Discurso
de Abertura da 30a Feira do Livro de Gotemburgo (Suécia)
Gotemburgo,
25 de setembro de 2014
Exma.
Sra. Maria Kallsson, Diretora da Feira do Libro de Gotemburgo
Exma.
Sra Anna Falck, Diretora Executiva da Feira do Libro de Gotemburgo
Exmo.
Sr. Bertil Falck, Fundador da Feira do Libro de Gotemburgo
Exmos.
Srs. Representantes do Governo Sueco e da
Cidade de Gotemburgo
Exmos. Membros da Delegação Brasileira
Senhoras
e senhores,
Em nome da
Exma. Ministra da Cultura do Brasil, Sra. Marta Suplicy, quero expressar nossa
profunda gratidão pela escolha do Brasil como Convidado de Honra, para a 30a
Feira do Livro de Gotemburgo. É um privilégio para o Brasil – e para sua
literatura em particular – usufruir de tal condição em um evento de tal prestígio.
O convite,
estou convencido, é um sinal inequívoco do reconhecimento da qualidade e da
importância da literatura brasileira no cenário internacional. Penso que ele exprime, ainda, uma aguda
percepção dos esforços continuados do Ministério da Cultura brasileiro, através
da Biblioteca Nacional, de fomentar a crescente internacionalização da
literatura brasileira. A participação brasileira em eventos internacionais de
grande importância – tais como as feiras de Frankfurt e Bologna (2013) e o
Salão de Paris (2015), nos quais o Brasil figura como convidado de honra – e o
Programa de Tradução de Autores Brasileiros, executado pela Biblioteca Nacional,
são evidências do apoio aqui mencionado.
Trata-se de uma ação que, sem dúvida,
contribui para maior abertura do mercado internacional para autores
brasileiros. Estou convencido, no entanto, de que se trata de muito mais do que
isso.
Há muitas
formas possíveis de cooperação e interdependência entre as nações. Usualmente,
tais formas baseiam-se em interesses econômicos mútuos, comércio e razões
estratégicas e geopolíticas. A despeito
do papel central ocupado por tais dimensões – por razões bastante
compreensíveis – parece-me vital “investir” naquilo que poderia ser designado
como um “padrão de interdependência imaterial”, baseado em programas e ações no
campo da cultura, da arte e do pensamento. No campo, para ser mais preciso, da
literatura, que reúne e exige como condição de possibilidade todas aquelas
dimensões.
Agendas
imateriais decorrem de atos de imaginação. Tais agendas contêm coleções de –
para usar uma expressão do escritor francês Paul Valéry - “coisas vagas e
imprecisas”, fundamentais para a existência dos humanos. O mesmo Paul Valéry
perguntou: “O que seria de nós sem o socorro do que não existe?
A literatura
emana dessa inclinação para mundos possíveis e imaginados. Ao fazê-lo, e tal
como sustentou o escritor italiano Italo Calvino, a literatura se oferece como forma de conhecimento: o conhecimento de
coisas não existentes – ou ficcionais – que afetam nossa própria existência no
mundo, digamos, real.
A força
imaginativa da literatura brasileira pode ser representada de modo fino e fiel
por meio das intuições de Valéry e Calvino. Mas, para acrescentar ao argumento
um sabor brasileiro, basta recordar o verso do grande poeta maranhense Ferreira
Gullar, de seu poema Traduzir-se:
Uma parte de mim pesa, pondera. Outra
parte delira.
Podemos
imaginar uma colagem poética na qual o verso de Gullar apareça associado a um
fragmento de outro extraordinário poema (Sentimento
do Mundo), cujo autor é outro grande poeta brasileiro, Carlos Drummond de
Andrade:
Tenho apenas duas mãos e o sentimento
do mundo.
Já
que a poesia lida com a imaginação, é possível imaginar poemas não existentes,
tais como a colagem que acabo de sugerir. Por meio dela, dá-se a ver o ímpeto
projetivo e criador – da arte na direção da existência – que a prática
literária – em suas diferentes formas – pode assumir.
Nos esforços
desenvolvidos com vista a maior internacionalização da literatura brasileira
creio ser importante enfatizar que o poder imaginativo da literatura brasileira
é responsável, em grande medida, pelos utensílios intelectuais que dispomos
para compreender o Brasil, uma tarefa nada simples. Pela força de sua qualidade
formal, a literatura brasileira ajuda-nos a perceber, ainda, seus aspectos
intrínsecos, como prática estética e imaginativa. Trata-se, pois, de um
processo pelo qual a literatura nos acompanha em nossas indagações diante do
mundo, ao mesmo tempo em que estabelece padrões de gosto estético, ao permitir
a apreciação da forma em si mesma como objeto de desfrute.
A agenda imaterial
que mencionei conecta-se a este entendimento da literatura: a literatura não
reflete a realidade; ela afeta a realidade. Ela o faz – quase sempre sem
propósito (e por isso deve ser absolutamente livre) – ao atuar sobre a
sensibilidade dos leitores, sobre seus mapas cognitivos e valorativos,
afetando, por essa via, seus modos de existência. Trata-se, pois, de coisa
séria.
Essa é a
experiência de um país no qual clássicos tais como Dom Casmurro, Os Sertões,
Vidas Secas, Grande Sertão: Veredas, entre outros, agiram no sentido de formar nossos
aparelhos de percepção a respeito do que é – e pode ser – o Brasil.
Esperamos que a
tão desejada “internacionalização” da literatura brasileira possa ser entendida
de forma dupla. Como apresentação e divulgação de uma literatura embebida em
uma história particular e, ao mesmo tempo, como algo a ser acrescentado a um fundo comum de objetos imateriais,
compartilhável por toda a humanidade. Para citar alguns exemplos deste
magnífico país, a Suécia: o escritor August Strindberg, o cineasta Ingmar
Bergman, o pintor Ragnar Sandberg e a mezzo-soprano Anne Sofie von Otter, além
de inequivocamente suecos, são partes constitutivas do fundo comum ao qual
aludi.
Para o Brasil,
receber a honoraria oferecida pela Feira de Gotemburgo e para ela trazer alguns
de seus melhores profissionais da imaginação dá-nos a sensação de poder
usufruir de um dos modos mais potentes do sentimento do mundo.
Essa talvez
seja a principal razão para expressar nossa gratidão ao convite que nos foi
formulado.
Gotemburgo, 25/9/2014
Renato Lessa
Presidente da Biblioteca Nacional
Em representação da Exma. Sra. Ministra da
Cultura do Brasil, Marta Suplicy
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