
de indiferença dos corpos burocráticos. É sempre a altura de ler o seu livro The Social Production of Indifference,
de 1992. Já conhecia, portanto, o problema no plano acadêmico e intelectual,
mas tive meu quinhão no âmbito do sempre desagradável princípio da realidade,
durante o tempo em que tive a honra de presidir a Biblioteca Nacional
brasileira. Passei o último ano de gestão a tentar proteger a instituição da sanha
dos “especialistas em gestão” do Ministério do Planeamento e Gestão – o núcleo
duro do Estado - que impuseram cortes brutais sobre o Ministério da Cultura e exigiam
supressão de cargos gratificados, ocupados na Biblioteca por técnicas
responsáveis por coleções tão preciosas quanto as do Museu Nacional.
Mulheres
que dariam a vida pela integridade das coleções sob sua guarda, vitimadas por
salários infames e falta de reconhecimento. Salários vergonhosamente inferiores
ao dos especialistas em planilhas.As duas instituições, Biblioteca e Museu, não
por acaso, nasceram na mesma altura - 1810, a então Biblioteca Real, e 1818, o
então Museu Real - dois exemplos que suficientes para que se interrompa a
parvoíce de amaldiçoar nossa "herança ibérica". O Brasil, antes mesmo
de sua afirmação, em 1822, como Estado nacional independente, já possuía uma
casa para os livros e outra para a ciência. Não foi exactamente um mau começo.
O facto duro e, como dizíamos há muito,
“objectivo” é que cá estamos. A paisagem é desoladora: não há como dissipar a
sensação de viver sob o jugo de elites delinquentes e “administrados” por um
cultura de indiferença burocrática. Difícil conviver com ideia – e o facto – de que se trata de gente para
quem a perda do Museu significa algo que não aquece e nem arrefece. O Museu
Nacional foi vítima da dura reversão civilizatória que se abateu sobre o lado
de cá do "mundo que o português criou".
Não falo apenas de perda
de memória, mas da supressão de futuros possíveis. Mais do que um troço
retirado do mundo, trata-se de falha tectônica que afectará nossa topografia e
nossos espíritos. Uma lacuna activa que rondará o horizonte do provável, com a
miragem sem esperança do que poderíamos ter sido, na hipótese contrafactual de
que ela não nos tivesse sido imposta.Julgo não haver alento ou lugar para a
esperança imperita de que da tragédia se extrairá lucidez e ímpeto para mudar o
leito e o curso naturais da grande alarvidade que se precipitou sobre nós. Há
grandes forças a montante e poderosos atractores a jusante.
É que, por cá, as
tragédias não são conducentes à acumulação de energia cívica e de
responsabilidade governativa. Sua sequência, ao contrário afunda-nos cada vez
mais em perplexidade e indiferença. Será agora diferente? Ou será que somos
inapelavelmente resilientes na desatenção ao que é comum?
Deixei de lado a precipitação mental em um
abismo pessimista e olhei mais uma vez a fachada. Pensei nos que lá viveram e trabalharam
e já não mais cá estão entre nós: os professores Lygia Sigaud, Gilberto Velho,
Luis de Castro Faria, Roberto Cardoso de Oliveira, Giralda Seyferth, entre
outros. Erro supor que, por nos terem deixado antes da catástrofe, tenham sido
poupados de seus efeitos.
Por fim, dou as costas para o cenário do
desastre e desço a rampa da Quinta da Boa Vista, com o sentimento de que um pedaço do país acabou. O único alento
real, ao qual merece bem a pena a que ele nos agarremos, é o da disposição de
resistência e reparação dos que, de facto, cuidaram da existência do Museu:
seus professores, pesquisadores, estudantes e servidores.
Renato Lessa é professor de Filosofia
Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Investigador
Associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Membro da
Ordem da Instrução Pública, de Portugal. Presidiu a Biblioteca Nacional
brasileira, de março de 2013 a maio de 2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário