domingo, 3 de fevereiro de 2013
O paralelogramo universitário
Começo com um truísmo: há muitas formas possíveis de interpretar a ação humana, categoria maior à qual, por princípio, se vincula tudo aquilo que fazemos. Se a máxima para tudo vale, vale também para a greve que se abateu sobre as universidades federais brasileiras, desde maio passado, ainda que haja pretensões à exceção na matéria.
Há ângulos e ênfases interpretativos que se impõem como a força de evidências: a expansão descoordenada e voluntarista da universidade pública federal nos últimos anos não acompanhada da criação de bases logísticas mínimas para suportá-la, o que faz da queixa pela precariedade de laboratórios, bibliotecas e “condições de trabalho” algo plausível. Da mesma forma, comparações dos salários dos professores universitários federais com escalas salariais de outras carreiras do serviço público soam perturbadoras: ao fim de suas carreiras, mesmo os professores mais titulados e qualificados têm vencimentos comparáveis aos do início de carreiras para as quais pouca qualificação é exigida.
Tudo isso faz sentido, mas não faz todo o sentido, se é que haja algo que faça todo o sentido. Em diversas universidades, em diversos departamentos, laboratórios e programas de pós-graduação, condições de trabalho vêm sendo aperfeiçoadas e melhoradas, por esforço individual e coletivo de professores e pela existência de programas públicos de financiamento à atividade de pesquisa, por meio de agências federais e estaduais. Tal quadro está longe de generalizado, mas o fato da universidade federal e pública no Brasil ser a responsável por proporção considerável da produção de conhecimento científico no país, com algumas marcas de reconhecimento internacional, é sinal de que algo não andou de todo mal, ainda que possa – e que deva - melhorar muito.
A própria queixa salarial, com sua materialidade irrecorrível, não pode desconhecer marcadores de prestígio e possibilidades de crescimento e realização pessoal, vinculados ao pertencimento a uma carreira que tem forte inscrição nas dimensões simbólica e intelectual. Não se trata de desconhecer o peso da desagradável materialidade da vida, mas é inegável que a possibilidade de estar em uma “carreira” na qual benefícios imateriais constituem um aspecto no mínimo forte não é exatamente algo desprezível.
De qualquer forma, a progressiva desconstrução da identidade intelectual dos professores universitários, em prol de uma identidade de “trabalhadores do setor público”, foi, por assim dizer, uma conquista da direção da política sindical para o setor, definida nas últimas décadas. Trata-se de uma ressignificação do papel desse corpo profissional, cada vez mais refratário em fazer de seus marcadores específicos parte de uma estratégia de valorização corporativa. Ao contrário, a cultura sindical, por ranço que associa trabalho intelectual a parasitismo e a privilégio, valoriza uma cultura obreirista de chão de fábrica e de “unidade de todos os trabalhadores” contra os malefícios do capital. Não deixa de ser perturbadora a constatação de que o sindicalismo dos professores universitários federais seja ligado a uma central sindical controlada por partidos que, além de fartamente minoritários no cenário eleitoral e por qualquer critério de representatividade mais rigoroso, são possuídos pela crença de que a universidade é um aparelho de reprodução do capital e de bestificação das massas. É duro associar a sofisticação exigida, e por muitas vezes atingida, pela universidade em suas práticas usuais – ensino, pesquisa e extensão – com os enunciados toscos e sectários das “análises de conjuntura” que informam decisões, digamos, da categoria.
Mas, digamos que a ordem das queixas configure uma razão razoável de desconforto e de motivação para o protesto. Desde já, devo dizer que me alinho entro os que pensam que sim: há razoabilidade nessas queixas e elas devem ser levadas em conta. No entanto, há um abismo entre a razoabilidade das queixas e os efeitos supostos que delas devem derivar. O nexo é, no mínimo, precipitado: da suposta consistência das queixas (A) não se seguem consequências óbvias (B). Entre (A) e (B) opera um fator crucial que exerce sobre as condições originais um juízo interpretativo, que por sua vez é efeito de uma cultura específica – de uma forma de ver o mundo – que se arvora em detentora do monopólio da passagem. É sobre tal cultura que deve incidir nossa inspeção, pois ela preexiste e subsiste a (A) e (B).
