Renato Lessa[1]
Biblioteca
Nacional/Ministério da Cultura
Nota: texto apresentado à audiência pública sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade que questiona o fundamento constitucional de artigos do Código Civil que restringem a liberdade de elaboração e circulação de biografias "não-autorizadas", ocorrida no Supremo Tribunal Federal, em 21/11/2013, como representante do Ministério da Cultura.
Introdução e propósitos
Os argumentos
contrários a restrições com relação à escritura e circulação de biografias “não
autorizadas” têm se valido de um valor estruturante da nossa forma
civilizatória: o princípio da liberdade
de expressão. Com efeito, o
princípio é pétreo: sua abolição implicaria o risco de dissolução daquilo que o
grande teórico social alemão, Norbert Elias, definiu como o processo civilizador. Os argumentos mais
restritivos, por sua vez, valem-se de cláusula em nada estranha ao mesmo
processo: os princípios da privacidade e da proteção dos indivíduos inserem-se,
de modo pleno, no mesmo catálogo de valores que conformaram a nossa forma de
vida. Catálogo também composto pelo princípio da liberdade de expressão.
É tão fácil
como tentador opor essas duas ordens de princípios, uma à outra, como se
representassem formas civilizatórias distintas. Na verdade, ambas decorrem de
mesma matriz: a fixação no século XVII, a partir da obra de pensadores tais
como John Locke, de direitos subjetivos,
ou seja, direitos que decorrem não de circunstâncias particulares, mas de um
modo próprio de conceber a natureza humana como constituída pelo direito natural
- e portanto não circunstancial - à liberdade, incluído neste termo tanto
vontades de expressão como desejos de proteção.
Liberdade de expressão e direito à
privacidade são horizontes normativos. Como tal, são marcados por um
inevitável grau de generalidade. As circunstâncias da vida e as formas do
direito positivo definirão, com contornos mais precisos, o que ambas podem significar
na vida prática e no horizonte das experiências históricas e sociais dos seres
humanos. O desafio prático, inerente ao caráter genérico mencionado, consiste
em grande medida em regular conflitos possíveis entre ações humanas que se
apresentam como fundadas em cada um desse princípios em particular.
O tema das
biografias, se tratado exclusivamente à luz da oposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade, parece pretender
retirar desses valores corolários automáticos, de aplicação indisputada. O
filósofo liberal contemporâneo Isaiah Berlin, certa feita, declarou que não há
garantia de que os bons valores e princípios sejam automaticamente compatíveis.
Há que trabalhar com criatividade para que aquelas orientações normativas
decantem na experiência social.
A defesa da
liberdade para as biografias, posição que tenho a honra de apresentar no âmbito
da Suprema Corte de meu país, não pode, por certo, dispensar a âncora normativa
do princípio da liberdade de expressão. O que pretendo aqui fazer é acrescentar
a tal patrimônio valorativo considerações de natureza distinta, porém
convergente, que, a meu juízo, podem fortalecer a posição já manifesta pela
Exma. Sra. Ministra da Cultura, Marta Suplicy.
Gostaria de
proceder por meio da apresentação de três argumentos, a saber: um argumento
formal; um argumento histórico; e um argumento antropológico e hermenêutico. O
objetivo de cada um dos argumentos é o de indicar o quanto a alternativa de
estabelecer restrições à inquirição biográfica contraria traços básicos de
nossa forma civilizatória.
1. Argumento formal: o que são
“biografias”?
À primeira
vista, a pergunta soa como bizarra. Afinal, todos sabemos o que estamos a ler
quando lemos uma biografia: uma biografia, para defini-la em termos
minimalistas, é um gênero de escritura devotado à tarefa de contar uma vida. Assim definidas,
“biografias” configuram um gênero
distinto das demais formas de expressão escrita. Não obstante, outro recorte é
possível. Além de pensar biografias como gênero próprio, é possível e
necessário imaginar o exercício biográfico como recurso cognitivo, não limitado ao gênero estrito das biografias.
Por razões que
ficarão mais claras no correr da apresentação do argumento seguinte, as
principais linhagens narrativas no campo das ciências humanas – particularmente
no da história – valem-se de recursos biográficos, mesmo em obras não
classificáveis como biografias. O clássico livro do historiador italiano Carlo
Ginzburg, por exemplo, intitulado O
queijo e os vermes dificilmente pode ser considerado uma “biografia”, mas sua
estrutura narrativa e metodológica repousa na caracterização biográfica do
moleiro Menocchio, um dissidente/herege, que viveu no Friuli no final do século
XVI, cuja estrutura mental ajuda a compreender o imaginário social e simbólico
de fins da Idade Média italiana. Ou seja, a inquirição biográfica, como recurso
cognitivo, tornou-se ferramenta essencial para investigações no campo das
ciências humanas. A razão principal é de fácil enunciação: as ciências humanas
ocupam-se da ação humana e esta, de modo necessário, materializa-se em
decisões, atitudes, crenças, iniciativas, etc..., que mobilizam indivíduos
reais, cujas vidas tornam-se, assim, relevantes para a construção de hipóteses
de sentido.
Desse modo, a
decisão a respeito de como tratar as biografias, do ponto de vista do direito
positivo, poderá ter efeitos não apenas sobre um gênero específico e isolado,
mas sobre toda uma tradição de inquirição a respeito do que somos em termos
civilizacionais.
A despeito da
existência de teorias da história e da sociedade que deflacionam o papel dos
sujeitos individuais, o melhor da historiografia sempre procurou associar o
entendimento de variáveis de longa duração à atenção ao âmbito nervoso e
imprevisível da ação humana individual.
2. Argumento histórico: ação humana,
sujeitos, indivíduos
A inquirição e
a curiosidade biográficas estão fortemente inscritas na nossa forma
civilizatória. Tal inclinação não se deve, apenas, a apetites bisbilhoteiros,
mas ao reconhecimento dos efeitos de uma grande mutação ocorrida no início da modernidade.
A partir de fins da Idade Média, deixamos de nos representar como rebanho cujo
destino fora fixado por potências inescrutáveis. Essa visão a respeito da
inescrutabilidade dos comandos que dirigem os humanos é muito antiga. O
filósofo contemporâneo, Alasdair MacIntyre, em livro luminoso (Justiça de quem? Qual racionalidade?),
escreveu capítulo brilhante a respeito da psicologia da ação dos heróis
homéricos, para revelar um cenário no qual a ação humana era regulada pelo que tinha que ser feito, independente do
escrutínio individual do agente. Entre os romanos, houve interesse nas
biografias exemplares, como bem atestam os casos de Plutarco (Varões Ilustres) e Suetônio (Os Doze Cesares). Para a Idade Média,
dissidentes à parte, a psicologia da ação humana constituiu-se como capítulo da
teologia. Em suma, dos antigos e dos medievais, com magníficas exceções,
herdamos uma teoria sobre o mundo social e histórico na qual a agência humana
pouco conta, salvo quando se trata de pensar o mal e o desvio.
A Modernidade,
ao desfazer-se de tal herança, tem como um de seus capítulos propiciatórios o
desenho de Adão, apresentado pelo humanista Pico della Mirandola, no século XV,
em sua Oração da Dignidade: um ser
posto no mundo por Deus, sem qualquer finalidade pré-estabelecida, para que
possa livremente estabelecer as suas próprias. Pico, ao lado de outros
humanistas italianos e, mais tarde, suplementado pela obra de Michel de
Montaigne, preparou a sensibilidade cognitiva da época para uma representação
da história humana como protagonizada por uma variedade incontável de ações
individuais, a despeito da força inercial das tradições. Por conseguinte, para
a epistéme moderna, fazer biografias
constitui um exercício de elucidação da experiência dos humanos. O suporte
filosófico dessa nova atitude será progressivamente fixado, a partir do século
XVII, em um trajeto iniciado tanto pela tradição filosófica racionalista como
por seus rivais empiristas. O tema do sujeito
apresenta-se por toda parte. No campo da pintura, a proliferação de retratos e
auto retratos reforça tal impressão.
Ressalta o
retrato de Federico de Montefeltro, feito por Piero della Francesca, no qual, o
nobre, de perfil, é representado em destaque com relação à paisagem física e
social sobre a qual tem jurisdição. Não sendo uma biografia, em sentido
estrito, a manifestação pictórica procura representar uma vida.
O legado da
centralidade do sujeito individual, posta pelos modernos, reside no fato de
que, desde então, não mais deixamos de falar em indivíduos quando pensamos a
história, ainda que procuremos acrescentar dimensões estruturais e de longa
duração.
Biografias,
nesse sentido, dão a ver suas “vítimas”, mas também o contexto no qual atuam.
As melhores operam nessa chave. Restrições, portanto, não apenas escondem ou
camuflam a ação individual. Elas criam barreiras ao entendimento de épocas e de
tendências. Um exemplo pátrio e recente pode ajudar a estabelecer a força desse
argumento: a excelente biografia do ex-Presidente da República João Goulart, realizada
pelo historiador Jorge Ferreira. Um exercício que, ao mesmo tempo em que
ilumina momentos cruciais da história recente do país, redime e exibe o papel e
a atuação de um grande brasileiro, retirando-o do gueto preconceituoso no qual
o atiraram, analistas de distintas persuasões, tanto à direita como à esquerda.
