domingo, 3 de fevereiro de 2013
A musa da pilhagem
O finado Dr. Marx, em um de seus mais inspirados momentos, descreveu e analisou, na célebre oitava seção do primeiro livro de seu O Capital, o que denominou como o processo de “acumulação primitiva de capital.” Páginas luminosas; não faria mal as ler quinzenalmente. Com efeito, qualquer que seja o juízo que se faça, hoje, a respeito das benesses ou desgraças do capitalismo, o bom senso recomenda reconhecer que a coisa começou pessimamente. Estivessem vigentes, naquela altura, os institutos jurídicos que hoje vigoram nos países por assim dizer democráticos – e capitalistas -, o capitalismo não teria nascido do modo pelo qual nasceu. Ou, simplesmente, não teria nascido, posto que barrado algures, em algum STF.
O cenário da acumulação primitiva, tal como hoje é fartamente sabido, exibiu intensa associação entre maximização de ganhos, uso da violência e destituição de uma série de vítimas sociais. O atributo “primitivo” não se deve tanto ao fato óbvio de que isso se deu nos primórdios do capitalismo. O termo pode revelar, ainda, uma forte dissociação entre apetite maximizador e aquilo que, graças a Norbert Elias, podemos designar como “processo civilizador”. Tal dissociação esteve presente tanto nos primórdios do capitalismo europeu quanto na contemporânea pujança do capitalismo à brasileira. Somos, por cá e em grande medida, contemporâneos dessa dissociação; os operadores da modernidade são, vez por outra, agentes do primitivismo.
O emblemático personagem que ora reside em presídio vizinho a Brasília, e que dá nome a uma CPI, é um operador exemplar desse apetite infrene dos pioneiros do capital. O drama que protagoniza tem como enredo central o trânsito de dinheiro obtido em circuitos ilegais para o âmbito da, digamos, economia legal. Quer por sua materialização em bens e serviços – por exemplo, mansões e serviços de decoração – ou por sua transformação em “investimento produtivo”, configura-se o circuito de uma acumulação que, mais do que “primitiva”, aproxima-se do que Max Weber, em dia iluminado, denominou como “capitalismo de pilhagem”.
Tal processo de acumulação, no entanto, não se limita à lavagem de dinheiro, ou ao trânsito de numerário ilegal acumulado para o âmbito da economia legal. Parte considerável, ao que tudo indica, tem como origem recursos públicos, o que não deve surpreender. Se voltarmos ao Dr. Marx, devemos recordar que à toda infraestrutura corresponde uma superestrutura política e jurídica. Em contextos nos quais o estado de direito está implantado de modo mais consistente, tal relação não faz lá muito sentido, mas nesta parte do mundo temo que ainda faça. Faz, ao menos, para os circuitos ilegais. A economia ilegal não prescinde de seus operadores não-econômicos, incrustados nos assim chamados poderes da República.
Vejam só, no Rio de Janeiro, para as eleições deste ano, cerca de 600 policiais e bombeiros inscreveram-se como candidatos a vereador. É forte, para dizer o mínimo, a presença de policiais e bombeiros entre milicianos que infestam as periferias cariocas, e a maioria desses candidatos tem vínculos com áreas tomadas por milícias. O que é isto, senão a tentativa de captura de espaços legais, por parte dos circuitos de pilhagem? O significado sociológico do mandado senatorial de um dos campeões da direita brasileira, posto a serviço do personagem que habita o presídio da Papuda, não tem sentido distinto.
A glamorosa companheira desse notável operador do capitalismo de pilhagem brasileiro deu significativa contribuição ao quadro aqui composto. A tentativa malograda de intimidação de um juiz, com base em ameaça de chantagem, revela um modo preciso de operação, fundado na hipótese – felizmente falsificável – de o que conta na vida, para valer, são as ofertas que não podem ser recusadas. Essa lógica tem, necessariamente, implicações penais. Ou seja, seus operadores e agentes são, em termos técnicos rigorosos, “criminosos”. Mas não nos iludamos, há mais coisas entre o céu e a terra do que o código penal: há sociologia na coisa; sociologia pesada.
O bom barão de Montesquieu, nos idos do século XVIII, falava da atividade de ganhar dinheiro como “paixão calma”, proporcionada pelo “doce comércio”. Com ela, as interações humanas progressivamente deixariam de ser belicosas. Uma doce complementaridade somada à percepção de que precisamos uns dos outros deveria, segundo o barão, orientar nossos interesses privados. Nada de semelhante parece estar presente no campo das relações entre, digamos, a atividade de ganhar dinheiro – ou de acumular – e o âmbito da legalidade no Brasil. As relações são, no mínimo, incertas.
A musa da pilhagem, na tentativa de chantagem ao juiz, é o avesso da “paixão calma”. Ao contrário, ela pretende ensinar ao país que ganhar dinheiro exige agressividade e pouca – se alguma – atenção a formalidades. É curioso como, entre nós, “empresários agressivos” passam por personagens virtuosos. A meu juízo, trata-se da única ocupação à qual o atributo “agressivo” soa como adjetivo elogioso. Assim não dá.
Renato Lessa
(Publicado em 31 de julho de 2012, no suplemento Aliás do jornal O Estado de São Paulo)
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