Fascismo e homofobia
Renato Lessa
Acostumamo-nos à ideia de que o
fascismo é um regime político e um dos modos possíveis de exercício do poder. A
expressão ‘Itália fascista’ nos traz à mente, antes de tudo, a imagem de um
período histórico, felizmente encerrado ao fim da Segunda Guerra Mundial. Nada
de errado com a associação entre fascismo e exercício do poder. No entanto, há
na perspectiva fascista muito mais do que isso.
O fascismo é, sobretudo, uma
visão de mundo. A circunstância de que tal visão tenha dado passagem a um
regime político, em um período específico, não elimina o fato de que um caldo
de cultura fascista pode sobreviver e proliferar na ausência de aspectos
inerentes ao experimento político que o materializou.
Um dos núcleos duros da visão
de mundo fascista é a valorização da violência na política e a preferência por
métodos de ação direta. A palavra ‘ímpeto’ bem pode simbolizar a coisa. Ela foi
fundamental para definir também uma forma estética, fundada no amor pela
guerra, no culto à velocidade e na desconfiança fundamental com relação à
cultura de mediações que marca o processo civilizador. Em outros termos, no
lugar das mediações e do princípio do estado de direito – características
culturais centrais do processo civilizador –, os fascistas propõem uma cultura
política instantânea, baseada no máximo atrito das energias políticas e sociais
e, sem surpresa, no uso da força que disto decorre. O fascismo, hoje, é, mais
do que uma ideologia, uma linguagem, uma forma de vida.
Um aspecto estruturante do
fascismo é a eleição de um inimigo, de uma vítima expiatória. Nesse fenômeno,
magistralmente estudado pelo cientista social e historiador franco-americano
René Girard, alguns seres humanos são tomados como vítimas de um processo de expiação.
Quer isso dizer que, por meio de sua eliminação, a comunidade dos eliminadores
ganha homogeneidade e pureza. Não há fascismo – ou sua deriva alemã, no nazismo
– sem vítimas expiatórias. O destino destas não decorre de nenhuma de suas
características intrínsecas, mas tão somente da brutalidade e do ímpeto do
processo que as define como inimigas.
Os judeus ocuparam, durante
grande parte da história ocidental, o papel predileto de vítimas expiatórias.
Para além dos registros históricos, que se leia o magistral O faz tudo, do escritor norte-americano Bernard
Malamud (1914-1986), a respeito de um violento surto de antissemitismo na
Rússia tzarista.
No Brasil, sem sombra de
dúvida, não vivemos sob o fascismo. A besta, por certo, esteve a nos rondar,
mas por aqui não fixou uma tradição política. No entanto, conhecemos processos
terríveis de fabricação de vítimas expiatórias. O país, por exemplo, é o
segundo colocado em uma escala mundial macabra: a da incidência de
linchamentos. Um linchamento é, por excelência, um ritual de expiação, pelo
qual uma comunidade se purifica com a eliminação do que julga ser um dejeto.
A homofobia, tão forte e
renitente no país, é um dos traços culturais que abrigam um desejo de expiação.
O crescimento de bancadas ultraconservadoras e fundamentalistas, nas últimas
eleições legislativas no Brasil (14% da Câmara dos Deputados) deixa entrever
uma poderosa coalizão de cerca de 70 deputados, devotados à tarefa de desfazer
o pacto civilizatório expresso na Carta de 1988. Temas como redução da
maioridade penal, veto à união civil homoafetiva e recusa à criminalização da
homofobia têm ganhado visibilidade, como bem demonstrou o patético
comportamento de um dos candidatos à presidência, digno exemplar do abismo e da
cloaca política nacional.
A causa dos direitos dos
homossexuais deixou há muito de ser uma ‘pauta local’, ou tema de ‘minorias’. É
fundamental defendê-la, tanto pelo respeito devido ao direito de definir
orientações sexuais pessoais, quanto pela preservação daquilo que o escritor
italiano Primo Levi (1919-1987) definiu como o “esqueleto, a forma básica da
civilização”.
(Coluna mensal “Sobrehumanos” da
Revista Ciência Hoje, a sair no número de novembro de 2014)
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