Fronteiras da Ciência
Renato Lessa
O governo brasileiro, há poucos anos, lançou um
ambicioso programa de internacionalização no campo da educação, denominado ‘Ciência
sem Fronteiras’. A iniciativa ganhou vulto e hoje se apresenta como prioritária
no campo da cooperação científica. O programa proporciona a estudantes
brasileiros – sobretudo, mas não exclusivamente, de graduação – vivência em
instituições internacionais significativas. Sendo a atividade científica uma
prática, não digo sem fronteiras, mas com fronteiras distintas das geopolíticas,
a exposição de jovens brasileiros a um universo mais cosmopolita é de valor
indisputável. Cabe, no entanto, refletir sobre as fronteiras que acabamos por
criar, mesmo em contextos nos quais cremos que estamos a eliminá-las.
Criar fronteiras e distinções é atributo humano. Mesmo
em experimentos mais libertários, nos quais limites são implodidos, instituímos
novos limites que, por sua vez, estabelecem novas oportunidades,
inapelavelmente autolimitadas. Fora do âmbito improvável de sujeitos ungidos
por uma onipotência de fundamento divino, somos seres que a todo tempo criamos
novos limites. A atividade científica, em particular, por mais induzida que
seja à inovação e à descoberta, é sempre orientada por decisões de política
científica que estabelecem tanto oportunidades quanto limites. Não há sociedade
que não estabeleça fronteiras internas e restrições em todas as atividades que
desenvolve e promove por meio de políticas de governo.
Duas fronteiras, com algum impacto restritivo, estão
presentes no programa ‘Ciência sem Fronteiras’. Uma, de caráter geral, diz
respeito à exclusão, do conjunto de cursos abertos ao programa, do vasto campo
das humanidades. Outra, mais específica, tem a ver com a não inclusão de
Portugal como país de destino dos estudantes brasileiros beneficiados pelo
programa.
Em ambas, trata-se de decisões de natureza política,
normais e legítimas em Estados democráticos. No entanto, é sempre importante
indagar a respeito das crenças subjacentes a processos de decisão política. A
decisão política de não contemplar o conjunto das humanidades no programa
decorre de uma crença nas virtudes intrínsecas da ideia de ‘inovação’. Deixo de
lado o aspecto em nada incontroverso do termo, para por sob foco a subcrença de
que a inovação tem parte necessária com progresso tecnológico e este, por sua
vez, exige como condição de possibilidade a prioridade para as assim chamadas ciências
da natureza – tanto orgânicas quanto inorgânicas. Uma das piores formas de
obscurantismo consiste em sustentar que o conhecimento científico a respeito
dos processos naturais não faz parte do patrimônio cultural dos humanos,
opondo, assim, ciência à cultura.
Obscurantismo análogo consiste, entretanto, em supor
que o esforço de conhecimento sobre processos históricos, sociais e culturais
tem relevância cognitiva menor e incidência diminuta na vida prática dos
humanos. Para o bem ou para o mal, há incontáveis ‘inovações’ conceituais e
práticas decorrentes do exercício reflexivo sobre a história e a vida social. A
exclusão desse campo constitui uma fronteira injustificável do ponto de vista
do conhecimento e a interposição de um limite ao desenvolvimento da capacidade
de interpretação do próprio país.
As universidades portuguesas, apesar da significativa
internacionalização, não são consideradas ‘parceiras’ sobretudo por serem lusófonas.
A língua portuguesa é rebaixada à categoria de um idioma regional, não
compatível com os padrões da linguagem científica internacional. Não se admite
que o idioma português – tal como o espanhol – possa ocupar tal dimensão. É,
ademais, uma decisão de política linguística que aplica ao idioma português um
efeito de menos-valia. Além disso, implica não reconhecer a excelência e o
cospomolitismo das universidades portuguesas, fortemente associadas ao conjunto
do sistema universitário europeu.
(Coluna mensal - seção "Sobrehumanos" - na Revista Ciência Hoje, setembro de 2014)
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