Há vários indícios dessa cultura. Um deles é a ideia da greve como “forma de vida”. A greve desloca-se, assim, do âmbito dos meios para se transformar, ela mesma, em espaço dotado de finalidade intrínseca. É no espaço e no exercício da greve que a “classe” forma sua identidade coletiva, na luta permanente contra a “hegemonia do capital”. Tal associação entre mobilização permanente e identidade coletiva dos professores transparece na proposta de carreira que o sindicato nacional dos docentes enviou ao governo, na qual a participação sindical e associativa aparece como inerente à condição de “professores federais”, com implicações para a avaliação dos mesmos para fins de progressão na carreira.
A cultura da mobilização ininterrupta está a serviço de um ideal de “estado de exceção permanente”, segundo expressão da moda. Rotinas básicas são suspensas, em função da instauração de uma dualidade de poderes, que opõe o “movimento” à rotina e às arenas institucionais da universidade. O “comando de greve” e as assembleias ocupam o poder de fato, materializado na pretensão de obter capacidade negativa e geral de interromper a rotina universitária. Tal desrotinização não afeta apenas aulas e outras atividades universitárias, mas se abate sobre centenas de milhares de estudantes, cujas rotinas e quadros de expectativas são alterados e, por vezes, suprimidos. A própria qualidade do espaço universitário, como lugar de socialização de jovens estudantes, acaba por sofrer efeitos de degradação, por força de uma “desinstalação” da universidade que chegou a três meses. Tal cultura de exceção sobrevive aos espasmos do “movimento” e constitui parte da cultura permanente da instituição, afetando suas práticas internas, seus valores e correlações políticas internas.
Mas, o aspecto mais saliente da cultura à qual aludo pode ser encontrado nas propostas do sindicato nacional dos docentes (Andes) ao governo. Ali materializa-se o ideal de um ajuste de contas contra segmentos da universidade associados aos avanços do país no âmbito da ciência e tecnologia. Professores titulares, bolsistas de produtividades, coordenadores de grandes projetos de pesquisa e de cursos de pós-graduação são percebidos como uma casta de privilegiados. Tal ajuste de contas dar-se-ia por meio de reestruturação radical da carreira docente, na qual seriam eliminadas as marcas de progressão tradicionais – auxiliares, assistentes, adjuntos, associados e titulares -, em prol de uma carreira única de “professor federal”, em 13 níveis, com avenida aberta de progressão do nível 1 ao 13, por tempo de trabalho. O ingresso de todos dar-se-ia na posição 1, para a qual se exigiria tão somente o nível de graduação, e a progressão seria função da sobrevida do docente em seguida ao ato de seu ingresso.
Este aspecto faz da greve algo de fato sui generis: o próprio sindicato nacional abriu mão de todos os outros itens da pauta de reivindicações - salários, condições de trabalho - , para se fixar na alteração da carreira. Apesar da aparência de endurecimento, o governo cedeu no fundamental ao “movimento”: o ingresso na classe de professor titular deixa de ser exclusivamente decorrente de concurso público específico e passa a ser feito por progressão interna. Abre-se, pois, espaço para um curioso experimento: todos os professores passam a ter o direito estatutário de alcançar a classe de professor titular, o ápice da carreira. A representação visual da quimera é não menos curiosa: uma universidade cujo desenho ideal tem a forma de um paralelogramo: todos os que estão na base poderão estar no topo. Qualquer arranjo – trapézio ou pirâmide – no qual o topo seja menor do que a base e que reconheça distinções aparece como “aristocrático”. Todos, afinal, somos trabalhadores, no chão de fábrica das salas de aula e dos sindicatos, a bradar que a luta continua.
Por fim, algumas das finalidades declaradas do “movimento” emancipatório tornam-se pura retórica: com efeito, como garantir relevância social e auto-sustentabilidade do ideal civilizatório da universidade pública, se o espaço da universidade se transforma em campo de prova de uma vaga cultura de mobilização permanente e negativa e que se manifesta por meio da interrupção de suas funções públicas?
Renato Lessa
(Publicado em 11 de setembro de 2012, no suplemento Aliás do jornal O Estado de São Paulo)
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