domingo, 3 de fevereiro de 2013

O Fator Kassab

Há cerca de seis anos, em 2006, o então prefeito de São Paulo, José Serra, renunciou ao mandato, conquistado nas eleições de 2004, para ingressar na corrida eleitoral ao governo paulista. Salto bem sucedido, posto que lograria derrotar Marta Suplicy, qualificando-se, assim, à condição que, como sabemos, propiciaria mais à frente a reedição do ato de renúncia. Com José Serra, pela compulsão à repetição, aprendemos que renunciar é humano. Por unilaterais e caprichosas, renúncias são ocasiões ímpares para pensar a respeito do peso dos contrafactuais na história humana. Não tivesse José Serra renunciado, e se reeleito fosse à prefeitura de São Paulo em 2008, estaríamos hoje a falar de Gilberto Kassab, com a magnitude que o desagradável princípio de realidade nos impõe? É certo que as ações humanas, se procurarmos estabelecer suas causas, podem ser submetidas ao abismo das regressões ao infinito,. Detectada o que julgamos ser a causa de algo, sempre é possível indagar sobre causas dessa causa, e assim por diante – ou melhor, para trás –, até retrocedermos a um momento inaugural, seja ele o da moldagem de Adão ou da eclosão do bóson de Higgs. De todo o modo, ainda que isso seja verdadeiro, é inegável que na genealogia do animal político Kassab o efeito de causalidade exercido pela primeira renúncia de José Serra tem forte relevância. Vá lá que o ato procriador praticado pelos pais do atual prefeito de São Paulo tenha sido uma condição necessária para que viesse a ter existência biológica. Contudo, parece ser indisputável o fato de que o ato de renúncia de Serra produziu um efeito político preciso, qual seja o da entronização de Kassab ao, digamos, primeiro time da elite política nacional. Suponho que não seja exagero imaginar que o ocupante do posto de prefeito da cidade de São Paulo, a mais importante cidade do hemisfério sul, não possa ser descrito de maneira diferente. Determinar a causa eficiente do fenômeno não traz consigo a suposição de que havia intencionalidade na coisa: os efeitos procedem das causas, mas só adquirem fisionomia própria pelo que a elas acrescentam. Se a entronização de Kassab no campo político nacional derivou de um ato inicial, movido por considerações de oportunidade política de curto prazo, é importante não desvalorizar, para fins de interpretação, o que o personagem acrescentou de si ao presente que recebeu. O personagem eminentemente local transformou-se em pouco tempo em um operador relevante no cenário nacional. Já não conta mais como prefeito: o que faz e o que se diz do que faz em São Paulo está aquém de seu peso específico no plano nacional. Para avaliar tal peso, as medidas são outras: um partido com mais de meia centena de deputados federais - o que representa 10% da Câmara de Deputados - e dois senadores. A importância do kassabismo extrapola, contudo, a contabilidade parlamentar. O empreendimento do prefeito de São Paulo exibe de modo aberto a lógica do presidencialismo de coalizão, por meio de um truque de rara destreza: transformar meia centena de deputados obscuros, condenados às agruras das legendas de oposição, às quais em sua maioria pertenciam, em um conjunto disponível para trocas generalizadas. A sigla partidária, marca fantasia da organização, afirma-se negativamente, no que diz respeito à ideologias: não é de esquerda, de direita ou de centro. Quer isto dizer que se sente à vontade em qualquer ambiente. Ao modelo, em si mesmo generoso, do presidencialismo de coalizão, o partido do Dr; Kassab ´propicia o acréscimo de potenciais cinquenta novos clientes, manobra extensiva aos municipalismos e aos “estadualismos” de coalizão. Curiosamente, o Dr. Kassab é o que vai de mais genuíno e auto-evidente pela vida política nacional; Com ele não há riscos de decepção: qualquer domicílio o receberá de portas abertas, sem possibilidade de dano a seus, digamos, valores e princípios. O partido kassabista é sobretudo um experimento aberto de hiper-realismo político, em um grau que talvez nenhum dos partidos “relevantes” brasileiros esteja disposto a assumir. Mesmo o PMDB, mãe de todos os realismos, não dispensa, una y otra vez, menções a seus heróis e mitos de origem. Com os kassabistas, nada disso: eles expõem com clareza ofuscante os fundamentos correntes da política brasileira. É, pois, um empreendimento que elimina toda suspeita a respeito da opacidade das palavras. Para o kassabismo, as palavras são o que elas são, não escondem, iludem, parafraseiam ou aludem. Pretendem dizer o que a coisa é. Enfim, temos a tão desejada instalação da verdade na política. Kassab indica o vice na chapa de Serra, arqui-inimigo do petismo, e apoia Patrus Ananias, herói petista, em Belo Horizonte. A senadora Katia Abreu (PSD/PA), livre dos ares moribundos do ex-PFL, manifesta simpatia pela reeleição de Dilma Roussef. E por aí vamos: tudo é permitido, tudo é divino e maravilhoso. Pensando bem, Kassab é mesmo um herói do presidencialismo de coalizão. Na verdade, um pequeno prestidigitador, a exibir o fato grave de que a existência de partidos “relevantes” e “coesos”, bem como a sua criação, nada tem a ver com o que se passa no plano da vida social. Política sem princípios e sem lastro social: há quem diga que se trata de uma “democracia consolidada”. Renato Lessa (Publicado em 10 de julho de 2012, no suplemento Aliás, do jornal Estado de São Paulo)

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