Renato
Lessa
(Publicado em minha coluna "Sobrehumanos", na revista Ciência Hoje, em outubro de 2013)
A Espécie Humana é o título
de um livro exemplar, lançado na França em 1957. Um livro daqueles que merecem
ser lidos várias vezes em uma só vida. Seu autor, Robert Antelme, foi membro da
Resistência Francesa e rescapé,
sobrevivente da experiência dos campos de concentração. Entre 1944 e 1945, depois
de ter sido preso pela Gestapo, Antelme migrou por vários campos nazistas,
entre os quais Buchenwald, Auschwitz e Dachau. Não é pouco, é o mínimo que se
pode dizer. O livro, cuja publicação no Brasil se anuncia para breve, é um dos
melhores exemplares da assim chamada “literatura de testemunho”. Ainda que não
comparável literária e filosoficamente a Primo Levi, compõe com este, e com
Jean Améry, o que de melhor e mais pungente se escreveu a respeito.
Em comparação a Primo Levi, em particular, pode-se dizer ainda que
a experiência de Robert Antelme foi menos terrível, embora ambos tenham
frequentado o que houve de pior na loucura do nazismo, o “universo
concentracionário”, para usar expressão cunhada por outro rescapé, David Rousset. Primo Levi, por ser judeu, viveu o horror
do campo de extermínio; Antelme “limitou-se” a viver o do campo de
concentração, circunstância que, de nenhum modo, o imunizou da ameaça da morte
sempre iminente e daquilo que Levi denominou como “ofensa”, ou a destruição de
um ser humano. A distinção entre ambos os campos não é filigrana: os campos de
extermínio são lugares de morte certa, os de concentração, de morte provável,
mas sem que tenham sido desenhados para tal finalidade. A morte no campo de
concentração decorre da dureza do regime de internação ali praticado; no campo
de extermínio decorre de sua própria finalidade, inscrita em seu atributo
explícito.
A excelência do texto de Antelme resulta do fato de que contém
mais do que uma narrativa de testemunho pessoal. Tal como na obra central de
Primo Levi – É isto um homem? -, o
que importa a Antelme é observar a condição humana em cenário extremo. Daí o
título do livro, A Espécie Humana,
uma observação antropológica a respeito do que pode acontecer aos humanos
quando todos os traços civilizatórios são destruídos: língua, nomes, roupas,
objetos, reconhecimento social, etc, tudo enfim que possa ser considerado marcador
de identidade e de diferenciação.
Fora do marco estritamente fisiológico, o humano releva do que a
espécie acrescenta ao mundo, transformando-o e o humanizando. Tais acréscimos
são de ordem cultural. Na verdade, a adaptabilidade da espécie humana a
virtualmente todo o planeta, resulta do fato de que em cada lugar que ocupa, constrói
seu próprio nicho, uma segunda natureza que, acoplada à primeira, define seu
próprio habitat. Tal habitat possui nome próprio: cultura. Nossa adaptação à
diversidade dos habitats naturais não resulta tanto da especiação biológica,
mas sobretudo da variada criação de circunstâncias culturais, por definição
artificiais.
Livros como o de Antelme ensinam-nos a imaginar mundos nos quais o
trabalho milenar da cultura é destruído, em nome da coisificação absoluta: um
homem reduzido a portador de piolhos, a recipiente de um estômago vazio e a
movimentos remanescentes – por tempo incerto - de sua existência meramente
fisiológica. Mais do que o medo da morte, que exige certa abstração metafísica,
posto que movido pela ideia de que a vida é um valor fundamental, o que conta no
campo são os comandos do estômago. Na infernal hierarquia do campo, narrada por
Antelme, o principal marcador é dado pela quantidade de comida usufruída pelos
internos: kapos podem ser gordos, prisioneiros
políticos, em geral, esquálidos. A diferença, ao fim e ao cabo, na métrica do
campo, diz respeito ao que cada um pode comer. A destruição radical dos marcadores
de dignidade transforma a espécie humana em um recipiente esvaziado de
identidade e de comida.
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