3. Argumento antropológico e
hermenêutico: o princípio da variedade e a centralidade da interpretação
Este argumento
tem parte com o anterior. O tema da variedade humana, posto pelos modernos, em
sua vertente cética ensina-nos que nenhum de nós possui elementos de elucidação
verdadeira a respeito da história em geral e nossas vidas em particular. Nossos
enunciados são prováveis e inapelavelmente interpretativos. Os humanos são
animais que interpretam.
Na verdade, a
origem deste argumento é mais antiga. Encontramos em Aristóteles, na Política, a ideia dos humanos como
“animais que falam”. Mais adiante, na Ética
a Nicômaco, encontramos que os humanos, por falarem, são animais que
“deliberam”. E sobre o quê exatamente deliberamos? Sobre assuntos sobre os
quais não sabemos, não temos respostas. Sobre eles nada dizem a natureza, o
acaso e os deuses. Somos nós, em nossa precária condição cognitiva, que somos
obrigados a lidar com temas que não admitem solução automática. Os recursos
para tal são os da argumentação e da interpretação. É o que há.
O postulado da
variedade humana, acolhido pelos modernos, recepciona, assim, o tema da inevitabilidade da interpretação. Não há
verdades universais e auto-evidentes. O que pode compensar tal orfandade é a
capacidade humana de emissão de juízos, sustentados em versões de mundo, em
interpretações. É esta a base antropológica do princípio da liberdade de
expressão. Longe de ser um capricho de filósofos políticos, o princípio decorre
da dispersão desta imagem: os humanos interpretam o mundo por meio de
incontáveis jogos de linguagem.
Nada mais
natural que sejamos “vítimas” potenciais – ou algozes – de tais artes de
interpretação. Jacob Buckhardt interpretará, no século XIX, o Renascimento, por
meio do recurso biográfico sobre a vida dos tiranos. Antes dele, Boswell
escrevera a biografia do século XVIII
inglês, ao contar-nos a vida do Dr. Johnson. A liberdade desses exercícios
ajudou a configurar o mundo no qual vivemos.
Restrições ao
exercício e à inquirição biográfica são, pois, impedimentos não apenas à
liberdade de expressão, mas ao seu fundamento antropológico, contido na ideia
de que os humanos são animais que interpretam. Restrinja-se tal liberdade, e uma
forma de vida terá seu curso alterado.
Conclusões
O que tememos
nas biografias? Mais do que a revelação de aspectos factuais desairosos, ou de
sua vulnerabilidade a profissionais da mentira, há que reconhecer que o que
mais amedronta são os efeitos da interpretação.
Em outros termos, o medo da interpretação
procura socorrer-se no direito positivo para fixar impedimentos, propiciar recursos
dissuasores e possibilidades de retaliação. Descontado aquilo que, de um modo
óbvio, pode ser isolado e neutralizado pelo direito positivo – mentira,
difamação, calúnia, etc... -, parece caber ao grande resíduo inimputável em
termos legais – as artes da interpretação - a prerrogativa de exercer efeitos
de amedrontamento. O menos que se pode dizer é que tal sentimento é genuíno:
praticamos intepretações sobre os outros, tanto quanto tememos interpretações
dos outros sobre nós mesmos. De minha parte devo dizer, que não ficaria
incólume se alguém me comunicasse que está a escrever minha biografia. Há,
portanto, sobretudo para os vivos, o que poderíamos designar como uma legítima agonia do biografado.
Mas, temo que
aqui o Direito seja de pouca valia. O sonho hegeliano que nos fez crer que
todos os dilemas particularistas da sociedade civil têm sua solução necessária
e universal no plano do Direito não mais subsiste. Da mesma forma, aprendemos a
abrigar hoje a ideia de que o espaço público, para além do Direito, é
configurado pela esfera da moralidade. Seria um progresso se uma ética das
biografias, compartilhada por autores e editores, aos poucos se consolidasse e
cuidasse daquilo que não é claro e distinto do ponto de vista do Direito.
O Ministério da
Cultura, por vocação institucional e orientação política própria, lida
diuturnamente com o grande tema da invenção cultural, em todas as suas formas.
Sua missão é cuidar deste patrimônio e definir políticas para sua expansão. O
principal recurso simbólico para exercer tal missão é o compromisso com a
liberdade de criação, em todas as suas formas. Que o Presidente da Biblioteca
Nacional tenha sido indicado pelo Ministério da Cultura, para falar nesta
ocasião, isto não constitui um acaso. A maior casa dos livros do país
proporciona um excelente ponto de partida para a defesa da liberdade do
espírito criador.
Brasília, 21 de
novembro de 2013.
[1]. Professor Titular de
Teoria e Filosofia Política da Universidade Federal Fluminense; Investigador
Associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa;
Pesquisador 1 A do CNPq e Membro da Ordem do Mérito Científico (MCTi/Brasil).
Desde abril de 2013 preside a Fundação Biblioteca Nacional.
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