domingo, 3 de fevereiro de 2013
A refundação tucana
Entre as muitas atividades do espírito humano, tocadas pelo condão da fantasia e da imaginação, a hermenêutica eleitoral ocupa lugar de destaque. Embora haja quem julgue ser possível uma ciência das eleições, capaz de estabelecer a grande explicação que pulveriza interpretações imperitas, a coisa segue sujeita a imparável jogo opiniático. Diga-se de passagem que são tantas as dimensões associadas ao processo e ao resultado eleitorais, que, a depender do lugar no qual fincamos a ponta seca de nossos compassos, isto é das nossas crenças, apostas e hábitos cognitivos, a geometria que daí decorre é forçosamente variada.
A pluralidade das interpretações, contudo, não deve ser vista em chave negativa. Se, por um lado, ela é incapaz de asseverar com objetividade o sentido do que, de fato, se passou, por outro ajuda a elucidar algo a respeito da natureza dos intérpretes. Em outros termos, por mais estapafúrdia que seja uma intepretação, ela pode ser esclarecedora a respeito do seu sujeito, ainda que seus predicados sejam pífios.
Todo este arrazoado veio-me à mente ao ouvir e ver – e peço já desculpas pela abrupta passagem à vida como ela é – o ex-deputado José Aníbal, do PSDB, em programa hiper-noturno, a debater com o deputado Candido Vacarezza, do PT, no domingo do segundo turno das eleições municipais. Vale a pena proceder a uma etnografia breve do evento. Vacarezza mal cabia em si. Afetava um estado de graça tão pleno, que nele cabiam até mesmo manifestações de prudência e humildade e, o que é extraordinário, o reconhecimento da importância da oposição. Mas, se o caso é falar dos tucanos, observemos o ex-deputado José Aníbal e o que, na altura, trouxe aos telespectadores.
Nada menos que que uma visão triunfal do desempenho tucano, foi o que José Aníbal proporcionou como exórdio de sua interpretação do ato eleitoral. Segundo sua peculiar hermenêutica, houve vitórias tucanas por todo o Brasil: Manaus, Belém, Teresina, Sorocaba e coisa e tal. Alegria incontida e semblante de vencedor, José Aníbal estava rejuvenescido por seu júbilo. Um espectador desavisado o tomaria como o grande vencedor do dia. Em meio à estupefação generalizada entre os jornalistas, diante de tanta euforia, o condutor do debate lembrou a derrota em São Paulo. Derrota prontamente reconhecida, por certo, mas com ares que não era com ele.
A hermenêutica de Vacarezza, sem surpresa, fixava-se no ato premonitório da escolha de Lula para a sucessão paulistana e no desempenho do candidato Fernando Haddad. José Aníbal proporcionou o melhor da noite, pois, instado a reconhecer que houve uma eleição na capital paulista e de que nela as coisas não se saíram exatamente bem para suas hostes, procedeu a uma anatomia da derrota. Ao fazê-lo, surpreendeu, pois admitiu o que todos sabiam. Curiosa circunstância, na qual um efeito-surpresa decorre quando alguém diz o que todos já sabem.
José Aníbal foi preterido na sucessão paulista, em virtude da razia imposta ao tucanato paulista pela candidatura de José Serra. O “making of” geral da salsicha permanece desconhecido, mas o preço a pagar pelo atropelo parece evidente. Para José Aníbal, a derrota de Serra é algo tão distante quanto as primárias do estado de Wyoming. Não só distante, mas marcado com as tintas do inevitável. É exatamente aqui que ocorre o efeito surpresa da admissão do que todos sabiam: como eleger um candidato apoiado pelo prefeito Kassab? Como eleger um candidato, cuja investidura desorganiza, pelo verticalismo da imposição do nome, uma das máquinas partidárias estaduais mais fortes do país? As palavras duras emitidas ao prefeito, em particular, não encontram paralelo na avaliação petista, pautada pela possibilidade futura de aproximação com o PSD.
José Aníbal, com clareza límpida, tocou em dois mistérios municipais da desrazão tucana. Ambos, por sua vez, associados à mãe de todos os mistérios: José Serra obteve, há pouco menos de dois anos, 40 milhões de votos contra a candidata de um dos presidentes mais populares da história do país. Em qualquer país razoavelmente democrático, isso o qualificaria para liderar a oposição, com imensa legitimidade. O que se passou é sabido: José Serra e seu partido jamais apresentaram ao país sua versão a respeito do que o Brasil poderia ser, como alternativa ao que vem sendo sob Dilma Roussef.
É razoável supor que as dezenas de milhões de eleitores que sufragaram Serra possuíam a expectativa de dispor de uma versão distinta de país. Nesse sentido, pode-se mesmo afirmar que ocorreu uma variante curiosa da tradicional prática do estelionato eleitoral. Prática comum entre vitoriosos: lembremo-nos da eleição, pelo PMDB, de mais de metade da Câmara de Deputados, em 1986, graças ao prestígio o Plano Cruzado. Logo a seguir ao pleito, o Plano foi desconstruído. Tratou-se de um caso clássico de estelionato, já que fundado na enganosa premissa de que os efeitos imediatos do Plano Cruzado seriam seus efeitos permanentes. Vida que segue, outras formas de estelionato se apresentaram na política brasileira. Todas elas caracterizadas pela traição, por parte dos vitoriosos, de seus incautos eleitores. Mas, o que dizer de derrotados que deserdam seus apoiantes?
O não impacto do julgamento da ação penal 470, nas últimas eleições, bem mostra o erro e a desorientação tucanos ao supor e insistir que a agenda moral é suficiente para fixar uma agenda alternativa para o país. Agora é, a seguir José Aníbal, refundar o partido a partir de Belém, Manaus e Teresina. José Serra, pelas artes de algum polimorfo perverso, periga de ganhar a presidência nacional do PSDB. Dilma Roussef tem razões para sorrir, quando pensa em 2014.
Renato Lessa
(Publicado em 30 de outubro de 2012, no suplemento Aliás, do jornal O Estado de São Paulo)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário