(Versão ampliada de coluna publicada na revista Ciência Hoje, Outubro de 2016)
Crises políticas, tal como a atravessada pelo país nos últimos tempos, produzem fortes efeitos de ofuscação. Tendem a ser feéricas e dotadas de tal fertilidade de facetas que acabam por confirmar uma bela intuição da lavra do escritor israelense Amós Oz, a de que o excesso de luz por vezes ofusca a verdade. Temos, por certo, que usar com pudor o termo “verdade”, substituindo-o, se calhar, pela mais comedida expressão “capacidade de observação”.
Com efeito, os hábitos correntes da análise política – acadêmica ou jornalística – com frequência vinculam o analista ao abismo da conjuntura e do momento imediato, como se ambos fossem cenários suficientes para a detecção da ordem de causalidade que os instituiu e da série de efeitos que deles pode ser deflagrada. O impacto do instante, não de raro revelado e conduzido por comportamentos e formas narrativas fixadas em enredos novelescos, gera, a um só tempo, aturdimento com o presente e expectativa com relação à próxima atração. Nossa percepção da passagem do tempo, por assim dizer, parece afetada tanto pela inoculação diária de espanto, quanto pela construção da expectativa do instante seguinte.
A divisão intelectual do trabalho presente no campo das Humanidades – tal como a inscrita nos demais – inibe a cooperação transdisciplinar, como bem sabemos. Em particular, a análise política ganharia maior abrangência de perspectiva se incluísse em suas observações a dimensão do tempo histórico. Para além dos jogos imediatos e configuradores da trama momentânea da política, e da captura que exercem sobre nossas atenções e aflições, é importante lembrar que todo momento e toda conjuntura, ainda que possuam aspectos presentes que lhes são inerentes, constituem-se como pontos no tempo sobre os quais desabam efeitos provenientes do passado. Dito de outro modo, além da dimensão da espacialidade, por nós vivida como sensação não dotada de tempo, a experiência dos humanos é fortemente afetada pela presença do tempo e da duração. Nenhum momento, por mais dramático e encerrado em si mesmo, é vazio de história: não há, pois, evento desprovido de passado e de futuro. Este último é matéria de pura conjectura. Já o primeiro, trata-se de algo sobre o que podemos e devemos pensar, com base na memória e em conjuntos sistemáticos de perguntas.
Este longo exórdio pretende tão somente sugerir duas ordens de fatores, a meu juízo, constituintes da crise política vivida pelo país neste último ano. Temo que a “leitura” da crise, sem os marcadores que serão indicados, torne nosso exercício reflexivo refém de espantos e expectativas voláteis. Não se trata de deflagrar uma regressão ao infinito, mas de indicar duas tendências macro-políticas exponenciadas pela história política recente do país. Ambas podem ser designadas como formas de inversão que afetam o exercício da representação política no Brasil, a partir da década de 1980.
A primeira delas consiste na inversão das relações usuais entre campanhas eleitorais e exercício dos mandatos. A observação habitual da política baseia-se na suposição de que as campanhas são meios para a obtenção de mandatos – tanto executivos como legislativos. Pois bem, a inversão para a qual chamo a atenção tem a ver com o fato de que no processo eleitoral, tal como o vivemos desde a década de 1980, as campanhas ganham maior relevância em detrimento dos mandatos, e estes, por sua vez, apresentam-se como fator relevante e propiciatório para campanhas ulteriores.
A partir da década indicada, alguns fatores tornaram-se salientes: financiamento público da atividade partidária (Fundo Partidário), financiamento privado de campanhas (pessoas jurídicas e privadas) e forte financiamento ilegal das mesmas. O volume de recursos e a quantidade de “pessoal” envolvido - entre candidatos e “profissionais de apoio”- configuram a presença de uma atividade econômica regular, mobilizada em bases permanentes, dado o calendário bienal das eleições brasileiras. A sugestão que aqui deixo é a de que o fenômeno eleitoral brasileiro deve ser interpretado como “case” de Economia Política, e não mais como singela aplicação dos princípios representativos.
Outra ordem de inversão, também agravada a partir de década de 1980, mas com DNA proveniente dos tempos do regime militar, tem a ver com a progressiva construção de uma república fundada na representação dos representantes. Mais do que a distinção entre representantes e representados, como traço constitutivo da representação política, estabeleceu-se no Brasil um abismo entre os dois universos. As relações entre ambos são preenchidas por temporadas de captura de sufrágio, pelas quais partidos cartoriais, sem nexos regulares com o mundo extra parlamentar, buscam obter pela disputa eleitoral volume de votos suficiente para lhes garantir presença parlamentar e executiva. A representação, uma vez constituída, vincula-se a um modelo no qual o Poder Executivo exerce forte capacidade de atração. Um mandado parlamentar “bem sucedido” acaba por ser aquele no qual o representante se faz representar na esfera do Poder Executivo. O mecanismo configura, portanto, um modelo de representação dos representantes, em detrimento das expectativas tradicionais de que os representados constituem, afinal a base do sistema representativo.
Nas próximas duas colunas, tratarei de modo mais particularizado de cada uma das inversões aqui indicadas. Fiquemos, por ora, com esta introdução.
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